sexta-feira, 14 de outubro de 2022

A Vida no Céu | Décimo quinto capítulo


(Liberdade: condição de um ser não sujeito ao constrangimento de limites físicos ou de pensamento. A possibilidade de correr sem tropeçar em muros ou paredes, ou sem cair no vazio. O capim crescendo para o céu. O destino de todos os perfumes, em particular do cheiro da terra molhada.)

Luan trazia uma mochila de couro a tiracolo. Retirou do interior da mochila uma pequena caixa de madeira. Abriu-a, num gesto teatral, como um mágico dos tempos antigos, e deu-nos a ver quatro bolinhas, rugosas como pedras, de um vermelho intenso e luminoso.
Tirem uma. Comam.
O que é isso?
Faz o que te digo.
Estendeu a caixa a Aimée. Ao contrário de mim, ela não hesitou. Agarrou numa das bolinhas e colocou-a na boca:
Humm, gostei. Meio ácida, meio doce.
Imitei-a. A textura lembrava a do gengibre. O sabor, acre e doce, com um leve travo a terra, não tinha paralelo com nada do que eu provara até então. Deixava na boca um rasto de luz.
Vais dizer-nos o que é isto?
Luan sorriu. Sempre invejei o sorriso dele. Na pior refrega basta-lhe sorrir – sorrir daquela forma – para desarmar os oponentes.
Após o regresso do teu pai a Luanda começaram a acontecer coisas – contou. – Coisas estranhas e velozes.
Assim que regressou a Luanda, Júlio reuniu-se com os responsáveis da aldeia. Contou o que se passara com ele, depois que caíra numa das redes de proteção do Paris, embora, por essa altura, ainda se sentisse muito confuso e de pouco se lembrasse. Luanda enviou uma mensagem ao governo francês, acusando Boniface de sequestro de um dos seus cidadãos e pedindo uma satisfação. Antes de receberem qualquer resposta, porém, chegou a notícia de que os piratas haviam tomado o Paris. Foi um enorme choque.
Júlio, pessoa habitualmente calma e aberta, não conseguia conter a inquietação. Passava muito tempo na biblioteca central, estudando velhos papéis, ou fechava-se com dois ou três amigos na biblioteca da Mutamba, a balsa do meu tio Ismael, para onde se mudara, juntamente com a minha mãe. Uma noite, ao entrar na sala de jantar, Luan surpreendeu uma conversa entre os dois casais.
Não são sonhos – afirmava o meu pai. – Sei que não são sonhos. São recordações. Pouco a pouco, me vou recordando de tudo. Eles me davam alguma coisa para beber. Um chá. Aquilo me provocava uma soneira. Nesse estado, meio dormindo, me faziam perguntas. Sempre as mesmas perguntas. Queriam saber se era verdade, como constava no meu passaporte, que eu nascera na amazónia brasileira, e porque me chamava Tucano. Expliquei-lhes que era o nome de uma tribo de índios da região onde nasci. Havia esse costume de as pessoas tomarem o nome da sua tribo. Boniface conhecia os Tucanos. Não sei como. Parecia saber mais sobre os Tucanos do que eu próprio. Meu pai era tucano. Meu avô foi pajé. Boniface me perguntou por uma raiz chamada itapiranga. Esse nome me recorda alguma coisa. Contudo não sei o que seja. Talvez algum brasileiro me possa ajudar.
Uma tarde viram aproximar-se um balão pequeno, pintado de branco, azul e vermelho. Ismael foi buscar os binóculos e leu alto o nome: La Rochelle.
O meu pai assustou-se:
Uma balsa francesa?!
A balsa pediu autorização para atracar. O capitão explicou que fugira do Paris e necessitava de água e mantimentos. A população começou a juntar-se ao redor da torre de atracagem, para assistir ao desembarque dos franceses e escutar, em primeira mão, notícias da Cidade-Luz. Júlio, contudo, desconfiou da intenção dos visitantes. Eram três homens. Um deles pareceu-lhe familiar.
