sábado, 17 de setembro de 2022

As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 7


Na década de 1990, esperava-se que os próprios profissionais da saúde mental procurassem aconselhamento e orientação constantes para manter o bem-estar emocional e mental. Certa vez, tentei seguir carreira na psicologia, mas percebi que os problemas que precisava diagnosticar eram extremamente emocionais ou subjetivos demais para tolerar uma análise reflexiva, e as ferramentas com que eu contava eram pueris ou pretensiosas. Resumindo, eu não tinha temperamento para ser psicólogo, e, ao ser internado no Hospício St. Margot pela segunda vez na minha existência, embora pela primeira naquela vida, senti uma mistura de fúria e orgulho ao ver que minha sanidade, mantida intacta apesar de todos as provações, poderia ser mal interpretada pelos mortais ignorantes que me rodeavam.
Os profissionais da saúde mental da década de 1960 fazem suas contrapartes da década de 1990 parecerem Mozarts espezinhando as obras inferiores de Salieri. Suponho que deva me considerar sortudo pelo fato de algumas das técnicas experimentais dos anos 1960 não terem chegado à cosmopolita Nortúmbria. Não testaram LSD ou ecstasy em mim, nem me convidaram a discutir minha sexualidade, já que nosso incomparável psiquiatra, dr. Abel, considerava Freud insalubre. O primeiro a descobrir isso foi a Tique, uma mulher infeliz que na verdade se chamava Lucy, cuja síndrome de Tourette fora tratada com uma mistura de apatia e brutalidade. Se por acaso nossos vigias tivessem alguma noção sobre terapia da quebra de hábito, colocavam-na em prática ao bater na lateral da cabeça de Lucy com as palmas abertas sempre que ela era tomada por um tique ou grunhia, e, se como consequência disso ela ficasse ainda mais alterada — o que era frequente quando provocada —, dois deles se sentavam em cima dela, um nas pernas, um no peito, até que ela quase desmaiasse. Na única vez em que tentei intervir, recebi o mesmo tratamento e fui imobilizado abaixo de Bill Feio, ex-presidiário e enfermeiro-chefe do turno diurno, com a aprovação vociferante de Clara Watkins e do Novato, que trabalhara lá por seis meses e ainda não havia revelado o próprio nome. Mostrando iniciativa, o Novato ficou em cima dos meus pulsos, enquanto Bill Feio me explicava que eu estava me comportando de maneira muito impertinente e prejudicial, e só porque eu pensava que era médico não significava que sabia de qualquer coisa. Chorei por me sentir impotente e frustrado, e ele me deu um tapa, o que despertou em mim uma raiva que canalizei para tentar conter as lágrimas e converter a autopiedade em fúria, mas não consegui.
Pênis! — gritou Tique durante nossa sessão de grupo semanal. — Pênis pênis pênis!
Com seu minúsculo bigode tremendo como um rato assustado acima do lábio superior, o doutor Abel clicou a caneta para guardar a ponta.
Calma, Lucy... — disse.
Vamos, me dá, me dá, vamos, vamos, vamos! — gritou ela.
Observei o progresso do rubor que se estendia pelas faces do doutor Abel. Tinha uma luminescência fascinante, quase visível nos vasos capilares, e pensei por um instante que, se a expansão daquele rubor representava a velocidade de seu fluxo sanguíneo através da derme superficial, ele deveria considerar seriamente passar a praticar mais exercícios e submeter-se a uma boa massagem. Seu bigode saíra de moda um dia depois de Hitler invadir a Tchecoslováquia, e a única coisa que o ouvi dizer e que fez sentido foi:
Doutor August, um homem não pode vivenciar um isolamento maior do que se ver sozinho em meio a uma multidão. Ele pode acenar, sorrir e dizer a coisa certa em cada ocasião, mas esse fingimento só faz com que sua alma perca cada vez mais a afinidade com os homens.
