Em
incontáveis oportunidades, eu fui solicitado a escrever uma
autobiografia, mas os pedidos nunca vinham em boa hora. Em geral, eu
estava cuidando da família ou em turnê, circunstâncias longe de
serem ideais para uma tarefa que demanda vastos períodos de
concentração. Mas tem uma coisa que eu sempre consegui fazer, em
casa ou na estrada: compor canções novas. Algumas pessoas, quando
chegam a certa idade, gostam de consultar o diário e relembrar os
fatos cotidianos de antigamente. Esse tipo de caderno eu não tenho.
Mas tenho as minhas canções – centenas delas –, que na prática
servem para a mesma finalidade. E essas canções abrangem a minha
vida inteira, porque, desde os quatorze anos, quando adquiri o meu
primeiro violão em nossa casinha em Liverpool, o meu instinto
natural foi começar a compor canções. Desde então, nunca mais
parei.
Existe
todo um processo para aprender a compor letra e música das canções,
mas para cada pessoa isso funciona de forma diferente. Para mim, o
primeiro passo foi copiar outras pessoas, como Buddy Holly e Little
Richard. E também Elvis – só mais tarde fui saber que as canções
não eram de autoria dele. Em outras palavras, eu sabia de cor e
salteado os clássicos desses artistas e fui aprendendo o bê-á-bá
do rock’n’roll em suas origens. No começo da adolescência, eu
quis me arriscar a escrever as minhas próprias canções. Eu
começava com a ideia mais singela e via no que dava.
A
letra mais antiga deste livro é da canção “I Lost My Little
Girl”. Eu a escrevi sob o impacto da morte de minha mãe. Ela
estava com apenas 47 anos; eu, quatorze. Já em 1956, quando escrevi
a canção, eu me embrenhei numa vereda musical: você pode escutar
que a sequência de acordes desce, enquanto a melodia ou o vocal
sobem. Estou brincando com coisinhas musicais, coisas muito simples,
que já me fascinavam, embora eu nem soubesse direito o que eram. O
mais espantoso é que John Lennon, na casa da tia dele, Mimi, fazia
algo parecido. Por isso, na primeira vez que nos reunimos para
mostrar um ao outro o que já tínhamos escrito, logo percebemos que
nós dois éramos fascinados por composição de letra e música, e
que, trabalhando em parceria, poderíamos chegar bem mais longe.
Em
nossas primeiras tentativas, é possível notar o quanto éramos
inexperientes. Não tínhamos uma consciência verdadeira sobre o ato
da composição de letra e música. Mas, quando começamos os
Beatles, percebemos que de repente já tínhamos um público ávido.
No início, então, escrevíamos as canções com esse público em
mente: em essência, meninas e moças. As primeiríssimas canções,
como “Thank You Girl”, “From Me to You” ou “Love Me Do”,
eram direcionadas a nossas fãs, embora muitas delas fossem
inspiradas em nossas histórias pessoais. Sabíamos o potencial que
essas canções tinham de se tornar sucessos e poderíamos ter
continuado a compor canções assim para sempre. Mas, à medida que
fomos amadurecendo, percebemos que era possível enveredarmos por
outros caminhos da composição de letra e música, muitas vezes
atingindo outro patamar. Em outras palavras, compor canções para
nós mesmos.
Claro,
era necessário manter o equilíbrio entre as canções que nos
interessavam pessoalmente e aquelas dedicadas aos fãs, e isso é
algo delicado. Mas, quanto mais arriscávamos do ponto de vista
experimental, mais ficava evidente que poderíamos ir a qualquer
lugar, ou seja, nos embrenharmos numa direção mais criativa.
