Henry
pegou o travesseiro, embolou-o atrás da cabeça e ficou esperando.
Louise entrou com as torradas, geleia e café. A torrada com
manteiga.
– Tem
certeza de que não quer dois ovos cozidos? – ela perguntou.
– Não,
tudo bem. Está ótimo.
– Devia
comer dois ovos cozidos.
– Tudo
bem, então.
Louise
saiu do quarto. Ele se levantara antes para ir ao banheiro e notara
que suas roupas tinham sido penduradas. Coisa que Lita jamais fazia.
E Louise era uma foda excelente. Sem filhos. Ele adorava o modo como
ela fazia tudo, suavemente, cuidadosamente. Lita estava sempre no
ataque – só arestas. Quando Louise voltou com os ovos cozidos, ele
perguntou-lhe:
– Que
é isso?
– Que
é o quê?
– Você
até descascou os ovos. Quer dizer, por que seu marido se divorciou
de você?
– Ah,
espere – ela disse –, o café está fervendo!
E
saiu correndo do quarto.
Ele
ouvia música clássica com ela. Ela tocava piano. Tinha livros: O
Deus Selvagem, de Alvarez; A Vida de Picasso, de E. B.
White; e. e. cummings; T. S. Eliot; Pound; Ibsen; e por aí afora.
Tinha até nove livros dele mesmo. Talvez isso fosse o melhor.
Louise
voltou e meteu-se na cama, o prato no colo.
– Que
foi que deu errado no seu casamento?
– Qual
deles? Foram cinco!
– O
último. Lita.
– Ah.
Bem, a menos que estivesse em movimento, Lita achava que nada estava
acontecendo. Gostava de danças e festas, toda a vida dela girava em
torno de danças e festas. Gostava do que chamava de “ficar
ligadona”. O que significa homens. Dizia que eu restringia os
“baratos” dela. Dizia que eu era ciumento.
– Você
reprimia ela?
– Acho
que sim, mas tentava não fazer isso. Na última festa, saí para o
quintal com minha cerveja e deixei ela mandar ver. A casa estava
cheia de homens, eu ouvia ela lá dentro berrando “Iá– rru! Iá
Ru! Iá Ru!” Acho que era só uma garota do interior desinibida.
– Você
podia dançar também.
– Acho
que sim. Às vezes dançava. Mas ligam o estéreo tão alto que a
gente não consegue nem pensar. Eu saía para o quintal. Voltava pra
pegar mais cerveja, e lá estava um cara beijando ela debaixo da
escada. Eu saía até eles acabarem, depois voltava de novo pra pegar
a cerveja. Estava escuro, mas eu achava que tinha sido um amigo, e
depois perguntava a ele o que fazia lá embaixo da escada.
– Ela
amava você?
– Dizia
que sim.
– Sabe,
dançar e beijar não é tão mal assim.
– Acho
que não. Mas você tinha de ver ela. Tinha uma maneira de dançar
como se estivesse se oferecendo em sacrifício. Para estupro.
Funcionava muito. Os homens adoravam. Ela tinha trinta e três anos e
dois filhos.
– Ela
não entendia que você era um solitário. Os homens têm naturezas
diferentes.
– Ela
nunca levou em conta minha natureza. Como eu disse, se não estivesse
em movimento, ela achava que nada acontecia. Fora isso, vivia de saco
cheio. “Oh, isso me enche, aquilo me enche. Tomar o café da manhã
com você me enche. Ver você escrever me enche. Preciso de
desafios.”
– Isso
não me parece inteiramente errado.
– Acho
que não. Mas você sabe, só pessoas que enchem o saco ficam de saco
cheio. Têm de viver se cutucando continuamente pra se sentir vivas.
– Como
sua bebida, por exemplo?
– É,
como minha bebida. Também não posso encarar a vida de frente.
– O
problema era só esse?
– Não,
ela era ninfomaníaca mas não sabia. Dizia que eu satisfazia ela
sexualmente, mas duvido que eu satisfizesse a ninfomania espiritual.
Foi a segunda ninfo com quem vivi. Tinha ótimas qualidades fora
isso, mas a ninfomania era um vexame. Tanto para mim como pra meus
amigos. Eles me puxavam para um lado e diziam: “Que diabos deu
nela?” E eu respondia: “Nada, é só uma garota do interior.”
