quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Carta ao ministro

Caro sr. Ministro:

No momento em que lhe escrevo estas mal traçadas, V. Exª. ainda não é. Prepara-se para ser. O ato de sua nomeação vaga no ar, à maneira de um débil fumo, e só se tornará realidade, dessas realidades que a gente apalpa e ferra o dente, quando o Diário Oficial o recolher em suas páginas conspícuas. Não importa. Já os abraços, num tropismo comovedor, voaram em bando no rumo do seu apartamento e lhe envolveram e confortaram as espáduas pré-ministeriais. O leiteiro de V. Exª. percebeu algo de insólito na atmosfera (a fumacinha do decreto, sem dúvida) e foi congratular-se com a cozinheira de V. Exª., que assumiu ares misteriosos e graves. O chofer de V. Exª. passou a ser assediado por gregos e goianos, o jornaleiro de V. Exª.a mostrou-lhe, sorrindo, a manchete com o seu nome e, mais abaixo, a sua aprazível verônica; a manicura de V. Exª… Silenciemos a manicura. Mas por todos esses signos se comprova que começou, como dizem os jornalistas mais cultos, a sacralidade de V. Exª., e que os astros abriram em sua vida nova picada.
Caro sr. Ministro, sou fraco, e imagino por mim, quando se cogitou de meu nome para segundo tesoureiro da comissão comemorativa do centenário do último banho de chuveiro em Copacabana, a emoção complexa que ora viaja a rede nervosa de V. Exª. É um alvoroço, um arrepio suave, uma inquietação branda, uma pressa de amanhecer, uma suspeita vaga de que tudo seja ilusão, um temor de que à última hora certa egrégia pessoa pratique alguma falseta, um rir e um pular íntimos, um desejo de dar cambalhota e de fazer discurso… Sei muito bem o que são essas coisas. Acredite: constituem o melhor do melhor, e o que vem depois, como sensação, não corresponde.
Já pensou V. Exª., sr. Ministro, na hora imprópria em que o convidaram (ou vão convidá-lo, pois o Lourival às vezes se demora) para assumir esse belo título? As eleições vêm aí a toque de caixa, e depois delas, novas eleições. V. Exª. terá de fazer força pelos outros, com ar de quem não faz, e o pior é que o seu nome não constará de cédula alguma. Assim, pois, é só o tempo de sentar-se e levantar-se. Daqui a um ano e meio (no máximo, e, se não chover, antes) estará V. Exª. de mesa arrumada, pronto para entregá-la Deus sabe a quem, e que são dezoito meses na vida de um homem? V. Exª. ficará ministro, como no dizer do poeta Paul Valéry, nome, aliás, que será de bom efeito citar nas recepções de madame Mineur:

le temps d’un sein nu
entre deux chemises!

É pouco. V. Exª., muito humanamente, pensa em reformas. O Brasil está sendo reformado a partir de 1500, e não seria decoroso interromper essa tradição saudável. Mas como que V. Exª. terá tempo de reformar algo mais além das cortinas do seu gabinete?
Leia V. Exª. a Carta de guia de ministros, editada nos bons tempos pela livraria Quaresma. Lá se diz que a ministrança de cinco anos é dádiva do Senhor, a de quatro não é má, a de três, só com escritura de promessa em cartório, a de ano e meio é caso de responder pelo expediente, não mais. V. Exª. vai ser e não ser, qual novo Hamleto. De qualquer modo, bonne chance, e aceite as expressões de minha cordial simpatia e inútil solidariedade.

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

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