Poderíamos adentrar num mundo surrealista, onde as histórias não
fossem exatamente lineares e onde as canções não precisassem
necessariamente fazer sentido. Desde a infância, sou um grande fã
de Lewis Carroll. Primeiro eu li as obras dele em casa, depois na
escola. Assim, Carroll foi se tornando uma relevante inspiração
quando comecei a fazer trocadilhos e jogos de palavras, quando a
letra acaba evoluindo para algo mais inesperado, como em “Lady
Madonna” ou “Penny Lane”. Foi então que nos deparamos com esta
incrível revelação: podíamos ser poéticos sem perder o contato
com nossos fãs! Até podemos dizer que aconteceu exatamente o
contrário. Ou seja, à medida que fomos nos tornando mais
experimentais e enveredamos mais para o fluxo de consciência, a
nossa base de fãs aumentou.
Com
o tempo, passei a encarar cada canção como um novo quebra-cabeça.
Ela iluminaria algo importante naquele momento da minha vida, embora
os significados nem sempre fossem óbvios na superfície. Fãs ou
leitores – ou até mesmo críticos – que realmente queiram
aprender mais sobre a minha vida devem ler minhas letras: elas são
mais reveladoras do que qualquer livro sobre os Beatles. Contudo, a
ideia ficou em suspenso até 2015, quando John Eastman – que além
de cunhado é meu amigo e conselheiro – e Bob Weil, meu editor,
deram o incentivo inicial para que eu fizesse este livro. É que esse
processo de repassar, uma a uma, centenas de letras, algumas delas
compostas na minha adolescência, ainda me parecia um tanto
desafiador, para não dizer condescendente. Era como se eu não
pudesse me dar ao luxo de dedicar tempo a esse projeto. Sempre
direcionei todas as minhas energias criativas à música. Só mais
tarde comecei a me preocupar com os significados internos, se é que
realmente me preocupei. Mas, assim que Paul Muldoon e eu começamos a
discutir as origens e influências de todas essas canções, eu me
dei conta de que explorar em profundidade as letras de minhas canções
seria um processo útil e revelador.
Em
primeiro lugar, porque notei que Paul era um bom ouvinte. Não era um
biógrafo em busca de fofocas ou segredos, esperando descobrir algo
mais sobre uma suposta rivalidade entre mim e John ou Yoko. Também
não era um fã extremado que se tornou escritor, buscando
transformar cada palavra enunciada numa espécie de texto sagrado. A
primeira coisa que me atraiu foi o fato de Muldoon ser poeta. Assim
como eu, ele aprecia as palavras e entende a poética das palavras –
como a letra de cada canção se converte numa forma de música
própria, que se torna ainda mais mágica quando combinada com a
melodia.
As
nossas conversas transcorreram ao longo de cinco anos, algumas em
Londres, mas a maioria em Nova York. Sempre que eu estava na cidade,
eu fazia questão de me encontrar com ele. Esse é um período de
tempo considerável e, quanto mais conversávamos, mais percebíamos
o quanto tínhamos em comum. Para mim foi algo natural me identificar
com Paul, não só por ele ser um poeta, mas porque compartilhamos
raízes irlandesas, esse elo ancestral que une o passado de nossas
famílias. Sem falar que Paul realmente toca rock’n’roll e compõe
suas próprias canções.
Nunca
imaginei que eu iria querer analisar estas letras, boa parte delas
escrita nas décadas de 1960 e 1970. Havia anos que eu não pensava
em muitas delas, e fazia décadas que eu não tocava mais ao vivo
outras tantas. Mas Paul atuou como minha caixa de ressonância, e o
que seria um desafio se tornou algo muito agradável – revisitar as
canções e decupá-las para descobrir padrões que eu nem sonhava
que existiam.
O
ato de compor uma canção é uma experiência única, diferente de
tudo que eu conheço. Você tem que estar com o humor certo e começar
com a mente limpa. Precisa confiar em seus primeiros sentimentos,
porque no início, na verdade, você nem sabe para onde está indo.
As conversas com Paul eram assim. Antes de cada reunião, definíamos
as canções que seriam analisadas; afora isso, a liberdade era
total. O inevitável aconteceu: lembranças há muito adormecidas
foram despertadas, e novos significados e padrões subitamente
emergiram.
