(Liberdade:
condição de um ser não sujeito ao constrangimento de limites
físicos ou de pensamento. A possibilidade de correr sem tropeçar em
muros ou paredes, ou sem cair no vazio. O capim crescendo para o céu.
O destino de todos os perfumes, em particular do cheiro da terra
molhada.)
Luan
trazia uma mochila de couro a tiracolo. Retirou do interior da
mochila uma pequena caixa de madeira. Abriu-a, num gesto teatral,
como um mágico dos tempos antigos, e deu-nos a ver quatro bolinhas,
rugosas como pedras, de um vermelho intenso e luminoso.
– Tirem
uma. Comam.
– O
que é isso?
– Faz
o que te digo.
Estendeu
a caixa a Aimée. Ao contrário de mim, ela não hesitou. Agarrou
numa das bolinhas e colocou-a na boca:
– Humm,
gostei. Meio ácida, meio doce.
Imitei-a.
A textura lembrava a do gengibre. O sabor, acre e doce, com um leve
travo a terra, não tinha paralelo com nada do que eu provara até
então. Deixava na boca um rasto de luz.
– Vais
dizer-nos o que é isto?
Luan
sorriu. Sempre invejei o sorriso dele. Na pior refrega basta-lhe
sorrir – sorrir daquela forma – para desarmar os oponentes.
– Após
o regresso do teu pai a Luanda começaram a acontecer coisas –
contou. – Coisas estranhas e velozes.
Assim
que regressou a Luanda, Júlio reuniu-se com os responsáveis da
aldeia. Contou o que se passara com ele, depois que caíra numa das
redes de proteção do Paris, embora, por essa altura, ainda se
sentisse muito confuso e de pouco se lembrasse. Luanda enviou uma
mensagem ao governo francês, acusando Boniface de sequestro de um
dos seus cidadãos e pedindo uma satisfação. Antes de receberem
qualquer resposta, porém, chegou a notícia de que os piratas haviam
tomado o Paris. Foi um enorme choque.
Júlio,
pessoa habitualmente calma e aberta, não conseguia conter a
inquietação. Passava muito tempo na biblioteca central, estudando
velhos papéis, ou fechava-se com dois ou três amigos na biblioteca
da Mutamba, a balsa do meu tio Ismael, para onde se mudara,
juntamente com a minha mãe. Uma noite, ao entrar na sala de jantar,
Luan surpreendeu uma conversa entre os dois casais.
– Não
são sonhos – afirmava o meu pai. – Sei que não são sonhos. São
recordações. Pouco a pouco, me vou recordando de tudo. Eles me
davam alguma coisa para beber. Um chá. Aquilo me provocava uma
soneira. Nesse estado, meio dormindo, me faziam perguntas. Sempre as
mesmas perguntas. Queriam saber se era verdade, como constava no meu
passaporte, que eu nascera na amazónia brasileira, e porque me
chamava Tucano. Expliquei-lhes que era o nome de uma tribo de índios
da região onde nasci. Havia esse costume de as pessoas tomarem o
nome da sua tribo. Boniface conhecia os Tucanos. Não sei como.
Parecia saber mais sobre os Tucanos do que eu próprio. Meu pai era
tucano. Meu avô foi pajé. Boniface me perguntou por uma raiz
chamada itapiranga. Esse nome me recorda alguma coisa. Contudo não
sei o que seja. Talvez algum brasileiro me possa ajudar.
Uma
tarde viram aproximar-se um balão pequeno, pintado de branco, azul e
vermelho. Ismael foi buscar os binóculos e leu alto o nome: La
Rochelle.
O
meu pai assustou-se:
– Uma
balsa francesa?!
A
balsa pediu autorização para atracar. O capitão explicou que
fugira do Paris e necessitava de água e mantimentos. A população
começou a juntar-se ao redor da torre de atracagem, para assistir ao
desembarque dos franceses e escutar, em primeira mão, notícias da
Cidade-Luz. Júlio, contudo, desconfiou da intenção dos visitantes.