Enquanto os refugiados se reuniam com o governador de Luanda e outros notáveis da aldeia, Júlio e Ismael subiram furtivamente pela escada de corda que dava para a La Rochelle. Arrombaram a porta da cabina de comando e, numa vistoria rápida, confirmaram as suspeitas de Júlio. Encontraram uma metralhadora, duas pistolas e diversas fotografias do meu pai. Juntaram tudo aquilo, e dirigiram-se ao jango, interrompendo a reunião. Os três homens foram logo presos. Um deles, um colombiano barbudo, chamado Mallo, aceitou falar, na condição de que o deixassem partir na La Rochelle, não de volta ao Paris, porque Boniface nunca o perdoaria, talvez até o mandasse matar, mas para recomeçar uma vida nova no vasto céu. Vinham, confessou, com a missão de sequestrar O Voador. Boniface parecia acreditar que O Voador o poderia conduzir até uma ilha verde, um local conhecido antes do Dilúvio por Pico da Neblina, no qual, segundo a lenda, persistiria uma população indígena. Estes índios, os Tucanos, cultivariam uma raiz, um tubérculo, ou uma fruta, capaz de abrandar o ritmo cardíaco, desacelerando todo o metabolismo. O consumo regular de tal raiz permitiria resistir indefinidamente, e sem grande desconforto, às altas temperaturas.
Um momento, um momento! – Aimée interrompeu-o, atordoada. – Aquilo que nos ofereceste a provar, aquelas raízes...
São frutos...
Ou isso...
Não te sentes melhor?
Aimée riu-se. Ri-me com ela. Talvez fosse ilusão, talvez fosse apenas porque uma leve brisa ascendia da floresta, refrescando-nos a pele, mas a verdade é que me sentia, de repente, muitíssimo melhor. Respirava sem esforço. Era como se estivesse lá em cima, estendido numa rede, a ler um livro, no convés da Maianga, ou, ainda mais alto, na varanda do meu pequeno apartamento, no Paris.
Que coisa incrível – suspirou Aimée. – E o que aconteceu a seguir? Como é que tu vieste aqui parar?
Luan retomou a sua história. Contou como, receosos de uma nova investida dos homens de Boniface, dessa vez com meios mais poderosos, a população de Luanda optara por cortar todas as comunicações com o exterior. A aldeia desapareceu dos mapas. Nos dias seguintes, Júlio foi ficando cada vez mais inquieto. Por um lado, estava preocupado comigo. Por outro, começara a acreditar na lenda da Ilha Verde. Tomou então a decisão de partir na La Rochelle. Mallo aceitou acompanhá-lo na condição de que, caso não me encontrassem, nem à ilha, no prazo de dois meses, retornariam a Luanda, e, de lá, após Júlio desembarcar, poderia prosseguir viagem. Encontrando a ilha, poderia também partir, se assim o desejasse. Luan pediu para os acompanhar. Argumentou que o pirata, ou ex-pirata, era bem capaz de aproveitar um momento de distração de Júlio (por exemplo, enquanto este dormia) para o neutralizar, entregando-o depois, conforme o plano original, nas mãos de Boniface, no Paris. Era um argumento tão forte que o meu pai se deixou convencer.
Foi assim que os três se fizeram ao céu. Dispunham de bons mapas, dos tempos antigos, levados de empréstimo dos arquivos de Luanda, mas o sistema de navegação da balsa era bastante rudimentar. Júlio não desanimou. Deixou-se guiar pela intuição. Ri-me. Deixar-se guiar pela intuição é algo que o meu pai faz muitíssimo bem. Hoje, olhando para trás, percebo que sempre partilhou esse obscuro talento com Sibongile. “Quem tem um coração nunca se perde”, costuma repetir. “Só o coração é capaz de encontrar o que a razão perdeu.” Acredito que terá herdado tal habilidade do meu avô, o velho Lucas, pajé dos Tucanos. Talvez eu próprio a possua, escondida, ou atrofiada, e precise apenas de a exercitar.
Guiado pelo coração, Júlio contornou tempestades, e iludiu as correntezas do céu. A determinada altura, avistaram, muito ao longe, a silhueta dourada do Paris. O imenso dirigível convergia, é claro, para o mesmo destino, embora com a lentidão e a errância de um mastodonte cego. A La Rochelle, pelo contrário, seguia, determinada e firme, em linha reta. Em poucos dias, acharam a ilha. O meu pai preparou duas mochilas, enchendo-as de cantis com água, pacotes de peixe seco e meia dúzia de instrumentos de sobrevivência, como canivetes e fósforos, e desceu, seguido de Luan. Assim que se viu sozinho, o pirata, ou ex-pirata, ergueu âncora e desapareceu.
Não compreendo – protestei. – Porque o deixaram sozinho?
O teu pai estava ansioso por descer, pois o Paris podia chegar a qualquer instante. Não me queria deixar sozinho com o Mallo. Além disso nunca duvidou de que tu virias.