A
melhor comparação em que consigo pensar é um antigo álbum de
fotos esquecido num sótão empoeirado. Alguém resgata o álbum e,
súbito, página após página, as reminiscências vão sendo
avivadas. Algumas das fotos antigas parecem nítidas e familiares,
mas outras estão um pouco mais nebulosas. Ao me confrontar com as
palavras, foi desafiador lembrar como essas canções surgiram: como
eu as estruturei; que evento – uma visita ao set de um filme, uma
rusga com alguém que eu considerava um amigo – as inspirou; e
quais eram meus sentimentos na época.
Levando
em conta como a memória funciona, com frequência as canções mais
antigas, compostas na juventude, eram as mais fáceis de lembrar. Por
exemplo, consigo facilmente evocar uma conversa com a mãe de Jane
Asher, uma senhora com quem sempre tive uma grande afinidade,
entabulada quando morei na Wimpole Street. Na época eu tinha vinte e
poucos anos. Por outro lado, recordações de shows de apenas dez ou
quinze anos atrás eram mais difíceis de recuperar. Por isso, as
conversas com Paul foram inestimáveis. Um verso antigo conduzia a
outro, até eu ser subitamente inundado por uma torrente de
lembranças que eu nem sabia que existiam.
É
bem parecido com entrar numa floresta. Primeiro, você só enxerga o
matagal, mas à medida que vai penetrando mata adentro, começa a
admirar coisas que antes talvez não houvesse notado. Você olha para
todos os lados, para cima, para baixo, percebendo todos os tipos de
detalhes que a princípio não eram aparentes. E, após explorar
essas coisas, a sua inclinação é sair da floresta. Esse é um
padrão desenvolvido ao longo de muitos anos; a tendência é trilhar
sempre o mesmo caminho, mas se você continua a se repetir (e como é
fácil fazer isso), talvez um dia acabe reconhecendo que não fez
nenhum progresso.
Um
marceneiro, genuíno artesão, talvez encare as coisas de modo
diferente. Se ele fizer sempre a mesma cadeira, tudo bem para ele,
mas que tal se ele abraçasse o desafio de fabricar sempre um modelo
novo? Teria que pensar no feitio das pernas, na estrutura do assento
e no peso que ele seria capaz de suportar. A mobília fabricada por
ele começa a adquirir um certo estilo, mas cada cadeira sempre tem
um diferencial. A mesma coisa aconteceu com minhas canções.
Boa
parte de minhas canções é inspirada em pessoas que eu conheci em
Liverpool ou no entorno da cidade. E os leitores destes comentários
talvez se surpreendam com a frequência com que vou mencionar meus
pais. Uma coisa é certa: quando comecei este projeto, Jim e Mary
McCartney não foram as primeiras pessoas que me vieram à mente.
Porém, à medida que comecei a pensar nas canções escritas ao
longo de todas as fases da minha carreira, não pude deixar de
perceber que, mesmo sem ter consciência disso, eles foram a
inspiração original de muita coisa que eu escrevi.
Nesse
ponto eu tive muita sorte, porque meus familiares mais próximos de
Liverpool eram todos gente simples da classe trabalhadora. A postura
deles não era religiosa, mas eram boas pessoas e nos mostraram o bom
caminho. Na escola e na igreja, tivemos contato com uma religião
mais formal – digamos, a versão de Jesus –, mas o meu próprio
senso de bondade, de um certo tipo de espiritualidade, já vinha de
berço. As convicções de meus pais tiveram um grande impacto em
mim. Por isso, naturalmente, cresci pensando que a coisa certa é ser
tolerante, a coisa certa é ser bom. Em casa, nunca ficavam nos
dizendo: não faça isso, não faça aquilo. E na adolescência
pensávamos que o mundo inteiro funcionava assim, então, quando
amadureci e me tornei capaz de colocar meus próprios sentimentos e
ideias nas canções, eu parti desses alicerces.
