Vai
então, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, ele
deu dois corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me sacudiu
fora da sela, e com tal desastre, que o pé esquerdo me ficou preso
no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas já então,
espantado, disparou pela estrada fora. Digo mal; tentou disparar, e
efetivamente deu dois saltos, mas um almocreve, que ali estava,
acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem esforço
nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e pus-me de
pé.
– Olhe
do que vosmecê escapou, disse o almocreve.
E
era verdade; se o juramento corre por ali fora, contundia-me deveras,
e não sei se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça
partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro, e lá se me
ia a bacharelice em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era
positivo; eu sentia-o no sangue que me agitava o coração. Bom
almocreve! Enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele
cuidava de consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte.
Resolvi dar-lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não
porque tal fosse o preço da minha vida, – essa era inestimável;
mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele me
salvou. Está dito, dou-lhe as três moedas.
– Pronto,
disse ele, apresentando-me a rédea da cavalgadura.
– Daqui
a nada, respondi; deixa-me, que ainda não estou em mim...
– Ora
qual!
– Pois
não é certo que ia morrendo?
– Se
o jumento corre por aí fora, é possível; mas, com a ajuda do
Senhor, viu vosmecê que não aconteceu nada.
Fui
aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco
moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a
gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com efeito,
uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria.
Examinei-lhe a roupa; era um pobre-diabo, que nunca jamais vira uma
moeda de ouro. Portanto, urna moeda. Tirei-a, via-a reluzir à luz do
sol; não a viu o almocreve, porque eu tinha lhe voltado as costas;
mas suspeitou-o talvez, entrou a falar ao jumento de um modo
significativo; dava-lhe conselhos, dizia-lhe que tomasse juízo, que
o “senhor doutor” podia castigá-lo; um monólogo paternal.
Valha-me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve que lhe
beijava a testa.
– Olé!
Exclamei.
– Queira
vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com
tanta graça...
Ri-me,
hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e
segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto
do efeito da pratinha. Mas a algumas braças de distância, olhei
para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias, com evidentes
mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu
pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do
colete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os
vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em lugar do cruzado em
prata. Porque, enfim, ele não levou em mira nenhuma recompensa ou
virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do
ofício; acresce que a circunstância de estar, não mais adiante nem
mais atrás, mas justamente no ponto do desastre, parecia
constituí-lo simples instrumento de Providência; e de um ou de
outro modo, o mérito do ato era positivamente nenhum. Fiquei
desconsolado com esta reflexão, chamei-me pródigo, lancei o cruzado
à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi
tudo?) tive remorsos.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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