segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O alferes José Francisco Brandão Galvão


Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar. Vai morrer na flor da mocidade, sem mesmo ainda conhecer mulher e sem ter feito qualquer coisa de memorável. É certamente com a imaginação vazia que aqui desfruta desta viração anterior à morte, pois não viveu o bastante para realmente imaginar, como até hoje fazem os muito idosos em sua terra, todos demasiado velhos para querer experimentar o que lá seja, e então deliram de cócoras com seus cachimbos de três palmos, rodeados pelo fascínio dos mais novos e mentindo estupendamente. E talvez falte apenas um minuto, talvez menos, para que os portugueses apareçam à frente deste sol forte de inverno na baía de Todos os Santos e façam enxamear sobre ele aquelas esferazinhas de ferro e pedra que o matarão com grande dor, furando-lhe um olho, estilhaçando-lhe os ossos da cabeça e obrigando-o a curvar-se abraçado a si mesmo, sem nem poder pensar em sua morte. No quadro “O alferes Brandão Galvão Perora às Gaivotas”, vê-se que é o 10 de junho de 1822, numa folhinha que singra os ares, portada de um lado pelo bico de uma gaivota e do outro pelo aguço de uma lança envolvida nas cores e insígnias da liberdade. Já mortalmente atingido, erguendo-se com um olho a escorrer pela barba abaixo, ele arengou às gaivotas que, antes distraídas, adejavam sobre os brigues e baleeiras do comandante português Trinta Diabos. Disse-lhes não uma mas muitas frases célebres, na voz trêmula porém estentórea desde então sempre imitada nas salas de aula ou, faltando estas, nas visitas em que é necessário ouvir discursos. Pois, se depois da metralha portuguesa não havia ali mais que as aves marinhas, o oceano e a indiferença dos acontecimentos naturais, havia o suficiente para que se gravassem para todo o sempre na consciência dos homens as palavras que ele agora pronuncia, embora daqui não se ouçam, nem de mais perto, nem se vejam seus lábios movendo-se, nem se enxergue em seu rosto mais que a expressão perplexa de quem morre sem saber. Mas são palavras nobres contra a tirania e a opressão sopradas pela morte nos ouvidos do alferes, e são portanto verdadeiras.
Coisas opostas, a glória em vida e a glória na morte, somente esta parece perseguir a alma sempre encarnante do alferes. Do contrário, não estaria ele ali, naquele dia e naquele lugar, podendo ter ido a outra parte qualquer do Recôncavo onde o povo se reunisse para beber e para aclamar o Regente e Imortal Príncipe Dão Pedro, Defensor Perpétuo do Hemisfério Austral. Já finado e herói, com suas cada vez mais alargadas palavras às gaivotas circulando de boca em boca, o alferes não ouviria a alta proclamação que em muitas festas se fez na cidade do Catu, como não veria diversas outras que se seguiram desde o dia pressagioso em que o Senado da Câmara da Bahia, fervendo de ressentimento e ódio porque a Corte embarcara em seus navios para Portugal do mesmo jeito alheio com que chegara, recusou registro à Carta Régia em que se nomeava comandante d’Armas o brigadeiro Inácio Madeira de Melo. O povo brasileiro se levantava contra os portugueses e discursos caudalosos ribombavam pelas paredes das igrejas, boticas e salões onde os conspiradores profetizavam a glória da América Austral, fulcro de esplendor, fortuna e abundância. Em toda parte sagravam-se novos heróis, um a cada dia em cada povoado, às vezes dois ou três, às vezes dúzias, com as notícias de bravuras voando tão rápido quanto as andorinhas que passam o verão na ilha. Assim foi ao arribar ao porto da Bahia a famosa corveta Regeneração, que trazia de volta, agora anistiados, importantes heróis, levados presos por sedição ao castelo de São Jorge, na capital opressora. Envoltos nas brumas da lenda, esses homens do Destino logo dilataram por todas aquelas terras a reputação de seu valor incomparável, a beleza de seu cada gesto, a força certeira de cada coisa dita, o caráter jamais quebrantado por fraqueza humana. E não podia o coração de José Francisco senão bater mais depressa, o queixo tremelicar e a cabeça girar, quando, como se houvesse