Perguntei em que biscoito da sorte ele havia lido isso, ele me olhou confuso e perguntou o que eram biscoitos da sorte e se eram feitos com gengibre.
Me dá, me dá! — gritava a Tique.
Isso é uma perda de tempo — disse o doutor Abel com a voz trêmula, no momento em que Lucy levantava o avental para nos mostrar suas enormes roupas íntimas e começou a dançar, o que fez Simon, que se encontrava no pior momento de sua crise de bipolaridade, começar a chorar, o que fez Margaret começar a balançar o corpo, o que fez que Bill Feio invadir a sala com um porrete na mão e uma camisa de força a caminho, enquanto o doutor Abel corria para longe já com as pontas das orelhas queimando como luzes de freio acesas.
Tínhamos permissão para receber visitas uma vez por mês, mas ninguém apareceu.
Simon disse que era melhor assim, que não queria ser visto daquele jeito, que sentia vergonha.
Margaret gritou e arranhou as paredes até que as unhas ficassem ensanguentadas e ela tivesse de ser levada ao quarto e sedada.
Com o rosto coberto de saliva, Lucy disse que não éramos nós quem devíamos nos sentir envergonhados, mas eles. Não disse quem eram “eles”, nem precisava, porque simplesmente tinha razão.
Após dois meses, eu estava pronto para ir embora.
Agora eu vejo que sofri um colapso nervoso — expliquei calmamente, sentado à mesa do doutor Abel. — É óbvio que eu preciso de aconselhamento, mas só me resta expressar minha profunda gratidão ao senhor por ter me ajudado a superar esse episódio.
Doutor August, acho que o senhor sofreu mais do que um simples colapso nervoso — explicou o doutor Abel, alinhando a caneta com a borda superior de seu bloco de notas. — Você padeceu de um episódio completo de delírio, que, acredito, é sinal de problemas psicológicos mais complexos.
Olhei para o doutor Abel como se fosse pela primeira vez e me perguntei o que poderia significar sucesso para ele. Não necessariamente uma cura, concluí, contanto que o tratamento fosse interessante.
E o que o senhor sugere? — perguntei.
Quero manter você aqui por mais um tempo. Estão lançando alguns medicamentos fascinantes, e acho que podem ser exatamente do que você precisa...
Medicamentos?
As fenotiazinas têm avançado de forma bem promissora...
Isso é inseticida.
Não... não, doutor August, não. Entendo sua preocupação de médico, mas lhe asseguro que, quando me refiro às fenotiazinas, estou falando dos derivados...
Acho que gostaria de uma segunda opinião, doutor Abel.
Ele hesitou, e notei um arroubo de orgulho em seu rosto ante aquele princípio de conflito.
Eu sou um psiquiatra totalmente qualificado, doutor August.
Então, como psiquiatra totalmente qualificado, o senhor sabe como é importante ter a confiança do paciente em qualquer tratamento.
Sei — admitiu ele a contragosto. — Mas eu sou o único médico qualificado nesta ala...
Isso não é verdade. Eu sou qualificado.
Doutor August — disse ele abrindo um sorriso —, o senhor está doente. Não está apto a praticar a medicina, muito menos no senhor mesmo.
Quero que você chame minha esposa — retruquei firmemente. — Ela tem poder legal sobre o que o senhor pode fazer comigo. Eu me recuso a tomar fenotiazinas, e, se o senhor vai me forçar, vai precisar da autorização do meu parente mais próximo. E ela é meu parente mais próximo.
Pelo que entendi, doutor August, ela é parcialmente responsável por sugerir seu confinamento e seu tratamento.
Ela sabe distinguir um medicamento bom de outro ruim — corrigi. — Telefone para ela.
Vou pensar.
Não pense, doutor Abel. Ligue.
Até hoje não sei se ele ligou.
Pessoalmente, duvido.