Eram três homens. Um deles pareceu-lhe familiar.
Enquanto
os refugiados se reuniam com o governador de Luanda e outros notáveis
da aldeia, Júlio e Ismael subiram furtivamente pela escada de corda
que dava para a La Rochelle. Arrombaram a porta da cabina de comando
e, numa vistoria rápida, confirmaram as suspeitas de Júlio.
Encontraram uma metralhadora, duas pistolas e diversas fotografias do
meu pai. Juntaram tudo aquilo, e dirigiram-se ao jango, interrompendo
a reunião. Os três homens foram logo presos. Um deles, um
colombiano barbudo, chamado Mallo, aceitou falar, na condição de
que o deixassem partir na La Rochelle, não de volta ao Paris, porque
Boniface nunca o perdoaria, talvez até o mandasse matar, mas para
recomeçar uma vida nova no vasto céu. Vinham, confessou, com a
missão de sequestrar O Voador. Boniface parecia acreditar que
O Voador o poderia conduzir até uma ilha verde, um local
conhecido antes do Dilúvio por Pico da Neblina, no qual, segundo a
lenda, persistiria uma população indígena. Estes índios, os
Tucanos, cultivariam uma raiz, um tubérculo, ou uma fruta, capaz de
abrandar o ritmo cardíaco, desacelerando todo o metabolismo. O
consumo regular de tal raiz permitiria resistir indefinidamente, e
sem grande desconforto, às altas temperaturas.
– Um
momento, um momento! – Aimée interrompeu-o, atordoada. – Aquilo
que nos ofereceste a provar, aquelas raízes...
– São
frutos...
– Ou
isso...
– Não
te sentes melhor?
Aimée
riu-se. Ri-me com ela. Talvez fosse ilusão, talvez fosse apenas
porque uma leve brisa ascendia da floresta, refrescando-nos a pele,
mas a verdade é que me sentia, de repente, muitíssimo melhor.
Respirava sem esforço. Era como se estivesse lá em cima, estendido
numa rede, a ler um livro, no convés da Maianga, ou, ainda mais
alto, na varanda do meu pequeno apartamento, no Paris.
– Que
coisa incrível – suspirou Aimée. – E o que aconteceu a seguir?
Como é que tu vieste aqui parar?
Luan
retomou a sua história. Contou como, receosos de uma nova investida
dos homens de Boniface, dessa vez com meios mais poderosos, a
população de Luanda optara por cortar todas as comunicações com o
exterior. A aldeia desapareceu dos mapas. Nos dias seguintes, Júlio
foi ficando cada vez mais inquieto. Por um lado, estava preocupado
comigo. Por outro, começara a acreditar na lenda da Ilha Verde.
Tomou então a decisão de partir na La Rochelle. Mallo aceitou
acompanhá-lo na condição de que, caso não me encontrassem, nem à
ilha, no prazo de dois meses, retornariam a Luanda, e, de lá, após
Júlio desembarcar, poderia prosseguir viagem. Encontrando a ilha,
poderia também partir, se assim o desejasse. Luan pediu para os
acompanhar. Argumentou que o pirata, ou ex-pirata, era bem capaz de
aproveitar um momento de distração de Júlio (por exemplo, enquanto
este dormia) para o neutralizar, entregando-o depois, conforme o
plano original, nas mãos de Boniface, no Paris. Era um argumento tão
forte que o meu pai se deixou convencer.
Foi
assim que os três se fizeram ao céu. Dispunham de bons mapas, dos
tempos antigos, levados de empréstimo dos arquivos de Luanda, mas o
sistema de navegação da balsa era bastante rudimentar. Júlio não
desanimou. Deixou-se guiar pela intuição. Ri-me. Deixar-se guiar
pela intuição é algo que o meu pai faz muitíssimo bem. Hoje,
olhando para trás, percebo que sempre partilhou esse obscuro talento
com Sibongile. “Quem tem um coração nunca se perde”, costuma
repetir. “Só o coração é capaz de encontrar o que a razão
perdeu.” Acredito que terá herdado tal habilidade do meu avô, o
velho Lucas, pajé dos Tucanos. Talvez eu próprio a possua,
escondida, ou atrofiada, e precise apenas de a exercitar.