tambores rufando pelas abas da capa de debruns escarlates, o grande guerreiro tenente João das Botas, passageiro da Regeneração, desembarcou ao pôr do sol para visitar a ilha em segredo e falou a alguns homens que o boticário reunira na Ponta das Baleias. Ouviu dele furente denúncia contra os deputados brasileiros que em Lisboa se tinham oposto à anistia. Mal podendo continuar a respirar, escutou como o Brasil representava a liberdade, a opulência, a justiça e a beleza, negadas até agora pela iniquidade dos portugueses, que tudo de nós queriam e nada davam em troca. Aprendeu a dizer com desprezo o nome de um dos deputados e, mais tarde, já envergando o gibão verde de punhos agaloados que lhe tinha dado a viúva de um anspeçada, sua madrinha cega e velha, já habituado a sentir um aperto no peito ao vislumbrar os milicianos agrupando-se aqui e ali, o nome desse deputado seria a única coisa que saberia dizer nas reuniões da botica. Discursavam quase sempre o boticário e seu frequente visitante, o alto e inspirado orador Sousa Lima, mas os demais podiam arriscar uma palavra ou outra enquanto os grandes revolucionários tomavam fôlego e, assim, cofiando os punhos do gibão e ostentando a barba rala que seus 17 anos lhe conferiam, o alferes Brandão Galvão resmungava com aspereza: Gonçalves Ledo, traidor cobarde! Então, correndo o olhar inconformado pela sala como querendo acompanhar os movimentos de uma mosca aflita, esmurrava o joelho, grunhia uma imprecação ininteligível e voltava a seu silêncio quieto. Agradava-lhe que, apesar de repetir as palavras e gestos quase todas as noites, pois custava a aprender coisas novas e das letras só conhecia as iniciais do apelido, os outros conspiradores o ouvissem sempre como se estivesse dizendo algo muito necessário nunca antes escutado, e alguns lhe ecoassem os resmungos com acenos quase solenes.
Antes que a morte lhe trouxesse a glória e lhe emprestasse o dom das belas palavras, talvez até pensasse de quando em vez que, se não fosse pela roupa agaloada e pelos arrepios vagos mas sublimes que a menção da guerra lhe causava, a vida de moço de pescaria que antes levava, bastardo e pobre, seria apesar de tudo preferível. O trabalho de pescar, embora incerto pela própria natureza, era coisa que sucedia como as noites e os dias e, se demandava atenção e disciplina, também despertava um sentimento arrebatador de liberdade, que o alferes não entendia bem mas percebia, principalmente quando, com os peixes transfigurados numa massa de prata latejante esbatendo as redes e canoas, os homens em fim de pescaria suspiravam fundo e riam sem razão. Não fazia ideia do que ia acontecer, tinha vergonha disto e, sempre que reunia coragem para indagar, perdia-a no último instante e apenas resmungava outra vez. Não sabia onde ficava Portugal, sabia somente que para lá voltara seu pai assim que ele nasceu. Algumas vezes se esgueirou por ali de noite, para ver de longe o barco de guerra português Dona Maria da Glória, fundeado igual a uma nave assombrada no porto da Ponta da Cruz. Como não tinha arma de fogo, pois de objetos militares só possuía o gibão, apertava nos dedos uma fisga de três pontas, enrodilhado na escuridão, espiando o barco e sentindo o fôlego se apressar, pensando de olhos fechados em abordar o navio e matar os portugueses com sua arma de içar peixes. Esperava ver o rosto medonho do comandante Manoel Pereira da Silva, de quem diziam ser dos mais cruéis reinóis entre todos os malvados que enviava a Corte tirânica, mas nunca enxergou nada além da sombra de um cachorro magro deslizando pelas beiradas do ancoradouro e nunca ouviu nada além da água chocalhando contra o casco do barco, os sussurros que a noite amplifica, fazendo soar como uma assembleia de tagarelas as passadas dos caranguejinhos que saem no escuro. Dos seus deveres de alferes nada conhecia, nem mesmo o que significava o posto, nem mesmo se era alferes. Suspeitava até que, para ser alferes, havia necessidade de alguma coisa mais que simplesmente o chamarem por esse título, como aconteceu pela primeira vez na botica e terminou por se tornar uso de todos na Ponta das Baleias.