Era uma manhã de céu sereno e transparente, dois de fevereiro. O sol brilhava sobre as rochas. Júlio soltou o cabo, ajoelhou-se e beijou as rochas. Luan não sabia o que fazer. Ficaram os dois ali, como nós depois deles, mudos de espanto. A floresta parecia avançar, cercando-os, vinda da bruma. Então, um canto irrompeu a toda a volta, muito suavemente, como no interior de um sonho o rumor de um rio. Pouco a pouco afirmou-se e veio subindo. Júlio sacudiu a cabeça, incrédulo:
Eu conheço isto – murmurou. – Conheço esta canção.
Luan apurou o ouvido. Conseguiu distinguir algumas palavras, frases soltas:

... águas...
... no fundo do mar...
... como se saúda a Rainha do Mar?...

Quem quer que estivesse ali, para além das espessas ramadas, cantava em português. Júlio ergueu-se, batendo palmas ao ritmo da música, e começou a dançar, ao mesmo tempo que juntava a sua voz ao coro que crescia. Luan viu que surgiam figuras humanas na orla da floresta. Era difícil distingui-las da folhagem em redor, pois traziam o corpo pintado de vários tons de verde e moviam-se como se movem as árvores tocadas pela brisa.
O meu pai não dança – contestei, incrédulo. – Nunca o vi dançar. Não sabe dançar.
Luan riu-se:
E no entanto dançou. Deve ter dançado bem, deve ter cantado ainda melhor, porque em pouco tempo toda aquela gente nos rodeava, oferecendo-nos frutas, frutas incríveis, que eu nunca vira antes, e água fresca. Entre os frutos que eu nunca vira antes estavam esses que vocês comeram há pouco.
E depois?
Levaram-nos para a floresta. Eles vivem em grandes casas redondas, feitas de bambu, numa aldeia entalada entre dois enormes penedos. Um rio corre ali perto. Nessa noite dormimos lá. Na manhã seguinte, acordámos com os tiros. Os piratas tinham entrado na aldeia.
Luan foi arrastado para a floresta por três rapazes. Ainda viu Boniface, à frente de um grupo de piratas, todos eles dobrados pelo peso do calor e do cansaço, gritando e disparando para o ar. Os rapazes moviam-se através da floresta com a desenvoltura de aves no céu. Riam-se diante da inépcia do meu primo que tropeçava a cada passo nas raízes expostas ou se arranhava ao tentar segurar-se a um tronco coberto de espinhos. Um dos rapazes, chamado Marco, ofereceu-lhe um dos frutos vermelhos:
Você vai se sentir melhor.
Horas mais tarde encontraram um outro grupo. Logo a seguir outro, e depois outro. Júlio não estava em nenhum deles. Um velho alto, de rosto anguloso, que parecia ter sido cinzelado em madeira por um escultor apressado, tranquilizou Luan:
Seu tio está seguro. Todo o mundo fugiu. Ninguém ficou ferido. Só temos de esperar um dia ou dois...
Esperar o quê?
Esperar que a floresta os coma...
Luan olhou-o, horrorizado:
O quê?!
A floresta devora o mal. A natureza erra, mas, cedo ou tarde, sempre se liberta do erro.
O meu primo levou algum tempo a compreender a observação do velho. Escondidos entre as árvores viram os piratas virar e revirar a aldeia, impacientes, à procura dos tubérculos vermelhos. Mal o sol começou a declinar chegaram os mosquitos. Uma mulher esfregou o corpo de Luan com um óleo macio, cujo perfume, levemente ácido, mantém os insetos à distância. Boniface e os seus homens, porém, não estavam preparados para mais aquele infortúnio. Giravam, exaustos, davam grandes palmadas no próprio corpo, tentando escapar às ávidas nuvens cinzentas que lhes caíam em cima. Por fim despiram-se, maldizendo a ilha e as suas armadilhas, e lançaram-se às águas do rio:
Péssima ideia – comentou Marco. – O rio, naquele troço, tá cheio de jacarés.
Minutos depois, um dos piratas saltava para a margem, aos gritos, coxeando, sangrando muito do pé direito. Os outros correram também para terra. Boniface, começou a cobrir o corpo com lama, para aplacar as ferroadas, no que foi imitado pelos restantes. O homem ferido caiu, chorando e lamentando-se, sem que os companheiros se incomodassem com ele. Pareciam seres de um outro planeta, e, de certa forma, eram. Vultos escuros rodopiando no charco da noite.
Quando amanheceu, todos os piratas jaziam de borco.
Naquele estado – continuou Luan –, assim imóveis e cobertos de lama, era como se fizessem parte do chão. Ou melhor, era como se a terra estivesse a engoli-los.