Guiado
pelo coração, Júlio contornou tempestades, e iludiu as correntezas
do céu. A determinada altura, avistaram, muito ao longe, a silhueta
dourada do Paris. O imenso dirigível convergia, é claro, para o
mesmo destino, embora com a lentidão e a errância de um mastodonte
cego. A La Rochelle, pelo contrário, seguia, determinada e firme, em
linha reta. Em poucos dias, acharam a ilha. O meu pai preparou duas
mochilas, enchendo-as de cantis com água, pacotes de peixe seco e
meia dúzia de instrumentos de sobrevivência, como canivetes e
fósforos, e desceu, seguido de Luan. Assim que se viu sozinho, o
pirata, ou ex-pirata, ergueu âncora e desapareceu.
– Não
compreendo – protestei. – Porque o deixaram sozinho?
– O
teu pai estava ansioso por descer, pois o Paris podia chegar a
qualquer instante. Não me queria deixar sozinho com o Mallo. Além
disso nunca duvidou de que tu virias.
Era
uma manhã de céu sereno e transparente, dois de fevereiro. O sol
brilhava sobre as rochas. Júlio soltou o cabo, ajoelhou-se e beijou
as rochas. Luan não sabia o que fazer. Ficaram os dois ali, como nós
depois deles, mudos de espanto. A floresta parecia avançar,
cercando-os, vinda da bruma. Então, um canto irrompeu a toda a
volta, muito suavemente, como no interior de um sonho o rumor de um
rio. Pouco a pouco afirmou-se e veio subindo. Júlio sacudiu a
cabeça, incrédulo:
– Eu
conheço isto – murmurou. – Conheço esta canção.
Luan
apurou o ouvido. Conseguiu distinguir algumas palavras, frases
soltas:
...
águas...
...
no fundo do mar...
...
como se saúda a Rainha do Mar?...
Quem
quer que estivesse ali, para além das espessas ramadas, cantava em
português. Júlio ergueu-se, batendo palmas ao ritmo da música, e
começou a dançar, ao mesmo tempo que juntava a sua voz ao coro que
crescia. Luan viu que surgiam figuras humanas na orla da floresta.
Era difícil distingui-las da folhagem em redor, pois traziam o corpo
pintado de vários tons de verde e moviam-se como se movem as árvores
tocadas pela brisa.
– O
meu pai não dança – contestei, incrédulo. – Nunca o vi dançar.
Não sabe dançar.
Luan
riu-se:
– E
no entanto dançou. Deve ter dançado bem, deve ter cantado ainda
melhor, porque em pouco tempo toda aquela gente nos rodeava,
oferecendo-nos frutas, frutas incríveis, que eu nunca vira antes, e
água fresca. Entre os frutos que eu nunca vira antes estavam esses
que vocês comeram há pouco.
– E
depois?
– Levaram-nos
para a floresta. Eles vivem em grandes casas redondas, feitas de
bambu, numa aldeia entalada entre dois enormes penedos. Um rio corre
ali perto. Nessa noite dormimos lá. Na manhã seguinte, acordámos
com os tiros. Os piratas tinham entrado na aldeia.
Luan
foi arrastado para a floresta por três rapazes. Ainda viu Boniface,
à frente de um grupo de piratas, todos eles dobrados pelo peso do
calor e do cansaço, gritando e disparando para o ar. Os rapazes
moviam-se através da floresta com a desenvoltura de aves no céu.
Riam-se diante da inépcia do meu primo que tropeçava a cada passo
nas raízes expostas ou se arranhava ao tentar segurar-se a um tronco
coberto de espinhos. Um dos rapazes, chamado Marco, ofereceu-lhe um
dos frutos vermelhos:
– Você
vai se sentir melhor.
