Uma
delicada leitora me escreve: não gostou de uma crônica minha de
outro dia, sobre dois amantes que se mataram. Pouca gente ou ninguém
gostou dessa crônica; paciência. Mas o que a leitora estranha é
que o cronista “qualifique o amor, o principal sentimento da
humanidade, de coisa tão incômoda”. E diz mais: “Não é
possível que o senhor não ame, e que, amando, julgue um sentimento
de tal grandeza incômodo.”
Não,
minha senhora, não amo ninguém; o coração está velho e cansado.
Mas a lembrança que tenho de meu último amor, anos atrás, foi
exatamente isso que me inspirou esse vulgar adjetivo — “incômodo”.
Na
época eu usaria talvez adjetivo mais bonito, pois o amor, ainda que
infeliz, era grande; mas é uma das tristes coisas desta vida sentir
que um grande amor pode deixar apenas uma lembrança mesquinha;
daquele ficou apenas esse adjetivo, que a aborreceu.
Não
sei se vale a pena lhe contar que a minha amada era linda; não, não
a descreverei, porque só de revê-la em pensamento alguma coisa dói
dentro de mim. Era linda, inteligente, pura e sensível — e não me
tinha, nem de longe, amor algum; apenas uma leve amizade, igual a
muitas outras e inferior a várias.
A
história acaba aqui; é, como vê, uma história terrivelmente sem
graça, e que eu poderia ter contado em uma só frase. Mas o pior é
que não foi curta. Durou, doeu e — perdoe, minha delicada leitora
— incomodou.
Eu
andava pela rua e a sua lembrança era alguma coisa encostada em
minha cara, travesseiro no ar; era um terceiro braço que me faltava,
e doía um pouco; era uma gravata que me enforcava devagar, suspensa
de uma nuvem. A senhora acharia exagerado se eu lhe dissesse que
aquele amor era uma cruz que eu carregava o dia inteiro e à qual eu
dormia pregado; então serei mais modesto e mais prosaico dizendo que
era como um mau jeito no pescoço que de vez em quando doía como
bursite. Eu já tive um mês de bursite, minha senhora; dói de se
dar guinchos, de se ter vontade de saltar pela janela.
Pois
que venha outra bursite, mas não volte nunca um amor como aquele.
Bursite é uma dor burra, que dói, dói, mesmo, e vai doendo; a dor
do amor tem de repente uma doçura, um instante de sonho que mesmo
sabendo que não se tem esperança alguma a gente fica sonhando, como
um menino bobo que vai andando distraído e de repente dá uma topada
numa pedra. E a angústia lenta de quem parece que está morrendo
afogado no ar, e o humilde sentimento de ridículo e de impotência,
e o desânimo que às vezes invade o corpo e a alma, e a “vontade
de chorar e de morrer”, de que fala o samba?
Por
favor, minha delicada leitora; se, pelo que escrevo, me tem alguma
estima, por favor: me deseje uma boa bursite.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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