terça-feira, 27 de setembro de 2022

Como ser editado

Tendo sido, a vida inteira, um escritor marginal, conheci alguns estranhos editores, mas os mais estranhos de todos foram H. R. Mulloch e sua esposa, Honeysuckle. Mulloch, ex-presidiário e ex-ladrão de diamantes, era editor da revista Falecimento. Comecei a mandar-lhe poesia, e seguiu-se uma correspondência. Ele dizia que minha poesia o arruinara para a de todos os outros; e eu lhe respondi que também a mim ela arruinara para a de todos os outros. H. R. começou a falar da possibilidade de produzir um livro de meus poemas e eu disse tudo bem, ótimo, vá em frente. Ele escreveu: não posso pagar os direitos autorais, somos pobres como ratos de igreja. Eu respondi: tudo bem, ótimo, esqueça os direitos, eu sou tão pobre quanto o peito murcho de uma rata de igreja. Ele respondeu: espera aí, a maioria dos escritores, bem, eu os conheci, e são completos babacas e seres humanos horríveis. Eu escrevi: tem razão, eu sou um completo babaca e um ser humano horrível. Tudo bem, ele respondeu, eu e Honeysuckle vamos a Los Angeles dar uma conferida em você.
O telefone tocou uma semana e meia depois. Eles estavam na cidade, acabavam de chegar de Nova Orleans, hospedados num hotel da Rua Três cheio de prostitutas, bebuns, batedores de carteira, lavadores de pratos, assaltantes, estranguladores e estupradores. Mulloch adorava a vida inferior, e acho que até amava a pobreza. Por suas cartas, fiquei com a ideia de que H. R. acreditava que a pobreza gerava a pureza. Claro, é o que os ricos sempre quiseram que a gente acreditasse, mas isso já é outra história.
Entrei no carro com Marie e seguimos, primeiro parando para as embalagens de seis cervejas e uma garrafinha de uísque barato. Um homenzinho grisalho de pouco mais de um metro e sessenta estava parado do lado de fora. Vestia azul de operário, mas com um lenço (branco) no pescoço. Na cabeça, usava um sombrero branco de copa muito alta. Marie e eu nos aproximamos. Ele tirava baforadas de um cigarro e sorria.
Chinaski?
É – respondi – , e esta aqui é Marie, minha mulher.
Nenhum homem – ele disse – pode jamais chamar uma mulher de sua. A gente nunca é dono delas, só tomamos de empréstimo por algum tempo.
É – eu disse –, acho que assim é melhor.
Seguimos H. R. escada acima e por um corredor pintado de azul e vermelho que cheirava a assassinato.
Foi o único hotel que encontramos na cidade que aceitava os cachorros, um papagaio e nós dois.
Parece um ótimo lugar – eu disse.
Ele abriu a porta e entramos. Dois cachorros corriam de um lado para outro, e Honeysuckle estava parada no centro da sala com um papagaio no ombro.
Thomas Wolfe – disse o papagaio – é o maior escritor vivo do mundo.
Wolfe já morreu – eu disse. – Seu papagaio está errado.
É um papagaio velho – disse H. R. – Nós temos ele faz muito tempo.
Há quanto tempo está com Honeysuckle?
Trinta anos.
E apenas tomou ela emprestada por algum tempo?
É o que parece.
Os cachorros corriam em volta e Honeysuckle ficou parada no centro da sala com o papagaio no ombro. Era morena, italiana ou grega, muito magra, com bolsas embaixo dos olhos; tinha um ar trágico, bondoso e perigoso, sobretudo trágico. Pus o uísque e as cervejas na mesa e todo mundo se adiantou para eles. Apareceram copos empoeirados, juntamente com vários cinzeiros. Através da parede à esquerda trovejou de repente uma voz masculina, “Sua puta fodida, eu quero que você coma minha merda!”
Nós nos sentamos e eu servi o uísque pra todos. H. R. me passou um charuto. Eu tirei a embalagem, mordi a ponta fora e acendi.
Que acha da literatura moderna? – perguntou H. R.
Na verdade não gosto muito.
H. R. entrecerrou os olhos e me deu um sorrisinho.
Ah, era o que eu pensava!
Escuta – eu disse –, por que não tira esse sombrero pra eu ver com quem estou tratando? Você pode ser um ladrão de cavalo.
Não – ele disse, arrancando o sombrero com um gesto dramático –, mas fui um dos melhores ladrões de diamantes do estado de Ohio.
É mesmo?
É.
As garotas bebiam.
Eu simplesmente adoro meus cachorros – disse Honeysuckle. – Vocês têm cachorros? – ela me perguntou.
Não sei se gosto deles ou não.
Ele ama a si mesmo – disse Marie.
Marie tem uma mente muito penetrante – eu disse.
Gosto do modo como você escreve – disse H. R. – Sabe dizer muita coisa sem muito babado.