Eu
tinha apenas quatorze anos quando a minha mãe morreu. Como ela
faleceu tão precocemente, talvez você possa imaginar que ela não
teve uma grande influência nas minhas canções. Porém, quanto mais
eu penso no passado, mais percebo o efeito dela sobre minha
identidade como compositor. Ao me lembrar dela agora, percebo que
hoje, 29 de setembro, é o aniversário dela, então –
espiritualmente falando – com certeza ela está aqui. A mãe
que conferia se tínhamos raspado o prato e limpado a sujeira atrás
das orelhas parece que nunca vai embora.
Ao
me lembrar de minha mãe, eu penso no sotaque dela. Os sotaques em
Liverpool variam muito, de meio suave e gentil a bem forte e
agressivo, mas o dela era mais cadenciado. Isso porque ela era de
família irlandesa, com influências da Irlanda e do País de Gales.
E o jeito de ser dela era como o sotaque: muito dócil – tão dócil
que eu nunca a ouvi gritar. Nunca precisou. Meu irmão Mike e eu
sabíamos que ela queria o melhor para os filhos.
Ela
não sabia tocar um instrumento musical, mas gostava de música. Não
me esqueço até hoje. Ela preparava o almoço na cozinha assobiando
melodias. Podia ser algo que tinha tocado no rádio ou talvez uma
música que ela conhecia. E eu me lembro de pensar: “Ah, como é
lindo que ela esteja feliz”. Guardo comigo esse sentimento até
hoje.
Naquela
época, no pós-guerra, nós a víamos saindo de casa e voltando em
seu uniforme de enfermeira. Cuidar dos outros era um ofício que ela
exercia naturalmente, dentro ou fora de casa. Se algo acontecia
conosco, uma doença ou um tombo no quintal, lá estava ela de
prontidão. Às vezes, ela resolvia que precisávamos de um clister,
mesmo sendo crianças, e isso já era um pouquinho de exagero. Mas,
no geral, ela era muito amorosa e de voz mansinha.
Eu
gostaria de pensar que sempre demonstrei muita empatia pelas
mulheres, mas só me caiu essa ficha quando uma garota me fez parar e
perguntou: “Já percebeu quantas de suas canções são sobre
mulheres?”. Eu nunca tinha parado para pensar nisso. A única
resposta que me veio foi: “Sim, bem, é que eu amo e respeito as
mulheres”. Mas comecei a notar que os meus sentimentos em relação
às mulheres talvez viessem todos de minha mãe – do fato de que
sempre, em minhas recordações, ela é gentil e feliz. No nível
mais básico, e de maneiras inexplicáveis, ela incorporava a
humanidade que você consegue captar em minhas canções.
A
minha mãe sempre gostou de música, mas quem tinha a musicalidade
nas veias era o meu pai. Em outras épocas, suponho que ele próprio
teria sido músico, mas trabalhou em Liverpool como vendedor de uma
empresa que importava algodão dos EUA, Egito, Índia, América do
Sul – o mundo inteiro. Como pianista amador, tocou numa pequena
banda chamada Jim Mac’s Jazz Band. Estamos na década de 1920, a
era das “melindrosas” em Liverpool, então tocar numa banda deve
ter sido muito emocionante para um jovem da idade dele. Nessa época
eu não estava por perto, claro. Mas quando eu era criança eu o
ouvia tocando piano em casa. Basicamente ele se sentava ao piano da
família e tocava antigas melodias. Em geral, sucessos americanos,
canções como “Chicago” ou “Stairway to Paradise”, tocadas
por Paul Whiteman e sua orquestra. Uma musiquinha chamada “Stumbling”
serviu como uma verdadeira educação para mim, e até hoje sou capaz
de cantarolar essa melodia. Mais tarde, fiquei sabendo que era um
foxtrote americano de 1922. A síncopa em “Stumbling” me deixou
fascinado. Eu me deitava no tapete, a cabeça apoiada nas mãos, só
ouvindo o papai tocar. Todos na casa ouviam-no tocar seus clássicos
prediletos, mas para mim era um aprendizado escutar todos esses
exemplos de ritmo, melodia e harmonia.
