Em
conversa com Pablo Neruda num hotel da avenida Atlântica, ele me
contou que o corpo de Walt Disney estava congelado em local secreto à
espera da cura do câncer. Francamente, eu acreditava que Neruda
fosse falar de poesia quando me dispus a lhe apresentar a noite de
Copacabana. Mas ele parecia cansado de ser Pablo Neruda e, sem
paciência para jornalistas e fotógrafos que o aguardavam na calçada
da avenida, me pediu para sairmos por uma porta lateral. Era uma
porta giratória, o que talvez me tenha desnorteado, pois sem querer
o conduzi em direção oposta à beira-mar. Demos numa parte acanhada
do bairro, de onde toda luz parecia sugada para resplandecer na
avenida. Parecia um lado avesso de Copacabana, onde os fundos dos
prédios ficavam de frente para a rua. Eram prédios cinzentos de
doze ou mais andares, em cujas fachadas figuravam janelas de vidro
leitoso ou canelado e roupas estendidas à guisa de cortinas. No
térreo havia portas de garagem e entradas de serviço, além de
botequins pés-sujos onde Neruda deve ter se desgarrado de mim
sorrateiramente; em vez de tomar espumantes num terraço da orla, ele
era bastante comunista para preferir uma cachaça num balcão
sinistro. Rodei à sua procura de bar em bar, mas não havia sombra
dele, e a caminhada foi ficando mais difícil à medida que
andarilhos e indigentes se deitavam para dormir na calçada. Comecei
a me afligir pela sorte do poeta, imaginei um assalto, um sequestro,
um golpe do suadouro nas mãos de um proxeneta. Corri ao hotel na vã
esperança de que ele tivesse voltado de táxi, e só pensava no que
dizer a Jorge Luis Borges, que me incumbira de ciceronear Pablo
Neruda no Rio. É possível que Borges desdenhasse a poesia de
Neruda, mas não a ponto de desejar que ele desaparecesse numa cidade
violenta como a minha. Agora, seus inimigos peronistas o
crucificariam por confiar o poeta a mim, um menino de dezesseis anos.
Neruda, de fato, não voltou ao hotel até de manhãzinha, quando
adormeci numa poltrona do saguão depois de esperar por ele a noite
inteira. Despertei com o dia alto, desconfiando que o passeio com
Neruda fora um sonho, quando vi Ava Gardner sair do elevador.
Infelizmente,
nunca estive com Neruda nem jamais falei com Borges. Copacabana, essa
sim, eu conhecia de ponta a ponta, mas mesmo morando diante do mar,
às vezes me sentia contaminado pelo lado sombrio do bairro. Visto de
frente, eu era um adolescente de belas cores, o rosto bronzeado e uns
olhos claros de fulminar as garotas que mirava na praia. Já minhas
costas eram de pobre, apinhadas de cravos, espinhas, quistos e
furúnculos que, para além do prejuízo estético, denunciavam
minhas práticas masturbatórias. Por um tempo experimentei ir à
praia de camisa, mas pegava mal, era traje de suburbano. Então fui
me chegando às ruas internas de Copacabana, onde jogava futebol no
asfalto com os filhos das empregadas. Ali eu podia andar de torso nu
sem constrangimento, pois meus camaradas, com séculos de bordoadas
no lombo, talvez não hesitassem em trocar sua pele marrom por uma
vermelhenta e sebácea como a minha. De noite, contudo, eu tinha um
terno bege para passear na avenida Atlântica, onde os grandes hotéis
atraíam jornalistas e fotógrafos ávidos por topar com as estrelas
de cinema que na época abundavam por aqui. Pablo Neruda inclusive me
contou que, certa vez, Ava Gardner se encantou com o crooner do bar
do Copacabana Palace e o convidou a subir à sua suíte. Ao vê-la
nua, o sujeito quedou mesmerizado para sempre, levando-a a atirar
copos, garrafas, jarros de flores, telefones e cadeiras pela janela.
Verídico ou não, foi desse episódio que me lembrei ao ver Ava
Gardner sair do elevador. O capitão porteiro nos abriu de par em
par a porta nobre da avenida Atlântica, mas Ava Gardner achou
excessiva a claridade do dia, mesmo usando óculos escuros. Propôs
que fôssemos tomar um martíni ali mesmo, no bar a meia-luz do
hotel. Depois de alguns drinques, ela me disse que não queria saber
das praias, nem do Pão de Açúcar, muito menos do Cristo Redentor.
Antes de deixar o Rio, no entanto, fazia questão de subir ao morro
onde rodaram o filme Orfeu Negro, musical a que ela assistira
inúmeras vezes. Aproveitei para cantar imitando João Gilberto, o
que a levou a me levar pela mão, não à sua suíte como sonhei por
um segundo, mas a um conversível rabo de peixe estacionado na
avenida Atlântica. No banco traseiro com Ava, sentado com os pés no
estofamento, ordenei em inglês ao motorista que nos levasse ao
início da avenida, mas ao pé do morro da Babilônia ele vacilou.