O gênio talento seja a capacidade de dizer coisas profundas de maneira simples.
Que é isso? – perguntou H. R.
Eu repeti a declaração e servi mais uísque pro grupo.
Preciso anotar isso – disse H. R.
Sacou uma caneta do bolso e anotou-a na borda de uma das sacolas de papel pardo em cima da mesa.
O papagaio saltou do ombro de Honeysuckle, atravessou a mesa e subiu em meu ombro esquerdo.
Legal – disse Honeysuckle.
James Thurber – disse o papagaio – é o maior escritor vivo do mundo.
Sacana burro – eu disse ao pássaro.
Senti uma dor aguda na orelha esquerda. O bicho quase a arrancara. Somos todos criaturas muito sensíveis. H. R. destampou mais cervejas. Continuamos bebendo.
A tarde tornou-se noite, e a noite tornou-se meia-noite. Acordei no escuro. Estava dormindo no tapete no centro da sala. H. R. e Honeysuckle dormiam na cama. Marie dormia no sofá. Todos os três roncavam, sobretudo Marie. Eu me levantei e me sentei à mesa. Ainda restava um pouco de uísque. Servi-o e bebi uma cerveja quente. Fiquei ali sentado e bebi mais cerveja quente. O papagaio empoleirava-se nas costas de uma cadeira defronte de mim. De repente, ele saltou e atravessou a mesa por entre os cinzeiros e garrafas vazias e subiu em meu ombro.
Não diga aquilo – eu lhe disse –, me irrita muito quando você diz aquilo.
Puta da porra – disse o papagaio.
Eu o peguei pelos pés e coloquei-o de volta na cadeira. Depois me deitei no tapete e fui dormir.
Pela manhã, H. R. Mulloch fez um anúncio.
Decidi editar um livro com seus poemas. É melhor a gente ir pra casa e começar a trabalhar.
Quer dizer que compreendeu que eu não sou um ser humano horrível?
Não – disse H. R. –, não compreendi nada disso, mas decidi ignorar minha opinião e editar você de qualquer jeito.
Você foi mesmo o melhor ladrão de diamantes do estado de Ohio?
Ah, sim.
Sei que cumpriu pena. Como pegaram você?
Eu fui tão idiota que não quero falar disso.
Eu desci e peguei mais duas embalagens de seis cervejas, voltei e com Marie ajudei H. R. e Honeysuckle a fazerem as malas. Havia caixas especiais para o transporte dos cachorros e do papagaio. Baixamos tudo pela escada para dentro de meu carro, depois nos sentamos e matamos as cervejas. Éramos todos profissionais: ninguém era idiota o bastante para sugerir café da manhã.
Agora vocês vão nos visitar – disse H. R. – Vamos preparar o livro juntos. Você é um filho da puta, mas a gente pode falar com você. Os outros poetas estão sempre exibindo as plumagens e fazendo um número burro de babaca.
Você é legal – disse Honeysuckle. – Os cachorros gostam de você.
E o papagaio – disse H. R.
As garotas ficaram no carro e eu voltei com H. R. para ele devolver a chave. Uma velha de quimono verde, o cabelo pintado de vermelho vivo, abriu a porta.
Essa é Mama Stafford – me disse H. R. – Mama Stafford, esse é o maior poeta do mundo.
É mesmo? – perguntou Mama Stafford.
O maior poeta vivo do mundo – eu disse.
Por que vocês não entram pra tomar um trago? Parece que estão precisados.
Entramos e cada um engoliu um copo de vinho branco quente. Despedimo-nos e voltamos ao carro…
Na estação ferroviária, H. R. comprou as passagens e embarcou os cachorros e o papagaio no balcão de bagagem. Depois voltou e sentou-se conosco.
Odeio voar – disse. – Tenho pavor de voar.
Fui pegar uma garrafinha de uísque e a passamos entre nós enquanto esperávamos. Depois começaram a pôr a carga no trem. Ficamos zanzando na plataforma e de repente Honeysuckle saltou em cima de mim e me deu um longo beijo. No fim, enfiou e retirou rapidamente a língua em minha boca. Eu fiquei parado e acendi um charuto, enquanto Marie beijava H. R. Depois H. R. e Honeysuckle embarcaram no trem.
É um cara legal – disse Marie.
Querida – eu disse –, acho que você paquerou ele.
Está com ciúmes?
Sempre estou.
Veja, estão na janela, sorrindo pra nós.
É embaraçoso. Eu queria que a porra do trem fosse embora.
Finalmente o trem se pôs em movimento. Acenamos, é claro, e eles acenaram de volta. H. R. tinha um sorriso satisfeito e feliz. Honeysuckle parecia chorar. Parecia muito trágica. Depois não pudemos mais vê-los. Acabou-se. Eu ia ser editado. Poemas Seletos. Demos meia-volta e atravessamos a estação ferroviária.

Charles Bukowski, in Numa Fria

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