Ele
fez questão de passar o bastão adiante. Um dia ele posicionou meu
irmão e eu na sala e nos mostrou o significado de harmonia. “Se
você cantar essa nota ali, e ele cantar essa nota aqui”, ensinou
ele, “então vai haver uma combinação das duas notas soando
simultaneamente, e isso se chama ‘harmonia’.” Às vezes,
ouvíamos uma canção no rádio, e ele indagava: “Estão ouvindo
este som grave aí?”. Dizíamos: “Sim”, e ele respondia: “Bem,
esse é o contrabaixo”.
Em
geral, todo o público de papai consistia em apenas nós quatro, mas,
uma vez por ano, tínhamos cantorias e festanças na véspera de
Ano-Novo. A família estendida – a criançada da nossa idade, os
filhos mais velhos, os pais mais jovens e os pais mais velhos – se
reunia, e o resultado era uma visão ampla e saudável da vida de
todas essas gerações. Os tapetes eram enrolados, e papai tocava
piano. As damas se sentavam em cadeiras ao redor da sala e cantavam,
às vezes dançavam, enquanto os homens, que sempre sabiam na ponta
da língua as últimas piadas, ficavam em pé, circulando no ambiente
e bebericando canecas de cerveja. Era mesmo incrível, e cresci
pensando que todos tinham uma família amorosa como a nossa –
adorável e sempre acolhedora. Quando me tornei um rapazinho, fiquei
chocado ao descobrir que isso não era verdade, que muitas pessoas
tiveram infâncias difíceis – e John Lennon era um deles.
Eu
não sabia disso quando nos conhecemos, mas John tinha sofrido
inúmeras tragédias pessoais. O pai dele sumiu quando ele tinha três
anos e só ressurgiu muito mais tarde, quando John era famoso e o
encontrou lavando pratos no pub local. Não houve um consenso para
que John morasse com a mãe, então a família o enviou para ficar
com os tios, Mimi e George. A família achou que essa seria a melhor
situação para ele, e talvez tenha sido, quem vai saber realmente?
John morou com Mimi e George a maior parte da infância, mas, quando
ele tinha uns quatorze anos, George morreu. Eu não conhecia o tio
dele, mas eu me lembro de que, anos depois, John desabafou comigo:
“Acho que sou um pé-frio da linhagem masculina”. Eu o
tranquilizei e respondi: “Não, não é culpa sua se o seu pai o
abandonou nem que o tio George morreu; não tem nada a ver com você”.
E assim tentei dar a ele o tipo de apoio que eu recebia em casa.
A
influência de meu próprio pai se estendeu muito além da música.
Ele me transmitiu um amor pelas palavras que já comecei a demonstrar
na escola. Com meu olhar de menino, era difícil não perceber
o jeito como ele fazia malabarismos com as palavras e o quanto ele
apreciava palavras cruzadas. É uma coisa típica de Liverpool dizer
coisas bobas, mas ele alçava isso a outro patamar, e eu precisava me
esforçar para acompanhar as sutilezas de suas piadas e trocadilhos.
Ele nos dizia: “A dor tem intensão”, e você ficava
pensando em uma dor com “intenção”, mas ele só estava
brincando que a dor era intensa (em pessoa, funcionava melhor!). Ele
não era especialmente culto: teve de abandonar a escola porque a
família não tinha dinheiro. Começou a trabalhar aos quatorze anos,
mas a evasão escolar não sepultou o amor dele pelas palavras.
Quando menino, eu não percebia o quanto eu estava absorvendo o amor
que o meu pai tinha pelas palavras e expressões, mas isso, acredito,
foi o começo de tudo para mim. Os musicistas têm apenas doze notas
para trabalhar e, numa canção, é comum usarmos apenas metade
delas. Mas com as palavras as opções são ilimitadas, então me dei
conta de que eu podia brincar com elas, exatamente como meu pai
fazia. Era como se eu pudesse jogá-las ao alto e ver, quando todas
elas caíssem, como a linguagem poderia se tornar mágica.
