“Os
seres marinhos, quando não tocam o fundo do mar, se adaptam a uma
vida flutuante ou pelágica”, estudou Perseu na tarde de 15 de maio
de 192...
Heroico
e vazio o cidadão continuou de pé junto da janela aberta. Mas na
verdade jamais poderia transmitir a alguém o modo pelo qual ele era
harmonioso, e mesmo que falasse não diria uma palavra que cedesse a
polidez de sua aparência: sua extrema harmonia era apenas evidente.
“Os
animais pelágicos se reproduzem com profusão”, disse com oca
luminosidade. Cego e glorioso – era isso apenas o que se podia
saber dele vendo-o à janela de um segundo andar. Mas se ninguém
conseguiria sondar sua harmonia – também ele parecia não sentir
mais do que ela. Porque este era o seu grau de luz. “Os animais e
vegetais marinhos com profusão”, disse sem ímpeto mas sem freio
porque este era o seu grau de luz. Não importa que na luz ele fosse
tão cego como os outros na escuridão. A diferença é que ele
estava na luz. “Flutuantes”, falou. Despercebido à janela porque
ele era apenas um dos modos de ser S. Geraldo. E também um de seus
alicerçadores somente por ter nascido quando o subúrbio também se
erguia, apenas por ter um apelido que só se tornaria estranho quando
um dia S. Geraldo mudasse de nome; de pé diante da janela aberta.
Era essa a natureza de uma raça de homem.
E
assim ele ficou, observando com aplicação Efigênia que na rua
carregava uma cesta. A mulher parou e enquanto repousava passeou o
olhar com ócio e certo desespero pelos arredores ensolarados: eram
quase três horas e todas as portas começaram a se abrir ao mesmo
tempo. Efigênia retomou a cesta. Para mais adiante interromper-se de
novo e arrastar penosamente o fardo. Afinal ela estacou outra vez –
mas Perseu era paciente. “Os animais”, disse ele. A mulher
retomou a cesta. “Se reproduzem com extraordinária profusão”,
disse Perseu. Decorar era bonito. Enquanto se decorava não se
refletia, o vasto pensamento era o corpo existindo – sua
concretização era luminosa: ele estava imóvel diante de uma
janela. “Se alimentam de microvegetais fundamentais, de inusórios
etc.”
“Etc.!”
repetiu brilhante, indomável.
E
agora se calava, moroso e cheio de sol. “Os seres marinhos”,
disse num murmúrio; a inconsciência do rapaz dominava largamente a
cidade. “Se reproduzem”, acrescentou sombrio. Suas asas eram
grandes asas imóveis. Inclinou-se então pela janela e gritou:
– Fruteiro!
suba!
Ah!
voou uma gralha espantada.
Grande,
revelado nos braços nus, comprou tangerinas no corredor escuro.
Voltou
e empoleirou-se no parapeito da janela. Em breve comia e jogava os
caroços no beco sujo. Olhava piscando: o caroço dava dois pulos
antes de imobilizar-se ao sol. Perseu não o perdia de vista apesar
da distância e das pessoas que já se entrecruzavam apressadas: ele
era paciente. E em pouco a rua se achava plena de pontos concretos:
inúmeros caroços espalhados numa disposição que tinha um sentido
flagrante – apenas que incompreensível. Assim como os sobrados
dispostos na rua. Estava na sua natureza poder possuir uma ideia e
não saber pensá-la: assim ele a expunha, ofuscado, persistente,
jogando os caroços. Havia mesmo algumas anedotas sobre a lentidão
de inteligência dos homens de S. Geraldo, enquanto as mulheres eram
tão espirituosas! “Se reproduzem com extraordinária profusão!”
disse o rapaz de repente fustigado.
Em
breve estava novamente absorvido pela espécie de perfeição que
existia em jogar caroços; tudo o que se parecesse com mecanismos já
começava a interessar aos novos cidadãos. Absorvido porém remoto.
Pois seu tempo parecia impossível de ser preenchido por uma ação:
ele jogava no vazio. Somente algum sinal fazia com que dentro dessa
largueza houvesse particularmente a sua vida. “Os seres marinhos
pelágicos”, disse bastante alto com a boca cheia.
O
que salvava da angústia esta criatura perdida é que ela era perdida
como Deus quer que se seja inocente: ele comia e jogava os caroços.
O mundo podia passar sem este pedreiro cego. Mas uma vez que ele
vivia, ninguém mais poderia executar o seu trabalho, tão
intransmissível este já se tornara: assim jogou mais três caroços,
recuando a cabeça e mirando com um olho fechado... “Vida flutuante
ou pelágica”, exclamou refazendo-se. Atrás do rosto belo e
resignado havia um outro que, repetindo os traços externos, tinha
uma expressão um pouco horrível, a expressão de um pensamento
profundo. E uma intolerância moral – a dos são-geraldenses – ao
mesmo tempo maior e mais amorfa do que a do rosto exterior que
buscava certa unidade que fosse imediatamente compreendida por um
espelho: atrás do rosto dourado e cortês um cheiro quase
desagradável de estábulo porque ele era muito moço ainda.
Assim
se haviam passado vários momentos proporcionais e amadurecidos
enquanto o rapaz jogava os caroços como se tivesse afiado ouro numa
oficina – a primeira badalada do relógio fê-lo erguer um rosto
sonolento pela aplicação. Por um instante uma cara fora de alcance
esperava sem interesse o que lhe iam dizer: o relógio da praça
batia três horas largas acima de S. Geraldo e sob as badaladas
vibrantes o subúrbio foi submergindo. Quando reapareceu escorrendo
às últimas ressonâncias, o subúrbio estava claro e tudo podia ser
mais visto: sobre a mesa da janela jazia o livro aberto, e na página
revelada pela súbita nitidez da hora estava inscrito:
– Este
animal discoidal é formado de acordo com a simetria baseada no
número 4.
Assim
estava escrito! E o sol batia em cheio sobre a página empoeirada:
pela casa defronte subia mesmo uma barata... Então o rapaz disse
aquilo que era lustroso como um escaravelho:
– Os
seres pelágicos se reproduzem com extraordinária profusão,
exclamou afinal de cor.
O
relógio atrasado da igreja bateu três horas. Ah! espavoriu-se a
gralha de novo perseguida. Perseu balançou os dois últimos caroços
na concha da mão e lançou-os em dados. O jogo estava feito! Era de
tarde. O rapaz parou maravilhado e vazio. Inesperadamente abriu as
grandes asas num bocejo de juventude.
Clarice Lispector, in A cidade sitiada
Nenhum comentário:
Postar um comentário