Alba acabou de fazer um curso de massagem e estreou em mim. Tem talento, dormi na cama dela, eu, a rainha da vigília, uma proeza e tanto. Está emagrecida, vincos ao redor da boca, olhos de febre. De insônia, ela disse, minha vontade é sentar numa pedra e ficar quieta pelo resto da vida, não pentear nem os cabelos, errei tanto com filho, a realidade é horrorosa, não estou aguentando nada de nada. Entendo por que o Cirilo matou o cachorro da mulher a pontapé, entendo, sim. Tomei birra de apartamento novo, tudo igual, os cômodos fazem quina, o que é isso, meu deus, não tem um cômodo certo, os banheiros com o mesmo barradinho decorado, me dá vontade de gritar, que bobeira é essa que deu no mundo? Tou rasgando papel, encho saco e mais saco de papel rasgado, só deixei no armário um prato e um copo pra cada um, minha gana é desentupir o mundo, embalagem de plástico me dá tontura. A última vez que fiquei assim igual a Alba, tive de tomar remédio forte. Como a Joana, ela também não conhece o Peru e descobre coisas, só fala em horror da realidade. É mesmo paralisante pro bem ou pro mal. Num momento da minha viagem, numa capela comum, Agnes começou a cantar, ao mesmo tempo frágil e firme, como se um fio de cabelo fosse um fio de diamante, um canto para a Virgem Maria, um louvor, num tom que pedia fôlego além das forças de Agnes, mas o canto não se quebrava e suspendia o instante. Éramos quatro pessoas, Antônio, já pronto para nos fotografar, saiu da capela. Ninguém falou nada. Víramos uma realidade, fendera-se uma cortina. Víramos o quê? Existíramos no que é. Conheci um belo ídolo dos incas, ídolo de grandes olhos a que chamavam, parece, O QUE VÊ. Ao Senhor Jesus chamamos nós O VIVENTE. Pagãos e cristãos, tememos e adoramos. Cuzco à noite, a cidade mais bela que já vi, suspendida no tempo por uma luz amarela. Ficar doente é um dos preços que se paga pela graça de ver. Alba também vai melhorar.
Adélia Prado, in Quero minha mãe
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