Pode ser que, se não tivesse medo de encontrar-se sozinho com outros alferes ou comandantes ou pilotos ou capitães ou outras tantas figuras de expressão severa, catadura esculpida e veste galardoada, se pudesse entender certas palavras cujos sons, em segredo e angústia solitária, lhe lembravam apenas objetos imaginários estapafúrdios, se não tivesse tanto desconhecimento de tudo, a lhe pesar na cabeça como uma cervilheira de chumbo, houvesse ido a Cachoeira, onde os conspiradores já tanto se exaltavam que voavam entre as nuvens e sentiam um sangue diverso banhando o corpo por dentro, pronto para irrigar os mares e gerar nas espumas mais e mais heróis, mais e mais deuses e deusas da Liberdade, como se via nas estampas e se desenhava com a mente, pelo fio das palavras dos oradores. O rio Paraguaçu, muito pardo, placidamente enganoso, quase letárgico no fundo do vale, fazia, só por uma mirada até a curva onde sumiria, pressentir que suas muitas entidades se aprestavam para o embate, e todos os dias alguém, a qualquer hora, estava de pé numa margem sua, o olhar colado no horizonte e o pensamento pintando visões de batalhas. Mas o alferes só se inteirava desses e de outros portentos por ouvir contar, pois temia deparar-se com outro soldado, que lhe fizesse perguntas. Que percebia de armas e estratagemas de guerra? Em quantos combates havia pelejado e que memórias reunira para contar aos companheiros e à família? Que acha de todas as lutas do Brasil, que opinião tem sobre a nossa Independência, que grandes comandantes, mal recuperando o alento depois de sofrida refrega, lhe disseram “deem-me dez como você, meu bravo, e o orbe terrestre será nosso”? Onde fica mesmo o Brasil, sabendo-se que certamente isto aqui é Brasil, mas não é todo o Brasil, e pode o bom soldado ignorar onde fica o Brasil? Não, José Francisco não sairia da Ponta das Baleias, não só porque não desejava, como porque o destino já lhe trançava sobre a cabeça a coroa de louros e espinhos que ia assinalar sua condição de herói. Ali à Ponta das Baleias, na data inscrita na folhinha alada do quadro, com grande sanha e fúria, os portugueses desferiram seu primeiro ataque contra os revolucionários da ilha de Itaparica. Sabedor de que se conspirava, por informações do português João de Campos, que será xingado e amaldiçoado em toda a Eternidade cada vez que se fizer um discurso sobre o alferes Brandão Galvão e sua plateia de gaivotas, o voluntarioso general Madeira, tendo de sofrear sem testemunha ou amparo as rédeas do Hemisfério Austral, enviou ao povoado da Ponta das Baleias o comandante Trinta Diabos e sua frota de brigues. Durante muito tempo depois desse ataque, mesmo séculos depois, as pessoas se persignariam ao lembrar o Dona Maria da Glória transfigurado num monstro marinho de fogo e fumaça, faluas baixadas dos brigues acometendo a praia com os remos assemelhados a ouriços mortais, lanças e alabardas faiscando as pontas cada vez mais perto. Sucumbiu somente, como estava escrito, o alferes Brandão Galvão, antes mesmo que os portugueses pisassem na areia, pois ele era muito visível, uma dessas formas que quem carrega arma virgem sente compulsão de alvejar, os punhos do gibão reluzindo e a silhueta magra cortando as tábuas mortiças do ancoradouro. Abatido logo quando a primeira falua passou a disparar projéteis para todos os lados, pôde somente reconhecer que aquelas mordidas do ar subitamente vivo e sibilante o matavam, quando então perorou às gaivotas. Nem viu João de Campos saltar à frente do primeiro grupo para apontar com o dedo gordo e sebento, banhas tremendo por dentro dos culotes frouxos, as casas dos conspiradores. Felizmente, ao despontarem os brigues bordejando a enseada, somente o alferes permanecera no posto que designara para si próprio, pois os outros, do boticário aos oradores, dos milicianos ao cura, dos marinheiros aos mariscadores, bateram em retirada para os matos dos lados de Amoreiras, assim impedindo, com sua ação astuta, pronta e corajosa, que os quadros da Revolução sofressem baixas de consequências inestimáveis. Embravecidos e correndo sobre a imensa coroa de areia firme como uma hoste de demônios, os portugueses praticaram tamanhas atrocidades que livros de versos foram escritos sobre elas e o ódio dos muitos ofendidos ainda hoje não se aplacou de todo nos corações de seus descendentes. A artilharia que ficou na praia e na fortaleza foi aviltada, a pólvora ensolvada, as peças de ferro cravadas e postas a rolar pelo capim e pelo barro. A igreja de São Lourenço foi invadida, arrancado o manto de Nosso Senhor dos Martírios, destruído o oratório de Vera Cruz. E tantos sacrilégios se cometeram que, não já estivesse Deus do lado brasileiro por justiça e vocação, para ele se bandearia agora, diante da algozaria do inimigo. A botica foi quase demolida, houve grandes prejuízos, mas José Francisco, por só ter no mundo uma mãe entrevada, uma irmã nem donzela, duas galinhas, uma fisga de três pontas e um gibão de punhos agaloados, não trouxe nem representou prejuízo. Pelo contrário, legou ao povo suas palavras às gaivotas, no dia em que, montando guarda às costas da terra mais brasileira que existe, foi ceifado pela garra ímpia e sem misericórdia de Portugal, na Ponta das Baleias.

João Ubaldo Ribeiro, in Viva o povo brasileiro

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