domingo, 4 de setembro de 2022

O Lobo do Mar | Capítulo 11

O Ghost atingiu o extremo sul do arco que está descrevendo pelo Pacífico e já começa a ajustar a direção para o norte e o oeste, rumo a uma ilha solitária onde, de acordo com o que andam dizendo, reabastecerá os barris de água antes de prosseguir até a costa japonesa para a temporada de caça. Os caçadores praticam com os rifles e escopetas até ficarem satisfeitos, e os remadores e pilotos prepararam as velas de espicha, revestiram os remos e forquetas com gaxeta e couro para não alertar as focas durante a aproximação e deixaram os botes tinindo, para usar a expressão informal de Leach.
A propósito, o braço de Leach já sarou, embora ele tenha ganhado uma cicatriz para o resto da vida. Thomas Mugridge passa seus dias apavorado e não se arrisca a pisar no convés depois que escurece. Há duas ou três rixas pendentes no castelo de proa. Louis me contou que a fofocada dos marujos acaba chegando à proa e que dois informantes levaram uma tremenda surra dos companheiros. Ele balança a cabeça colocando em dúvida o futuro de Johnson, que é remador em seu barco. Johnson insiste no erro de falar tudo que pensa e já discutiu três vezes com Wolf Larsen por causa da pronúncia correta de seu nome. Algumas noites atrás, deu uma sova em Johansen no meio do convés, e desde então o imediato o chama pelo nome correto. Estava fora de questão, porém, fazer o mesmo com Wolf Larsen.
Louis também me forneceu informações adicionais sobre Death Larsen, reforçando a descrição breve feita pelo capitão. Podemos esperar um encontro com Death Larsen na costa do Japão.
E esteja pronto pra tormenta — profetiza Louis —, porque os dois se odeiam como dois filhotes de lobo.
Death Larsen está no comando do único vapor de caça à foca que há na frota, o Macedonia, que carrega catorze botes, ao passo que as escunas comportam apenas seis. Há rumores galopantes sobre a existência de um canhão a bordo e do envolvimento da embarcação em incursões e expedições estranhas, desde contrabando de ópio para os Estados Unidos e de armas para a China até tráfico de escravos negros e pirataria pura e simples. Isso tudo parece inacreditável, mas não posso deixar de acreditar, pois nunca peguei Louis mentindo e seu conhecimento da caça à foca e dos homens nela envolvidos é enciclopédico.
O que acontece na proa e na cozinha também se estende à baiuca e à proa desse barco endemoniado. Os homens se defendem e lutam por suas vidas com ferocidade. Os caçadores aguardam para qualquer momento uma troca de tiros entre Smoke e Henderson, que ainda não superaram a antiga desavença, e Wolf Larsen garante que matará o sobrevivente do embate, caso este ocorra de fato. Ele alega com franqueza que sua posição não se apoia em nenhum critério moral e que, se dependesse dele, todos os caçadores poderiam se matar de uma vez por todas, não fosse necessário tê-los todos vivos para a caçada. Se eles forem capazes de se comportar até o fim da temporada, promete promover uma festança em que todas as rixas serão resolvidas e os vencedores poderão jogar os perdedores no mar e inventar uma história de acidente. Suspeito que até mesmo os caçadores ficam chocados com seu sangue-frio. Por mais perversos que sejam, é certo que morrem de medo dele.
Thomas Mugridge continua submisso a mim como um vira-lata, mas ainda o temo em segredo. A coragem dele vem do medo, uma estranha reação que conheço muito bem, e a qualquer momento ela pode se impor e impeli-lo a acabar com a minha vida. Meu joelho melhorou bastante, apesar de às vezes doer por longos períodos, e a mobilidade está retornando ao braço que Wolf Larsen apertou. Além disso, estou em excelentes condições, ou pelo menos assim me sinto. Meus músculos estão ficando maiores e mais firmes. Minhas mãos, por outro lado, são o quadro da dor. Parecem ter sido escaldadas. As cutículas estão descamando, as unhas propriamente ditas estão rachadas e sem cor e algum tipo de fungo está se alastrando nos sabugos dos dedos. Isso para não mencionar os furúnculos, que devem ter algo a ver com a dieta, pois nunca me afligiram antes.
Foi engraçado, algumas noites atrás, flagrar Wolf Larsen lendo o exemplar da Bíblia encontrado no baú do falecido imediato, depois da busca infrutífera feita no início da viagem. Fiquei pensando no que Wolf Larsen poderia tirar dali, e ele leu para mim em voz alta um trecho do Eclesiastes. À medida que o escutava, eu podia imaginar que ele ia entoando os seus próprios pensamentos, e a sua voz, reverberando em um tom penetrante e lamurioso dentro da cabine apertada, acabou por me cativar e envolver. Apesar de não ser um homem instruído, ele é sem dúvida capaz de expressar o significado da palavra escrita. Posso ouvi-lo agora, como sempre ouvirei, lendo com uma voz vibrante de melancolia primitiva:

Acumulei também prata e ouro, as riquezas dos reis e das províncias. Escolhi cantores e cantoras e todas as delícias dos homens, toda a abundância dos cofres.
Ultrapassei e avantajei-me a todos quantos me precederam em Jerusalém, e a sabedoria permanecia junto a mim.
Então examinei todas as obras de minhas mãos e o trabalho que me custou para realizá-las, e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nada havia de proveitoso debaixo do sol.
Assim, todos têm um mesmo destino, tanto o justo como o ímpio, o bom como o mau, o puro como o impuro, o que sacrifica como o que não sacrifica; o bom é como o pecador, o que jura é como o que evita o juramento.
Este é o mal que existe em tudo o que se faz debaixo do sol: o mesmo destino cabe a todos. O coração dos homens está cheio de maldade; enquanto vivem, seu coração está cheio de tolice, e seu fim é junto aos mortos.
Ainda há esperança para quem está ligado a todos os vivos, e um cão vivo vale mais do que um leão morto.
Os vivos sabem ao menos que irão morrer; os mortos, porém, não sabem, e nem terão recompensa, porque sua memória cairá no esquecimento.
Seu amor, ódio e ciúme já pereceram, e eles nunca mais participarão de tudo o que se faz debaixo do sol.

Aí está, Hump — ele disse fechando o livro com o dedo na página e olhando para mim. — O pregador que era rei de Israel em Jerusalém pensava como eu. Você me chama de pessimista. Isso não soa para você como o mais negro pessimismo? “Tudo era vaidade e correr atrás do vento”, “nada havia de proveitoso debaixo do sol”, “o mesmo destino cabe a todos”, ao tolo e ao sábio, ao puro e ao impuro, ao pecador e ao santo, e esse destino é a morte, que de acordo com ele é um mal. Pois o pregador amava a vida, não queria morrer, e disse que “um cão vivo vale mais do que um leão morto”. Ele preferia a vaidade e a corrida inútil atrás do vento ao silêncio e à imobilidade do túmulo. Como eu. Rastejar é mesquinho, mas não rastejar, ser como um monte de terra ou uma pedra, é uma ideia repulsiva. É repulsiva para a vida que há em mim, cuja própria essência é o movimento, o poder do movimento e a consciência do poder do movimento. A vida em si é insatisfação, mas vislumbrar a morte é uma insatisfação ainda maior.
O senhor é pior que Omar — falei. — Ao menos ele, depois da angústia típica da juventude, encontrou a alegria e fez de seu materialismo algo prazeroso.
Quem foi Omar? — Wolf Larsen perguntou, e não trabalhei mais naquele dia, nem nos dois dias seguintes.
Suas leituras aleatórias nunca o tinham levado ao Rubaiyat, e para ele foi como encontrar um grande tesouro. Eu lembrava de uma boa parte do poema, talvez dois terços dos quartetos, e não foi difícil improvisar o que faltava. Chegamos a passar horas conversando sobre uma única estrofe e percebi que ele encontrava nelas um lamento arrependido e uma rebeldia que eu jamais teria descoberto sozinho. É possível que eu as recitasse na cadência feliz que me era característica, pois ele, que tinha boa memória e na segunda ou mesmo na primeira leitura já decorava um quarteto, recitava os mesmos versos e os investia de um desassossego e uma revolta apaixonada que eram nada menos que convincentes.
Eu tinha curiosidade em saber qual seria seu quarteto preferido, e não me surpreendi quando ele se deteve em um que expressava uma irritação momentânea e um tanto avessa à filosofia complacente e ao código de vida cordial dos persas:

Como, sem aviso, para cá veio de onde?
E como, sem aviso, para onde foi daqui?
Ah, várias taças desse vinho proibido
Afogarão a memória dessa insolência!

