quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Copacabana

Em conversa com Pablo Neruda num hotel da avenida Atlântica, ele me contou que o corpo de Walt Disney estava congelado em local secreto à espera da cura do câncer. Francamente, eu acreditava que Neruda fosse falar de poesia quando me dispus a lhe apresentar a noite de Copacabana. Mas ele parecia cansado de ser Pablo Neruda e, sem paciência para jornalistas e fotógrafos que o aguardavam na calçada da avenida, me pediu para sairmos por uma porta lateral. Era uma porta giratória, o que talvez me tenha desnorteado, pois sem querer o conduzi em direção oposta à beira-mar. Demos numa parte acanhada do bairro, de onde toda luz parecia sugada para resplandecer na avenida. Parecia um lado avesso de Copacabana, onde os fundos dos prédios ficavam de frente para a rua. Eram prédios cinzentos de doze ou mais andares, em cujas fachadas figuravam janelas de vidro leitoso ou canelado e roupas estendidas à guisa de cortinas. No térreo havia portas de garagem e entradas de serviço, além de botequins pés-sujos onde Neruda deve ter se desgarrado de mim sorrateiramente; em vez de tomar espumantes num terraço da orla, ele era bastante comunista para preferir uma cachaça num balcão sinistro. Rodei à sua procura de bar em bar, mas não havia sombra dele, e a caminhada foi ficando mais difícil à medida que andarilhos e indigentes se deitavam para dormir na calçada. Comecei a me afligir pela sorte do poeta, imaginei um assalto, um sequestro, um golpe do suadouro nas mãos de um proxeneta. Corri ao hotel na vã esperança de que ele tivesse voltado de táxi, e só pensava no que dizer a Jorge Luis Borges, que me incumbira de ciceronear Pablo Neruda no Rio. É possível que Borges desdenhasse a poesia de Neruda, mas não a ponto de desejar que ele desaparecesse numa cidade violenta como a minha. Agora, seus inimigos peronistas o crucificariam por confiar o poeta a mim, um menino de dezesseis anos. Neruda, de fato, não voltou ao hotel até de manhãzinha, quando adormeci numa poltrona do saguão depois de esperar por ele a noite inteira. Despertei com o dia alto, desconfiando que o passeio com Neruda fora um sonho, quando vi Ava Gardner sair do elevador.
Infelizmente, nunca estive com Neruda nem jamais falei com Borges. Copacabana, essa sim, eu conhecia de ponta a ponta, mas mesmo morando diante do mar, às vezes me sentia contaminado pelo lado sombrio do bairro. Visto de frente, eu era um adolescente de belas cores, o rosto bronzeado e uns olhos claros de fulminar as garotas que mirava na praia. Já minhas costas eram de pobre, apinhadas de cravos, espinhas, quistos e furúnculos que, para além do prejuízo estético, denunciavam minhas práticas masturbatórias. Por um tempo experimentei ir à praia de camisa, mas pegava mal, era traje de suburbano. Então fui me chegando às ruas internas de Copacabana, onde jogava futebol no asfalto com os filhos das empregadas. Ali eu podia andar de torso nu sem constrangimento, pois meus camaradas, com séculos de bordoadas no lombo, talvez não hesitassem em trocar sua pele marrom por uma vermelhenta e sebácea como a minha. De noite, contudo, eu tinha um terno bege para passear na avenida Atlântica, onde os grandes hotéis atraíam jornalistas e fotógrafos ávidos por topar com as estrelas de cinema que na época abundavam por aqui. Pablo Neruda inclusive me contou que, certa vez, Ava Gardner se encantou com o crooner do bar do Copacabana Palace e o convidou a subir à sua suíte. Ao vê-la nua, o sujeito quedou mesmerizado para sempre, levando-a a atirar copos, garrafas, jarros de flores, telefones e cadeiras pela janela. Verídico ou não, foi desse episódio que me lembrei ao ver Ava Gardner sair do elevador. O capitão porteiro nos abriu de par em par a porta nobre da avenida Atlântica, mas Ava Gardner achou excessiva a claridade do dia, mesmo usando óculos escuros. Propôs que fôssemos tomar um martíni ali mesmo, no bar a meia-luz do hotel. Depois de alguns drinques, ela me disse que não queria saber das praias, nem do Pão de Açúcar, muito menos do Cristo Redentor. Antes de deixar o Rio, no entanto, fazia questão de subir ao morro onde rodaram o filme Orfeu Negro, musical a que ela assistira inúmeras vezes. Aproveitei para cantar imitando João Gilberto, o que a levou a me levar pela mão, não à sua suíte como sonhei por um segundo, mas a um conversível rabo de peixe estacionado na avenida