– E
era?
– Era.
Mas a outra coisa era um vexame.
– Mais
torrada?
– Não,
esta está bem.
– O
que era um vexame?
– O
comportamento dela. Se tivesse outro homem na sala, ela se sentava
tão perto dele quanto possível. Ele se curvava pra apagar o cigarro
no cinzeiro no chão, ela se curvava também. Ele virava a cabeça
pra olhar alguma coisa, ela virava também.
– Era
coincidência?
– Eu
pensava assim. Mas acontecia vezes demais. O homem se levantava para
atravessar a sala, ela se levantava e ia ao lado dele. Quando ele
atravessava a sala de volta, lá vinha ela ao lado dele. Os
incidentes eram contínuos e numerosos e, como eu disse, vexatórios
tanto pra mim quanto pra meus amigos. E no entanto tenho certeza de
que ela não sabia o que fazia, vinha tudo do subconsciente.
– Quando
eu era mocinha, tinha uma mulher no bairro com uma filha de quinze
anos. A filha era incontrolável. A mãe mandava ela comprar pão,
ela voltava oito horas depois com o pão, mas nesse tempo tinha
fodido com seis homens.
– Acho
que a mãe devia fazer seu próprio pão.
– Acho
que sim. A garota não se continha. Assim que via um homem, começava
a se rebolar toda. A mãe acabou mandando castrar ela.
– E
podem fazer isso?
– Podem,
mas é preciso passar por tudo que é processo legal. Não se podia
fazer mais nada com ela. Tinha passado a vida grávida.
– Você
tem alguma coisa contra a dança? – continuou Louise.
– A
maioria das pessoas dança por prazer, pra se sentir bem. Ela passava
pra sacanagem. Uma das danças favoritas dela era a Dança do
Cachorro Branco. O cara trançava uma das pernas dela entre as dele e
mexia pra frente e pra trás como um cachorro com tesão. Outra
favorita era a Dança do Bêbado. Ela e o parceiro acabavam no chão,
rolando um por cima do outro.
– Ela
dizia que você tinha ciúmes da dança dela?
– Era
a palavra que ela usava a maioria das vezes: ciúmes.
– Eu
dançava no ginásio.
– É?
Escuta, obrigado pelo café.
– Tudo
bem. Eu tinha um parceiro no ginásio. A gente era os melhores
dançarinos da escola. Ele tinha três bagos; eu achava isso um sinal
de masculinidade.
– Três
bagos?
– É,
três bagos. Como eu ia dizendo, a gente sabia mesmo dançar. Eu dava
o sinal tocando o pulso dele, e aí a gente saltava e virava em pleno
ar, muito alto, e caía de pé. Uma vez, a gente estava dançando, e
eu toquei o pulso dele e dei meu salto e virada, mas não caí de pé.
Caí de bunda. Ele pôs a mão na boca, ficou me olhando e disse: “Ó,
meu deus do céu!” e se mandou. Não me levantou. Era homossexual.
Nunca mais dançamos juntos.
– Tem
alguma coisa contra homossexuais de três bagos?
– Não,
mas nunca mais dançamos.
– Lita
era verdadeiramente obcecada pela dança. Entrava em bares
desconhecidos e convidava os homens a dançarem com ela. Claro que
eles iam. Achavam ela uma foda fácil. Eu não sei se ela fodia ou
não. Acho que às vezes fodia. O problema dos homens que dançam ou
vivem em bares é que têm uma visão igual à de uma tênia.
– Como
sabe disso?
– Eles
são apanhados no ritual.
– Que
ritual?
– O
ritual da energia mal dirigida.
Henry
levantou-se e começou a vestir-se.
– Garota,
eu tenho de ir.
– Que
é isso?
– Tenho
de terminar um trabalho. Eu sou, supostamente, um escritor.
– Tem
uma peça de Ibsen na TV hoje de noite. Oito e meia. Você vem?
– Claro.
Deixei aquele uísque. Não beba todo.
Henry
enfiou as roupas, desceu a escada, entrou no carro e dirigiu para
casa e sua máquina de escrever. Segundo andar, fundos. Todo dia,
enquanto ele batia à máquina, a mulher de baixo batia no teto com a
vassoura. Ele escrevia da maneira difícil, sempre tinha sido da
maneira difícil: A Dança do Cachorro Branco...
