Depois
de cinco meses da minha vida durante os quais não consegui escrever
nada que me satisfizesse e dos quais poder nenhum vai me ressarcir,
embora todos tivessem obrigação de fazê-lo, vem-me a ideia de
tornar a falar comigo mesmo. Toda vez que me interroguei de fato,
sempre respondi, sempre houve o que arrancar de mim, deste amontoado
de palha que sou há cinco meses e cujo destino parece ser o de pegar
fogo e arder no verão mais rapidamente do que o espectador é capaz
de piscar. Se ao menos assim fosse! E que assim fosse uma dezena de
vezes, porque não me arrependo nem sequer dessa época desditosa.
Meu estado não é o da infelicidade e tampouco o de felicidade, não
é o da indiferença nem o da fraqueza, não é cansaço nem o
interesse em outra coisa, mas o que é então? Que eu não o saiba há
de ter a ver com minha incapacidade de escrever. E esta, creio
compreendê-la, ainda que lhe desconheça a razão. É que todas as
ideias que me ocorrem não me ocorrem desde a sua raiz, mas somente a
partir de algum ponto intermediário. Tente segurá-las, tente
segurar-se numa haste de grama que só começa a crescer a partir da
metade do caule. Alguns por certo logram fazê-lo; os acrobatas
japoneses, por exemplo, que sobem por uma escada de mão apoiada não
no solo, e sim nas solas erguidas dos pés do companheiro
semideitado, e que tampouco se apoia na parede, mas ergue-se apenas e
tão somente no ar. Eu não consigo, sem falar que minha escada não
dispõe nem mesmo daquelas solas nas quais se apoiar. Naturalmente,
isso não é tudo, e uma tal demanda tampouco basta para me fazer
falar. A cada dia, porém, cabe voltar ao menos uma frase na minha
direção, à maneira como hoje se voltam os telescópios na direção
do cometa. Então, um dia, eu talvez venha a comparecer diante dessa
frase, atraído por ela, como aconteceu no último Natal, por
exemplo, em que fui longe a ponto de só por pouco conseguir ainda me
segurar e parecia estar de fato no último degrau de minha escada,
apoiada, porém, tranquilamente no chão e na parede. Mas que chão!
E que parede! Ainda assim, a escada não caiu, de tanto que meus pés
a comprimiam contra o chão, de tanto que a alçavam contra a parede.
Hoje,
por exemplo, cometi três impertinências, contra um cobrador no
bonde e contra alguém que me apresentaram — foram, pois, duas
apenas, mas elas me doeram como uma cólica estomacal. Teriam sido
impertinências da parte de qualquer um, mas mais ainda provindas da
minha pessoa. Saí, portanto, de mim, lutei no ar em meio à névoa e
o mais grave foi que ninguém notou que também em relação a meus
acompanhantes cometi uma impertinência, tive de cometê-la; precisei
fazer a cara adequada e arcar com a responsabilidade; mas o pior foi
um de meus conhecidos não ter entendido minha impertinência como um
sinal qualquer de caráter, e sim como o caráter em si, chamando-me
a atenção para ela e admirando-se dessa minha impertinência. Por
que não permaneço em mim? Agora por certo digo a mim mesmo: “Veja,
o mundo se deixa golpear por você, o cobrador e a pessoa que lhe foi
apresentada permaneceram tranquilos quando você partiu, e esta
última chegou mesmo a se despedir”. Só que isso não significa
nada. Você não vai alcançar coisa nenhuma saindo de si mesmo, mas,
por outro lado, quanto vai perder permanecendo dentro do seu próprio
círculo? A essa pergunta, respondo apenas: também eu preferiria
deixar-me surrar no interior do meu próprio círculo a desferir
golpes fora dele, mas onde diabos está esse círculo? Por um tempo,
eu de fato o vi na terra, como se demarcado com cal, mas agora ele
não faz senão pairar em algum ponto ao meu redor, ou nem sequer
paira.
Franz Kafka, in Diários: 1909 – 1923
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