Disse que além daquele ponto não iria, porque era muito perigoso, e
não adiantou a madame lhe acenar com o maço de dólares que trazia
na bolsa. As crianças da favela já trepavam no capô do carro
quando ela me convocou a acompanhá-la a pé morro acima. Logo os
moradores mais crescidos reconheceram a grande estrela, começaram a
lhe pedir autógrafos, e naquele empurra-empurra não faltou quem lhe
beliscasse e apalpasse a bunda. Foi aí que um valentão numa
Harley-Davidson, com ares de chefe do tráfico, dispersou a turba.
Quando Ava montou na garupa da moto, lembrei-lhe que ela era casada
com o Frank Sinatra. Como não me atendesse, avisei da sua filmagem
noturna logo mais, mas o ronco da moto abafou minha voz. Voltei ao
hotel sem saber como me explicar ao diretor do filme, John Huston,
que deixara Ava Gardner aos meus cuidados. Encontrei-o a beber com o
ator Richard Burton na piscina do Copacabana Palace, os dois
aparentemente despreocupados com o sumiço da diva problemática.
Aliás, já estavam de olho numa substituta, a atriz alemã Romy
Schneider, que vi deitada numa espreguiçadeira lendo o roteiro de A
Noite do Iguana.
Infelizmente,
não tive o prazer de conhecer John Huston nem Richard Burton, ao
passo que Romy Schneider nunca foi cogitada para A Noite do Iguana,
rodado com Ava Gardner no México. Quanto a Pablo Neruda, morreu doze
dias depois do seu amigo Salvador Allende, que se matou para não dar
esse gosto a Pinochet. Com o tempo, fui perdendo a inocência de
sonhar com artistas, e a vida me levou a paragens distantes de
Copacabana. Nas raras ocasiões em que passava pelo bairro, evitava
repisar os caminhos da infância, pois tenho a impressão que a
nostalgia é um pântano. Relembrar a juventude é como olhar dentro
de um poço, e da última vez em que estive numa avenida Atlântica
cheia de gente esquisita, minha cabeça rodou e vi tudo preto.
Busquei abrigo no Copacabana Palace, onde Pablo Neruda me contou que
Romy Schneider também tinha síndrome do pânico. Tudo começou
quando ela descobriu que o tio Adolfo, que a sentava no colo e
beijava suas bochechas de criança, outro não era senão Adolf
Hitler, íntimo de sua mãe. Daí compreendi o ar angustiado com que
ela me pediu um cigarro na piscina do hotel. Ficou desolada ao saber
que eu não fumava Chesterfield, e o Continental sem filtro que lhe
ofereci se molhou com a chuva grossa que só chovia em cima dela.
Envolvi-a num roupão felpudo com o monograma do hotel e me enfiei
com ela num corredor que desembocou num salão chamado Golden Room.
Para minha imensa felicidade, os bacanas pulavam e cantavam a
marchinha de Carnaval que traduzi para Romy em alemão: mamãe eu
quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar. Falei no seu ouvido
que a vida é bela, falei que nasci para ser rico, falei para ela
esquecer o Alain Delon, e quando ia beijar a sua boca, fui agarrado
por dois grandalhões. Disseram que eu não tinha gabarito para
frequentar o Golden Room e me atiraram dentro de um elevador com um
ascensorista mal-encarado. O elevador desceu a uma velocidade tal que
por pouco o estômago não me saía pela boca. Quando a porta se
abriu me vi cara a cara com um general de nome basco, Etchegoyen ou
Etcheverría, cuja cara não me era estranha. Perguntei-lhe se não
nos havíamos deparado quarenta anos antes num quartel, mas ele me
informou que tal entrevista se dera com seu tio, que já na época me
repreendeu por andar com comunistas. Antes que eu pudesse me
defender, ele chamou seu ajudante de ordens, um tipo de bigodinho que
me lembrou Walt Disney. Este me levou para um mafuá recém-instalado
na praça do Lido, onde eu deveria liberar a criança que, nas
palavras dele, ainda pulsava dentro de mim. Fui instado a andar no
trem-fantasma, na montanha-russa, no carro de dar trombada, dei
voltas na roda-gigante e tive náuseas. Pedi licença para ir embora,
mas Walt Disney me apontou um rinque de patinação no gelo, a maior
atração do parque. Com efeito, o rinque estava tão lotado que
ninguém podia se locomover. As pessoas se acotovelavam olhando para
o chão, e havia um corpo no fundo do gelo. Não deu para ver
direito, mas acho que era o Pablo Neruda.
Chico Buarque, in Anos de chumbo e outros contos
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