Para
mim é fácil recordar de meu pai, mas existem tantas outras pessoas
que também ajudaram a moldar o meu modo de compor canções. Ao
longo destes comentários, em algumas oportunidades eu cito Alan
Durband, o meu professor no Liverpool Institute High School for Boys.
Ele fez aumentar o meu amor pela leitura e abriu as coisas para mim
de tal forma que, por um tempo, eu passei a viver num mundo de
fantasia que brotava dos livros. Primeiro, eu aprendia algo sobre um
escritor ou poeta na escola; então passava na livraria para ampliar
o conhecimento. Comecei a comprar brochuras – em sua maioria,
romances, mas também livros de poesia e peças radiofônicas, como
Sob o bosque de leite (Under Milk Wood), de Dylan Thomas, só
para saber do que se tratava e ver como Thomas lidava com as
palavras. Também comprei peças teatrais, como Camino Real,
de Tennessee Williams, e Salomé, de Oscar Wilde.
Uma
coisa puxa a outra, e comecei a frequentar o teatro em Liverpool. Eu
só tinha grana para comprar o ingresso mais barato da casa. Em
geral, eu gostava dessas peças teatrais, obras como Hedda Gabler,
de Henrik Ibsen, mas eu também curtia escutar as conversas no
intervalo, ouvir os bate-papos nas escadarias. Eu era o cara que
ficava ali parado, só ouvindo discretamente, e valia a pena: eu
captava opiniões, críticas, frases de efeito e coisas assim. Tudo
que eu absorvia acabava virando matéria-prima de meus próprios
escritos.
Foi
mais ou menos nessa época que eu conheci John Lennon, e agora fica
bem claro que fomos uma grande influência um para o outro. Os
leitores talvez detectem emoções conflitantes em minhas lembranças
de John; isso é porque meu relacionamento com ele teve altos e
baixos. Às vezes, era repleto de grande amor e admiração, mas
outras vezes não, em especial na época em que os Beatles estavam se
separando. No começo, porém, o relacionamento era o de um jovem de
Liverpool que admirava um cara um ano e meio mais velho.
Difícil
não admirar a inteligência e a sabedoria de John. Mas quando
comecei a enxergá-lo como pessoa e ser humano, houve, é claro,
discussões, embora nunca algo violento. Tem até um filme por aí em
que o personagem de John dá um soco no meu personagem, mas a verdade
é que esse soco nunca existiu. Como acontece em muitas amizades,
houve controvérsias e discussões, mas não muitas. Às vezes,
porém, com certeza cheguei a pensar que John estava agindo como um
completo idiota. Mesmo eu sendo mais jovem, eu tentava lhe explicar
por que ele estava sendo estúpido e por que algo que ele tinha feito
não combinava nada com o estilo dele. Eu lembro que uma vez ele me
disse: “Sabe, Paul, eu me preocupo em como as pessoas vão se
lembrar de mim quando eu morrer”. Pensamentos como esse me deixavam
chocado, e eu respondia: “Peraí um pouquinho. As pessoas vão
pensar que você foi ótimo, e você já tem uma obra capaz de
demonstrar isso”. Muitas vezes eu me sentia um sacerdote para ele e
dizia: “Meu filho, você é ótimo. Simplesmente não se preocupe
com isso”.
Meu
apoio aparentemente o fazia se sentir melhor, mas quando estávamos
compondo, às vezes eu tinha que ser duro. Eu o alertava quando ele
sugeria um verso que eu já tinha ouvido, por exemplo, em Amor,
sublime amor. Eu era o cara que precisava dizer: “Não, isso já
foi feito antes”. De vez em quando eu pegava uma canção que ele
tinha escrito e sugeria que ele a moldasse de outra maneira. Preciso
dar o crédito: ele aceitava os meus conselhos. Assim como eu
aceitava os dele quando ele chegava para mim e dizia: “Ei, não
podemos colocar isso”, e então modificávamos o verso. E esta foi
a grande vantagem da nossa colaboração: um respeitava as opiniões
do outro, de mil e uma maneiras especiais.