Horas
mais tarde encontraram um outro grupo. Logo a seguir outro, e depois
outro. Júlio não estava em nenhum deles. Um velho alto, de rosto
anguloso, que parecia ter sido cinzelado em madeira por um escultor
apressado, tranquilizou Luan:
– Seu
tio está seguro. Todo o mundo fugiu. Ninguém ficou ferido. Só
temos de esperar um dia ou dois...
– Esperar
o quê?
– Esperar
que a floresta os coma...
Luan
olhou-o, horrorizado:
– O
quê?!
– A
floresta devora o mal. A natureza erra, mas, cedo ou tarde, sempre se
liberta do erro.
O
meu primo levou algum tempo a compreender a observação do velho.
Escondidos entre as árvores viram os piratas virar e revirar a
aldeia, impacientes, à procura dos tubérculos vermelhos. Mal o sol
começou a declinar chegaram os mosquitos. Uma mulher esfregou o
corpo de Luan com um óleo macio, cujo perfume, levemente ácido,
mantém os insetos à distância. Boniface e os seus homens, porém,
não estavam preparados para mais aquele infortúnio. Giravam,
exaustos, davam grandes palmadas no próprio corpo, tentando escapar
às ávidas nuvens cinzentas que lhes caíam em cima. Por fim
despiram-se, maldizendo a ilha e as suas armadilhas, e lançaram-se
às águas do rio:
– Péssima
ideia – comentou Marco. – O rio, naquele troço, tá cheio de
jacarés.
Minutos
depois, um dos piratas saltava para a margem, aos gritos, coxeando,
sangrando muito do pé direito. Os outros correram também para
terra. Boniface, começou a cobrir o corpo com lama, para aplacar as
ferroadas, no que foi imitado pelos restantes. O homem ferido caiu,
chorando e lamentando-se, sem que os companheiros se incomodassem com
ele. Pareciam seres de um outro planeta, e, de certa forma, eram.
Vultos escuros rodopiando no charco da noite.
Quando
amanheceu, todos os piratas jaziam de borco.
– Naquele
estado – continuou Luan –, assim imóveis e cobertos de lama, era
como se fizessem parte do chão. Ou melhor, era como se a terra
estivesse a engoli-los.
– Temos
de os ajudar! – pediu Luan. – Aqueles homens vão morrer.
O
velho encolheu os ombros:
– Não
são homens bons.
– Bons
ou maus, não os podemos deixar morrer.
– Podemos
sim. Claro que podemos. Mas não se preocupe que a decisão não será
sua. Jerónimo decidirá.
Um
sujeito minúsculo, de pele muito negra e reluzente, vestido apenas
com uma velha bermuda amarela, irrompeu da floresta, aos saltos, como
um esquilo. Aproximou-se do terreiro, no qual estavam estendidos os
dez piratas, e ficou um momento a observá-los. Voltou-se para trás,
ergueu o braço direito, e logo surgiu um outro homem. Era Júlio. O
velho riu-se. Mostrou-o a Luan:
– Veja!
Seu tio está com Jerónimo.
Os
dois homens ajoelharam-se junto a Boniface. Júlio tirou um cantil da
mochila e, erguendo a cabeça do chefe dos piratas, deu-lhe a beber
um bom trago. A seguir Jerónimo tirou uma das milagrosas bolinhas
vermelhas do bolso da bermuda e enfiou-a na boca de Boniface. Fizeram
o mesmo com os outros piratas. O que fora mordido por um jacaré,
porém, não deu sinais de vida. Júlio soltou-o, num gesto de
desânimo. Aquele, já a floresta comera.
– E
os outros piratas? – perguntei. – O que fizeram com eles?
– Nada.
Jerónimo deixou-os soltos. Limitou-se a destruir as armas. Boniface
e mais dois fugiram para a floresta. Os outros seis continuam lá, na
aldeia. Ajudam nas lavras. O teu pai acha que talvez se integrem. Só
depende deles. Seja como for, nunca mais poderão regressar ao céu.
