As
mães ensinam que é feio escutar conversa dos outros, mas, com os
coletivos entupidos de gente, somos forçados a isso, e acabamos nos
interessando pelo que não é de nossa conta. Talvez fosse mais
acertado aconselhar, hoje em dia: Tome parte na conversa alheia.
Ajuda a passar o tempo, e contribui para confraternizar solitários e
complexados.
Mas
conversas há que se desenvolvem num círculo fechado, por mais
públicas que se afigurem, e não adianta você demonstrar ânimo
participante. Quem disse que o cronista era capaz de insinuar-se
naquele papo amazônico, a centímetros apenas de seus ouvidos, pois
estava justamente com a cabeça ao nível do diafragma da gorda,
enquanto a magra se comprimia a seu lado, nessa demonstração de
todos os dias, de que dois corpos podem ocupar o mesmo lugar no
espaço, desde que seja num micro-ônibus?
Eram
duas moças entre caboclo e índio, e prosseguiam na conversa que
devia ter começado na fila, e que o incômodo da situação não
afetava. Em realidade não estavam ali. Estavam comendo em Manaus,
pela saudade.
— Meu
primo chegou ontem de avião, não trouxe muita coisa. Mas vieram uns
tucumãs, ô delícia!
— De
tucumã eu aprecio mais é o vinho. Você tem em casa?
— Não,
mamãe não tem podido fazer. E você?
— Pois
olhe, menina, tenho ainda duas garrafas, lhe cedo uma.
— Aceito,
sim, e vou escrever pra lá pedindo caxiri. Quando vier, reparto com
você.
— Gosto
menos de caxiri, sabe? De pupunha, menina, o que me interessa mesmo é
o coco no melaço. Uma bondade!
Era
a gorda quem exclamava. A magrinha passava a língua nos lábios. E,
por sua vez:
— Fruta
daqui não dá gosto… Quem está acostumado a coco, hem? de tantas
variedades…
— É
mesmo. E que mais trouxe teu primo?
— Bem,
trouxe jacundá fresquinho, criatura! Imagine que ele na véspera foi
gapuiar no igarapé, e zuque: jacundá apareceu. Foi só embarcar no
avião cedinho, o comandante é camarada, e quando meu primo desceu,
a gente até que estava sem fome, mas o peixe não esperava, então
corremos pra casa e de madrugada preparamos e comemos ele.
— Com
tucupi, é?
— Evidente!
De um aipim especial, que isso meu primo não esqueceu nunca de
trazer, e pimenta lá de casa.
— Ai,
ingrata, e você não telefonou pra gente.
— Àquela
hora? Deixa estar, que na próxima eu chamo. E não vai demorar, meu
tio vem aí.
— Pede
a ele pra me trazer uma língua de pirarucu, filhinha. Preciso muito
de um ralador, e esse negócio de lata não vai.
— É,
amortece o paladar. Mudando de assunto, estou pensando agora numa
tartaruguinha de forno, que comi lá nas férias do ano passado; com
sal, pimenta, limão e farinha-d’água, dessa passada em gurupema
bem fina…
— Ai,
não me fale. Esta noite sonhei que estava comendo tambaqui de
cacete, depois vinham uns ovinhos de tracajá; depois…
— Ai!
E você já sonhou com panelada de maniçoba, aqui no Rio?
— Não,
bem. Mas qualquer dia eu sonho.
Houve
uma pausa. Lembrei-me do estudo de Dante Costa(4). Eram dois casos —
raríssimos entre nós — de sensualidade alimentar, fixada pelo
nativismo. E a magra:
— Você
onde está almoçando agora?
— Numa
pensão da avenida Antônio Carlos. Cinquenta cruzeiros, mas a dona é
baiana, e embora não seja a mesma coisa de Manaus, você sabe,
sempre é melhor que essa danação de comidinha carioca!
(4)
Trata-se provavelmente de uma referência ao livro O sensualismo
alimentar em Portugal e no Brasil, de Dante Costa, publicado em
1952 pelo Ministério da Educação e Saúde, Serviço de
Documentação.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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