Bem
na época em que os Beatles começavam a se fragmentar, Linda Eastman
entrou na minha vida – não só como minha esposa, mas também como
minha musa. Naquela época, ninguém foi mais influente do que ela em
minhas composições musicais. Só o fato de ela me entender, de
captar o que eu estava tentando fazer, já era muito reconfortante,
então ela aparece com frequência nos comentários. Eu compunha uma
canção e tocava para ela. Eu sabia que a opinião dela seria
franca, mas sempre em tom de muito incentivo. Ela sempre foi muito
prática nesse sentido. O amor dela pela música se entrosava com o
meu, e sugeríamos coisas um ao outro com tanta facilidade que, se
ela tivesse uma ideia para uma ou duas canções, eu pegava e as
executava. E naquele período eu realmente estava precisando de
alguém assim, pois os Beatles tinham acabado de se separar.
E
também sob outros prismas Linda se revelou especialmente prestativa,
e espero que os leitores de As Letras percebam isso. Quando os
Beatles começaram, apreciá- vamos coisas como recortes de jornais.
Depois que o sucesso da banda começou a ficar insano, o meu pai
continuou a recortar artigos dos jornais. Ele tinha um orgulho enorme
de nosso trabalho. Mas foi Linda quem me ajudou a perceber a
importância de guardar as coisas. Até então, sempre encarávamos
as folhas com as letras escritas como itens efêmeros. Tomávamos
nota daquilo só para conseguir compor e gravar a canção. Naquela
época, o nosso foco parecia se concentrar todo na música, algo que
você não enxerga fisicamente. Depois descartávamos as folhas com
as letras, e é engraçado pensar em tudo que acabou nas lixeiras do
Abbey Road Studios. Mas Linda tinha experiência como fotógrafa.
Produzir belas imagens impressas era sua arte e habilidade, e ela
estava imersa num mundo de artefatos físicos. Começou a pegar as
letras manuscritas que deixávamos no estúdio e a guardá-las num
álbum de recortes para mim. Ela via esse material como memórias e
partes da minha história.
Disseram-me
que hoje o arquivo conta com mais de um milhão de itens, o que serve
para mostrar quantos objetos podem entrar e sair de uma vida. De vez
em quando, eu me sento com esses itens – coisas que não vejo há
muito tempo, como meus antigos livros escolares ou meu traje original
do Sgt. Pepper. Para mim, é uma jornada pelas alamedas da
memória, mas, no processo de criar este livro, eu fiz questão de
que ilustrássemos os comentários com objetos e fotos do meu
passado. Assim, os leitores podem se sentir imersos no período em
que as canções foram escritas. Tudo no sentido de dar uma ideia do
que estava acontecendo então.
As
ilustrações do livro – algumas bastante diretas, outras bastante
ousadas – vão impactar os leitores de maneiras imprevisíveis. Ao
analisar as letras, alguém pode pensar que uma canção em
particular veio de minha mãe ou de meu pai, ou foi inspirada pelo
Maharishi, ou brotou de meu encontro com a rainha, uma pessoa que
admiro muito. Mas a composição de letra e música, assim como o
modo como as pessoas encaram as canções, com frequência emerge de
pura serendipidade, mero acaso. Quem diria que o título
surpreendente de “A Hard Day’s Night” veio de um malapropismo
que uma vez Ringo deixou escapar? Ou que “Lovely Rita” se
inspirou numa multa que eu levei de uma guarda de trânsito, próximo
à embaixada chinesa, na Portland Place? Ou que “Calico Skies”
surgiu durante um blecaute em Long Island causado pelo furacão Bob?
Ou que a inspiração para “Do It Now” foi meu pai ordenando que
meu irmão e eu juntássemos esterco de cavalo em nosso bairro em
Liverpool?