Excelente! — gritou Wolf Larsen. — Excelente! Essa é a tônica. Insolência! Ele não podia ter escolhido palavra melhor.
Protestei e contestei em vão. Ele me soterrou de argumentos.
Fosse de outra maneira, seria contrário à natureza da vida. A vida, quando entende que precisará deixar de viver, sempre se rebela. Ela não consegue evitar. O pregador entendeu que a vida e seus procedimentos eram vaidosos e fúteis, eram um mal, mas considerou que a morte, o fim da nossa oportunidade de sermos vaidosos e fúteis, era um mal ainda maior. Um capítulo após o outro, ele se preocupa com aquilo que acontece a todos nós, sem distinção. Da mesma forma que Omar, que eu e até mesmo você, que se rebelou contra a morte quando o Mestre-Cuca afiou a faca para ameaçá-lo. Você teve medo de morrer. A vida que há em você, da qual você é composto, que é maior que você, não queria morrer. Você me fala do instinto da imortalidade. Eu falo do instinto da vida, que é viver, e que na proximidade da morte se sobrepõe a esse suposto instinto de imortalidade. Foi o que aconteceu com você, não negue, quando viu um cozinheiro cockney maluco afiando uma faca. Você está com medo dele agora mesmo. Está com medo de mim. Não negue. Se eu agarrasse o seu pescoço assim — sua mão envolveu meu pescoço e trancou minha respiração — e começasse a espremer a sua vida para fora desse jeito, bem assim, o seu instinto de imortalidade se apagaria aos poucos e o seu instinto de vida, que deseja mais vida, se acenderia para fazê-lo tentar sobreviver. Hein? Vejo o medo da morte em seus olhos. Você está desferindo golpes no ar. Você aplica toda a sua pequena força para tentar escapar. A sua mão agarrou o meu braço, é como uma borboleta pousando ali. Seu peito está ofegante, sua língua saiu para fora, sua pele está ficando escura, seus olhos estão marejando. “Viver! Viver! Viver!”, você está gritando por dentro. E está gritando para viver aqui e agora, não mais tarde. Está duvidando de sua imortalidade, hein? Rá rá! Não está mais tão certo dela. Não apostaria nisso. Você só tem certeza de que esta vida é real. Ah, está escurecendo cada vez mais. É a escuridão da morte, deixar de ser, deixar de sentir, deixar de se mover, que está se aproximando, abatendo-se sobre você, assomando a seu redor. Seus olhos já não se movem. Estão vítreos. A minha voz soa débil e distante. Você não consegue mais ver o meu rosto. E ainda assim se debate em minhas garras. As pernas chutam. O corpo tenta dar nós em si mesmo, como uma cobra. O seu peito arfa. Viver! Viver! Viver…
Não escutei mais nada. Minha consciência se apagou na escuridão que ele descrevia com tanta nitidez, e quando a recobrei estava deitado no chão e ele fumava um charuto e me observava, pensativo, com aquela curiosidade já conhecida estampada no olhar.
Bem, será que o convenci? — ele perguntou. — Vamos, beba um gole disto. Quero lhe fazer algumas perguntas.
Balancei a cabeça negativamente, ainda no chão.
Seus argumentos foram muito, hum, forçados — consegui articular ao custo de uma dor tremenda na garganta.
Você estará bem dentro de meia hora — ele me garantiu. — E prometo nunca mais recorrer a demonstrações físicas. Agora levante-se. Pode sentar numa cadeira.
Assim, voltei a ser um brinquedo nas mãos daquele monstro e retomamos a discussão sobre Omar e o pregador, que se estendeu noite adentro.

Jack London, in O Lobo do Mar

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