Esta gente não confia neles.
– É
natural. Tu confias?
– Não.
Não confio. Mas concordo com o teu pai. Temos de lhes dar uma
oportunidade.
– Nós
vimos Boniface – contou Aimée. – Não parecia muito bem.
– Acho
improvável que esses três consigam sobreviver, sozinhos, na
floresta. Ou voltam à aldeia ou morrem todos. – Luan disse isto e
pôs-se de pé num salto. – Agora vocês já sabem tudo. Vamos!
– Ainda
não sabemos tudo – contestei. – Por exemplo, o que fazias aqui?
Estavas à nossa espera?
– Sim.
Vimos chegar a vossa pequena frota. Júlio calculou que fossem saltar
aqui e mandou-me à frente.
– Sozinho?
– Não.
Sozinho perdia-me em dois minutos. Vim com dois amigos, mas eles
ficaram à espera, na floresta. Não gostam de espaços tão abertos.
Acho que têm medo de que o céu lhes caia na cabeça. Agora vamos.
Descemos
com ele. Dois rapazes esperavam por nós estendidos numa rede, presa
aos troncos de duas árvores. Reconheci facilmente uma delas, um
pau-mulato (Calycophyllum spruceanum), devido ao tronco, muito
direito, liso e brilhante, e de uma espantosa cor de cobre. Não fui
capaz de identificar a segunda árvore. Lamentei não ter trazido um
bom guia de árvores tropicais.
Luan
apresentou-nos aos rapazes:
– Este
é Marco, de quem já vos falei. E este é Óscar.
Marco
e Óscar cumprimentaram-nos com um tímido aperto de mão. Enrolaram
a rede e guardaram-na num belo cesto de vime trançado. A seguir
mergulharam na bruma, e nós fomos atrás. Era como respirar o ar de
uma outra boca. Suponho que seguimos uma trilha, mas para mim, para
Aimée, para Luan, aquilo assemelhava-se a um labirinto verde,
infinito e idêntico. Nunca pensei que pudessem existir tantos tons
de verde. Até àquele dia o mundo, para mim, estava pintado de azul
e branco, e de todas as misturas entre o azul e o branco. Caminhámos
mais de duas horas. Por fim, detivemo-nos numa minúscula clareira,
para repousar, beber água e contemplar o céu. Quis saber se ainda
faltava muito. Marco apontou para ocidente.
– Está
perto.
Luan
riu-se:
– Para
eles, tudo está perto. Isto é um pequeno passeio.
Descalcei-me.
Doíam-me os pés. Aimée queixou-se do mesmo. Marco debruçou-se
sobre mim:
– É
bonito, o céu?
– Sim,
o céu é bonito.
– Mais
bonito do que a terra?
Não
respondi logo. Pensei um momento:
– Há
coisas que só começo a compreender agora. Por exemplo, que o céu é
mais bonito havendo o mar e havendo terra. Que uma terra sem céu
também não seria bonita.
Aimée
interveio, curiosa:
– Estão
a falar de quê, nessa vossa língua misteriosa?!
Debatíamos,
expliquei-lhe, a beleza do céu e da terra. O que pensava ela? Aimée
lembrou o que repetiam os velhos. Na terra, diziam eles, não havia
paredes. Contudo, ali, naquela floresta, tudo eram paredes.
Caminhando entre as árvores imensas, que mal deixavam passar a luz
do sol; sobre o chão húmido e poroso, coberto de folhas, ela
sentia-se, como o profeta Jonas, a ser engolida por uma baleia.
– Ui,
que imagem terrível! Não pareces muito entusiasmada...
Ao
contrário, protestou Aimée. A terra, ao menos ali, não se
assemelhava ao que imaginara. Era muito mais bonita, de uma forma
insólita, imprevisível e não domesticável:
– E
se estamos a falar de beleza, acho que esta é a verdadeira beleza. A
verdadeira beleza não se deixa subjugar.