Atlântica. No banco traseiro com Ava, sentado com os pés no estofamento, ordenei em inglês ao motorista que nos levasse ao início da avenida, mas ao pé do morro da Babilônia ele vacilou. Disse que além daquele ponto não iria, porque era muito perigoso, e não adiantou a madame lhe acenar com o maço de dólares que trazia na bolsa. As crianças da favela já trepavam no capô do carro quando ela me convocou a acompanhá-la a pé morro acima. Logo os moradores mais crescidos reconheceram a grande estrela, começaram a lhe pedir autógrafos, e naquele empurra-empurra não faltou quem lhe beliscasse e apalpasse a bunda. Foi aí que um valentão numa Harley-Davidson, com ares de chefe do tráfico, dispersou a turba. Quando Ava montou na garupa da moto, lembrei-lhe que ela era casada com o Frank Sinatra. Como não me atendesse, avisei da sua filmagem noturna logo mais, mas o ronco da moto abafou minha voz. Voltei ao hotel sem saber como me explicar ao diretor do filme, John Huston, que deixara Ava Gardner aos meus cuidados. Encontrei-o a beber com o ator Richard Burton na piscina do Copacabana Palace, os dois aparentemente despreocupados com o sumiço da diva problemática. Aliás, já estavam de olho numa substituta, a atriz alemã Romy Schneider, que vi deitada numa espreguiçadeira lendo o roteiro de A Noite do Iguana.
Infelizmente, não tive o prazer de conhecer John Huston nem Richard Burton, ao passo que Romy Schneider nunca foi cogitada para A Noite do Iguana, rodado com Ava Gardner no México. Quanto a Pablo Neruda, morreu doze dias depois do seu amigo Salvador Allende, que se matou para não dar esse gosto a Pinochet. Com o tempo, fui perdendo a inocência de sonhar com artistas, e a vida me levou a paragens distantes de Copacabana. Nas raras ocasiões em que passava pelo bairro, evitava repisar os caminhos da infância, pois tenho a impressão que a nostalgia é um pântano. Relembrar a juventude é como olhar dentro de um poço, e da última vez em que estive numa avenida Atlântica cheia de gente esquisita, minha cabeça rodou e vi tudo preto. Busquei abrigo no Copacabana Palace, onde Pablo Neruda me contou que Romy Schneider também tinha síndrome do pânico. Tudo começou quando ela descobriu que o tio Adolfo, que a sentava no colo e beijava suas bochechas de criança, outro não era senão Adolf Hitler, íntimo de sua mãe. Daí compreendi o ar angustiado com que ela me pediu um cigarro na piscina do hotel. Ficou desolada ao saber que eu não fumava Chesterfield, e o Continental sem filtro que lhe ofereci se molhou com a chuva grossa que só chovia em cima dela. Envolvi-a num roupão felpudo com o monograma do hotel e me enfiei com ela num corredor que desembocou num salão chamado Golden Room. Para minha imensa felicidade, os bacanas pulavam e cantavam a marchinha de Carnaval que traduzi para Romy em alemão: mamãe eu quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar. Falei no seu ouvido que a vida é bela, falei que nasci para ser rico, falei para ela esquecer o Alain Delon, e quando ia beijar a sua boca, fui agarrado por dois grandalhões. Disseram que eu não tinha gabarito para frequentar o Golden Room e me atiraram dentro de um elevador com um ascensorista mal-encarado. O elevador desceu a uma velocidade tal que por pouco o estômago não me saía pela boca. Quando a porta se abriu me vi cara a cara com um general de nome basco, Etchegoyen ou Etcheverría, cuja cara não me era estranha. Perguntei-lhe se não nos havíamos deparado quarenta anos antes num quartel, mas ele me informou que tal entrevista se dera com seu tio, que já na época me repreendeu por andar com comunistas. Antes que eu pudesse me defender, ele chamou seu ajudante de ordens, um tipo de bigodinho que me lembrou Walt Disney. Este me levou para um mafuá recém-instalado na praça do Lido, onde eu deveria liberar a criança que, nas palavras dele, ainda pulsava dentro de mim. Fui instado a andar no trem-fantasma, na montanha-russa, no carro de dar trombada, dei voltas na roda-gigante e tive náuseas. Pedi licença para ir embora, mas Walt Disney me apontou um rinque de patinação no gelo, a maior atração do parque. Com efeito, o rinque estava tão lotado que ninguém podia se locomover. As pessoas se acotovelavam olhando para o chão, e havia um corpo no fundo do gelo. Não deu para ver direito, mas acho que era o Pablo Neruda.

Chico Buarque, in Anos de chumbo e outros contos

Nenhum comentário:

Postar um comentário