Temos de os ajudar! – pediu Luan. – Aqueles homens vão morrer.
O velho encolheu os ombros:
Não são homens bons.
Bons ou maus, não os podemos deixar morrer.
Podemos sim. Claro que podemos. Mas não se preocupe que a decisão não será sua. Jerónimo decidirá.
Um sujeito minúsculo, de pele muito negra e reluzente, vestido apenas com uma velha bermuda amarela, irrompeu da floresta, aos saltos, como um esquilo. Aproximou-se do terreiro, no qual estavam estendidos os dez piratas, e ficou um momento a observá-los. Voltou-se para trás, ergueu o braço direito, e logo surgiu um outro homem. Era Júlio. O velho riu-se. Mostrou-o a Luan:
Veja! Seu tio está com Jerónimo.
Os dois homens ajoelharam-se junto a Boniface. Júlio tirou um cantil da mochila e, erguendo a cabeça do chefe dos piratas, deu-lhe a beber um bom trago. A seguir Jerónimo tirou uma das milagrosas bolinhas vermelhas do bolso da bermuda e enfiou-a na boca de Boniface. Fizeram o mesmo com os outros piratas. O que fora mordido por um jacaré, porém, não deu sinais de vida. Júlio soltou-o, num gesto de desânimo. Aquele, já a floresta comera.
E os outros piratas? – perguntei. – O que fizeram com eles?
Nada. Jerónimo deixou-os soltos. Limitou-se a destruir as armas. Boniface e mais dois fugiram para a floresta. Os outros seis continuam lá, na aldeia. Ajudam nas lavras. O teu pai acha que talvez se integrem. Só depende deles. Seja como for, nunca mais poderão regressar ao céu. Esta gente não confia neles.
É natural. Tu confias?
Não. Não confio. Mas concordo com o teu pai. Temos de lhes dar uma oportunidade.
Nós vimos Boniface – contou Aimée. – Não parecia muito bem.
Acho improvável que esses três consigam sobreviver, sozinhos, na floresta. Ou voltam à aldeia ou morrem todos. – Luan disse isto e pôs-se de pé num salto. – Agora vocês já sabem tudo. Vamos!
Ainda não sabemos tudo – contestei. – Por exemplo, o que fazias aqui? Estavas à nossa espera?
Sim. Vimos chegar a vossa pequena frota. Júlio calculou que fossem saltar aqui e mandou-me à frente.
Sozinho?
Não. Sozinho perdia-me em dois minutos. Vim com dois amigos, mas eles ficaram à espera, na floresta. Não gostam de espaços tão abertos. Acho que têm medo de que o céu lhes caia na cabeça. Agora vamos.
Descemos com ele. Dois rapazes esperavam por nós estendidos numa rede, presa aos troncos de duas árvores. Reconheci facilmente uma delas, um pau-mulato (Calycophyllum spruceanum), devido ao tronco, muito direito, liso e brilhante, e de uma espantosa cor de cobre. Não fui capaz de identificar a segunda árvore. Lamentei não ter trazido um bom guia de árvores tropicais.
Luan apresentou-nos aos rapazes:
Este é Marco, de quem já vos falei. E este é Óscar.
Marco e Óscar cumprimentaram-nos com um tímido aperto de mão. Enrolaram a rede e guardaram-na num belo cesto de vime trançado. A seguir mergulharam na bruma, e nós fomos atrás. Era como respirar o ar de uma outra boca. Suponho que seguimos uma trilha, mas para mim, para Aimée, para Luan, aquilo assemelhava-se a um labirinto verde, infinito e idêntico. Nunca pensei que pudessem existir tantos tons de verde. Até àquele dia o mundo, para mim, estava pintado de azul e branco, e de todas as misturas entre o azul e o branco. Caminhámos mais de duas horas. Por fim, detivemo-nos numa minúscula clareira, para repousar, beber água e contemplar o céu. Quis saber se ainda faltava muito. Marco apontou para ocidente.
Está perto.
Luan riu-se:
Para eles, tudo está perto. Isto é um pequeno passeio.
Descalcei-me. Doíam-me os pés. Aimée queixou-se do mesmo. Marco debruçou-se sobre mim:
É bonito, o céu?
Sim, o céu é bonito.
Mais bonito do que a terra?
Não respondi logo. Pensei um momento:
Há coisas que só começo a compreender agora. Por exemplo, que o céu é mais bonito havendo o mar e havendo terra. Que uma terra sem céu também não seria bonita.
Aimée interveio, curiosa:
Estão a falar de quê, nessa vossa língua misteriosa?!