Louise
ligou às cinco e meia da tarde. Atacara o uísque. Estava bêbada.
Embolava as palavras. Não dizia coisa com coisa. A leitora de Thomas
Chatterton e D. H. Lawrence. A leitora de nove dos livros dele.
– Henry?
– Sim?
– Oh,
aconteceu uma coisa maravilhosa.
– Sim?
– Um
rapaz negro veio me visitar. É lindo! Mais lindo que você...
– Claro.
– ...mais
lindo que você e eu juntos.
– Sim.
– Me
deixou tão excitada! Estou a ponto de perder a cabeça!
– Sim.
– Você
não liga?
– Não.
– Sabe
como passamos a tarde?
– Não.
– Lendo
seus poemas!
– Oh?
– E
sabe o que ele disse?
– Não.
– Disse
que seus poemas são sensacionais!
– Tudo
bem.
– Escuta,
ele me deixou muito excitada. Não sei o que fazer. Você não
vem? Agora? Quero ver você agora...
– Louise,
estou trabalhando...
– Escuta,
você tem alguma coisa contra negros?
– Não.
– Eu
conheço esse garoto há dez anos. Ele trabalhava pra mim quando eu
era rica.
– Quer
dizer, quando você ainda vivia com seu marido rico.
– Vou
ver você depois? Ibsen é às oito e meia.
– Eu
lhe informo.
– Por
que aquele sacana apareceu? Eu estava bem, e aí ele aparece. Nossa.
Estou tão excitada que preciso ver você. Estou ficando maluca. Ele
era tão lindo.
– Estou
trabalhando, Louise. O problema aqui é “Aluguel”. Tente
entender.
Louise
desligou. Tornou a ligar às oito e vinte. Henry disse que continuava
trabalhando. E continuava. Depois começou a beber e ficou
simplesmente sentado na cadeira, simplesmente sentado na cadeira. Às
dez para as dez, ouviu uma batida na porta. Era Booboo Meltzer, o
astro de rock número 1 da década de 1970, atualmente desempregado,
ainda vivendo de direitos autorais.
– Oi,
garoto – disse Henry.
Meltzer
entrou e sentou-se.
– Cara
– disse –, você é um velho e belo gato. Eu não aguento.
– Calma,
garoto, gato está fora de moda, o quente agora é cachorro.
– Tenho
um palpite de que você precisa de ajuda, coroa.
– Garoto,
nunca foi de outro jeito.
Henry
foi à cozinha, pegou duas cervejas, abriu-as e voltou.
– Estou
sem xoxota, garoto, o que pra mim é o mesmo que estar sem amor. Não
consigo separar as duas coisas. Não sou tão vivo assim.
– Nenhum
de nós é vivo, Vovô. Todos precisamos de ajuda.
– É...
Meltzer
tinha um tubinho de celuloide. Cuidadosamente, despejou dois
montinhos brancos na mesa de café.
– Isso
é cocaína, Vovô, cocaína...
– Ah,
ha.
Meltzer
meteu a mão no bolso, puxou uma nota de cinquenta dólares, fez um
canudo bem comprimido e enfiou-o no nariz. Apertando a outra narina
com um dedo, curvou-se sobre uma das manchas brancas na mesa de café
e inalou-a. Depois enfiou a nota de cinquenta dólares na outra
narina e cafungou a segunda mancha.
– Neve
– disse Meltzer.
– É
Natal. Muito apropriado – disse Henry.
Meltzer
bateu mais duas manchas e passou os cinquenta. Henry disse:
– Guenta
aí, eu uso a minha.
E
pegou uma nota de um dólar e cafungou. Uma para cada narina.
– Que
acha de A Dança do Cachorro Branco? – perguntou Henry.
– Isto
aqui é que é “A Dança do Cachorro Branco”, disse Meltzer,
batendo mais duas carreiras.
– Nossa
– disse Henry. – Acho que nunca mais vou ficar de saco cheio.
Você não está cheio de mim, está?
– De
jeito nenhum – disse Meltzer, cafungando através da nota de
cinquenta dólares com toda a força. – Vovô, de jeito nenhum…
Charles Bukowski, in Numa Fria
Nenhum comentário:
Postar um comentário