– Como
o céu?
– Sim.
Como o céu.
Colocámos
as mochilas às costas e mergulhámos de novo no denso arvoredo (no
ventre da baleia). Caminhámos mais três horas. Então, de repente,
a floresta abriu-se, como se abre um livro, e vimos, diante de nós,
as duas grandes pedras de que Luan nos falara. Escutei, pela primeira
vez, o som macio da água correndo entre a folhagem – sim, era um
rio!
Até
então eu vira a água em muitas outras formas. Vira-a desenhando
nuvens. Vira-a cair do céu, em rajadas bruscas, e, por vezes,
transformada em duras pedras de gelo. Vira-a, lá muito em baixo,
brilhando entre as nuvens. Contudo, nunca a vira assim, uma corrente
escura, saltando sobre o verde e sobre as rochas.
Nesse
momento alguém gritou o meu nome. Era o meu pai. Estava ocupado a
desenhar alguma coisa, com uma comprida vara, na areia do terreiro.
Diante dele encontrava-se um homem minúsculo que logo adivinhei ser
Jerónimo. Havia ainda três outros sujeitos e duas mulheres. Júlio
largou a vara e correu para mim de braços abertos:
– Carlos!
Sabia que virias...
– Pai,
devias ter-me acompanhado.
– Lamento.
Na altura não acreditei na história da Ilha Verde. Pensei que te
faria bem a experiência, por isso te deixei partir...
– Fez-me
bem.
Abraçámo-nos.
Mais tarde mostrou-me a aldeia. As pessoas que ali vivem vieram de
diferentes pontos do Brasil. Há vários estrangeiros, entre os quais
uma dúzia de filhos do céu. Alguns chegaram ali por acaso. Outros,
após muito procurarem, depois de também eles terem escutado a lenda
da Ilha Verde. Não é um mundo perfeito. Em todos os paraísos há
serpentes. Ou, como diz o meu pai, cada homem é o seu próprio
paraíso e o seu próprio inferno.
Não
encontrámos na ilha nenhum familiar, ainda que remoto. Jerónimo
afirma lembrar-se do velho Lucas, meu bisavô, pajé dos Tucanos. A
família mudou-se para São Paulo anos antes do Dilúvio.
Na
República da Neblina – é assim que os respetivos habitantes
chamam à ilha – encontrei, como no céu, pessoas infetadas pela
inveja, pelo ciúme, pelo rancor, e por tantas outras doenças que,
desde sempre, afligem a humanidade. Contudo, encontrei também
corações generosos e uma vontade coletiva de corrigir os erros do
passado.
Sibongile
e Mang ficaram lá. Jerónimo reconheceu Mang assim que o viu:
– Este
chegou aqui há muitos anos, em péssimo estado. Devolvemo-lo ao céu.
Uma vez que voltou, pode ficar. Gosto de pessoas teimosas.
Termino
de escrever este relato, sentado a uma mesa, na varanda do meu
pequeno apartamento, no Paris. Tenciono entregá-lo, amanhã, ao
governo da cidade. Escrevi-o a pedido de Jerónimo e dos habitantes
da República da Neblina.
Conscientes
de que não poderão continuar a esconder-se, os cidadãos da
República da Neblina requerem a proteção das grandes nações, de
forma a preservar o pouco que subsiste das grandes florestas. Aceitam
receber grupos restritos de visitantes, na condição de que estes
respeitem as leis do território e não perturbem a frágil ecologia
da ilha.
Aimée,
sentada diante de mim, estuda velhos mapas da terra. Há pouco
mostrou-me o Aconcágua, o ponto mais elevado das Américas, de todo
o hemisfério sul e o mais alto fora da Ásia. Aconcágua, em língua
aimara, significa algo como “sentinela branca”. Aimée quer
procurar o Aconcágua.
Porque
não?
O
melhor da viagem é o sonho.
Utrecht,
28 de abril de 2013
José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu
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