A
vida me ensinou que nós, como sociedade, adoramos celebridades. E há
sessenta anos enfrento o fato de ter me tornado uma celebridade, algo
que eu nunca poderia ter imaginado quando eu estava começando em
Liverpool. Mesmo agora, na idade em que estou, jornalistas e
fotógrafos ainda querem divulgar uma história ou expor uma sujeira,
como se, de repente, eu tivesse algum desentendimento com Ringo, meu
colega Beatle, ou uma briga com Yoko, uma senhora octogenária. Não
é difícil entender por que certas celebridades se tornam reclusas,
como Greta Garbo ou o meu amigo Bob Dylan.
Também
tenho empatia por cantores que foram esmagados pela fama – uma
lista bem extensa.
Por
um lado, bem que eu gostaria de poder levar a minha esposa, Nancy,
para jantar fora sem ser interrompido meia dúzia de vezes ou ser
fotografado insistentemente enquanto mastigo o espaguete. Por outro,
sou grato porque tive pais que acreditaram em mim e em meu irmão,
nos amaram e nos deram a estrutura que me capacitou a lidar com todos
os momentos difíceis que surgiram no meu caminho. Revisitar mais de
150 das minhas canções ao longo desses cinco anos me ajudou a
colocar muitas coisas em perspectiva, em especial, o papel que Jim e
Mary McCartney desempenharam em me ensinar que as pessoas são
essencialmente boas – lições sólidas que absorvi e transmiti aos
meus filhos. Existem alguns vilões, é claro, mas a maioria das
pessoas tem um bom coração.
Ainda
visualizo nós três, meu pai, meu irmão e eu, na fila de um ponto
de ônibus em Liverpool. Quando passava uma dama, ele tirava seu
chapéu trilby, que na época os homens usavam como se fosse
um uniforme. E fazia questão de que imitássemos a saudação
erguendo nossos bonés escolares. “Bom dia”, dizíamos. Esse
gesto tão doce e à moda antiga ficou impregnado em mim ao longo de
todos esses anos. E também me lembro de papai sempre falando conosco
sobre tolerância. “Tolerância” e “moderação” eram duas de
suas palavras favoritas.
É
um mistério como tudo isso aconteceu. As pessoas me fazem parar na
rua e podem ficar muito emotivas. Declaram: “A sua música mudou
minha vida”, e eu entendo o que elas querem dizer – que os
Beatles trouxeram algo muito importante para suas vidas. Mas ainda é
um mistério, e não me importo de ser um mistério. Sobre esse
mistério que tudo permeia, tem um incidente do qual nunca esqueço.
Os Beatles estavam indo para o norte a bordo de uma van – só o
nosso roadie além de nós quatro. Um frio de rachar em meio a uma
grande nevasca, não enxergávamos um palmo à nossa frente, e era
preciso mesmo enxergar, já que estávamos naquela van. Basicamente,
o melhor que podíamos fazer era seguir as lanternas traseiras do
carro à nossa frente. A tempestade de neve estava tão forte que não
dava para ver a estrada. A certa altura, a nossa van derrapou e caiu
numa valeta ao lado do barranco. Olhamos a estrada, assustados, mas
sem ferimentos, e pensamos: “Como diabos vamos chegar lá?”. Era
um mistério. Mas um de nós – não me lembro quem – falou: “Vai
acontecer alguma coisa”.
Pode
ser que alguém ache essa perspectiva – “vai acontecer alguma
coisa” – simples ou banal, mas eu acho uma ótima filosofia. Um
dia desses, contei essa história a um de meus amigos, um figurão no
mundo dos negócios, e ele ficou tão impressionado com o meu relato
que balbuciou: “Vai acontecer alguma coisa”. A ideia é que não
importa o quão desesperado você esteja, não importa o quão ruim
tudo pareça, alguma coisa há de acontecer. Acho essa ideia útil e
creio que vale a pena se apegar a essa filosofia.
Paul
McCartney
Sussex,
Inglaterra, Outono de 2020
Paul McCartney, in Paul McCartney: As Letras
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