Debatíamos, expliquei-lhe, a beleza do céu e da terra. O que pensava ela? Aimée lembrou o que repetiam os velhos. Na terra, diziam eles, não havia paredes. Contudo, ali, naquela floresta, tudo eram paredes. Caminhando entre as árvores imensas, que mal deixavam passar a luz do sol; sobre o chão húmido e poroso, coberto de folhas, ela sentia-se, como o profeta Jonas, a ser engolida por uma baleia.
Ui, que imagem terrível! Não pareces muito entusiasmada...
Ao contrário, protestou Aimée. A terra, ao menos ali, não se assemelhava ao que imaginara. Era muito mais bonita, de uma forma insólita, imprevisível e não domesticável:
E se estamos a falar de beleza, acho que esta é a verdadeira beleza. A verdadeira beleza não se deixa subjugar.
Como o céu?
Sim. Como o céu.
Colocámos as mochilas às costas e mergulhámos de novo no denso arvoredo (no ventre da baleia). Caminhámos mais três horas. Então, de repente, a floresta abriu-se, como se abre um livro, e vimos, diante de nós, as duas grandes pedras de que Luan nos falara. Escutei, pela primeira vez, o som macio da água correndo entre a folhagem – sim, era um rio!
Até então eu vira a água em muitas outras formas. Vira-a desenhando nuvens. Vira-a cair do céu, em rajadas bruscas, e, por vezes, transformada em duras pedras de gelo. Vira-a, lá muito em baixo, brilhando entre as nuvens. Contudo, nunca a vira assim, uma corrente escura, saltando sobre o verde e sobre as rochas.
Nesse momento alguém gritou o meu nome. Era o meu pai. Estava ocupado a desenhar alguma coisa, com uma comprida vara, na areia do terreiro. Diante dele encontrava-se um homem minúsculo que logo adivinhei ser Jerónimo. Havia ainda três outros sujeitos e duas mulheres. Júlio largou a vara e correu para mim de braços abertos:
Carlos! Sabia que virias...
Pai, devias ter-me acompanhado.
Lamento. Na altura não acreditei na história da Ilha Verde. Pensei que te faria bem a experiência, por isso te deixei partir...
Fez-me bem.
Abraçámo-nos. Mais tarde mostrou-me a aldeia. As pessoas que ali vivem vieram de diferentes pontos do Brasil. Há vários estrangeiros, entre os quais uma dúzia de filhos do céu. Alguns chegaram ali por acaso. Outros, após muito procurarem, depois de também eles terem escutado a lenda da Ilha Verde. Não é um mundo perfeito. Em todos os paraísos há serpentes. Ou, como diz o meu pai, cada homem é o seu próprio paraíso e o seu próprio inferno.
Não encontrámos na ilha nenhum familiar, ainda que remoto. Jerónimo afirma lembrar-se do velho Lucas, meu bisavô, pajé dos Tucanos. A família mudou-se para São Paulo anos antes do Dilúvio.
Na República da Neblina – é assim que os respetivos habitantes chamam à ilha – encontrei, como no céu, pessoas infetadas pela inveja, pelo ciúme, pelo rancor, e por tantas outras doenças que, desde sempre, afligem a humanidade. Contudo, encontrei também corações generosos e uma vontade coletiva de corrigir os erros do passado.
Sibongile e Mang ficaram lá. Jerónimo reconheceu Mang assim que o viu:
Este chegou aqui há muitos anos, em péssimo estado. Devolvemo-lo ao céu. Uma vez que voltou, pode ficar. Gosto de pessoas teimosas.
Termino de escrever este relato, sentado a uma mesa, na varanda do meu pequeno apartamento, no Paris. Tenciono entregá-lo, amanhã, ao governo da cidade. Escrevi-o a pedido de Jerónimo e dos habitantes da República da Neblina.
Conscientes de que não poderão continuar a esconder-se, os cidadãos da República da Neblina requerem a proteção das grandes nações, de forma a preservar o pouco que subsiste das grandes florestas. Aceitam receber grupos restritos de visitantes, na condição de que estes respeitem as leis do território e não perturbem a frágil ecologia da ilha.
Aimée, sentada diante de mim, estuda velhos mapas da terra. Há pouco mostrou-me o Aconcágua, o ponto mais elevado das Américas, de todo o hemisfério sul e o mais alto fora da Ásia. Aconcágua, em língua aimara, significa algo como “sentinela branca”. Aimée quer procurar o Aconcágua.
Porque não?
O melhor da viagem é o sonho.

Utrecht, 28 de abril de 2013

José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu

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