Quando me deram a primeira dose do medicamento, tentaram fazer de forma dissimulada. Com aparência de inocente e dona de um prazer malicioso ao exercer sua função, Clara Watkins foi enviada com uma bandeja contendo as pílulas habituais — as quais peguei na palma da mão — e uma seringa.
Vamos lá, Harry — censurou ela ao ver minha cara. — Isto aqui é bom para você.
O que é? — exigi saber, já suspeitando.
É um remédio! — entoou ela, animada. — Você adora tomar seus remédios, não é?
Bill Feio estava no fundo do quarto com os olhos fixos em mim. Sua presença confirmou minhas suspeitas: ele já estava esperando para atacar.
Eu exijo ver um termo de consentimento legal assinado pelo meu parente mais próximo.
Tome logo isso — disse ela agarrando minha manga, a qual eu puxei.
Eu exijo um advogado, um representante justo, imparcial.
Isto aqui não é uma prisão, Harry! — respondeu ela em tom amigável, meneando as sobrancelhas para Bill Feio. — Aqui não tem advogados.
Eu tenho direito a uma segunda opinião!
O doutor Abel só está fazendo o que é melhor para você. Por que dificultar as coisas? Vamos, Harry...
Ao ouvir isso, Bill Feio me deu um abraço de urso por trás e, não pela primeira vez, eu me peguei pensando por que em mais de duzentos anos de vida eu nunca me dei ao trabalho de aprender algum tipo de arte marcial. Ele era um ex-condenado que descobriu que ser enfermeiro de hospício era como estar na prisão, mas melhor. Exercitava-se uma hora por dia no jardim particular da instituição e tomava esteroides que faziam com que sua testa reluzisse de suor a todo momento e, suspeito, também com que seus testículos encolhessem, o que ele compensava com mais exercícios e, claro, mais esteroides. Qualquer que fosse o estado de suas gônadas, seus braços eram mais musculosos que minhas pernas e me envolveram com força o bastante para me levantar da minha cadeira enquanto eu inutilmente chutava o nada.
Não — implorei. — Por favor não faz isso por favor por favor não...
Clara estapeou meu braço para deixar uma marca avermelhada, então conseguiu perder a veia por completo. Dei um chute, e Bill Feio me apertou com tanta força que meus olhos se injetaram de sangue e comecei a perder a consciência. Senti a agulha entrar, mas não sair, então eles me largaram no chão e me disseram pra não,
Ser tão estúpido, Harry! Por que você precisa ser sempre tão estúpido com o que é bom para você?
Eles me deixaram lá, com o peso do corpo sobre as pernas escancaradas, esperando surtir efeito. Minha mente disparou enquanto eu tentava pensar num antídoto químico facilmente disponível ao veneno que invadia meu sistema, mas eu só havia sido médico durante uma vida e ainda não tivera tempo de conhecer esses medicamentos modernos. Rastejei pelo chão até o jarro de água e bebi tudo, então me deitei de costas no meio do quarto e tentei me acalmar, desacelerar o pulso e a respiração, numa tentativa inútil de limitar a circulação do medicamento. Tive a ideia de monitorar meus próprios sintomas, então me virei no chão para manter o relógio à vista e perceber a passagem do tempo. Após dez minutos, senti uma leve tontura, mas passou. Após quinze minutos, percebi que meus pés estavam do outro lado do mundo, que alguém havia me serrado ao meio, mas mantido os nervos conectados, embora os ossos estivessem quebrados e outra pessoa controlasse meus pés. Eu sabia que aquilo era impossível, mas mesmo assim acreditei na explicação com uma resignação que me impediu de lutar contra a simples realidade da situação.
Tique chegou, se aproximou de mim e disse,
Tá fazendo o quê?
Achei que ela não precisava de resposta, então não me dei ao trabalho.
A saliva escorria por um lado do meu rosto. Até que foi agradável, o frio do cuspe contra o calor da minha pele.
Tá fazendo o quê tá fazendo o quê tá fazendo o quê? — gritou ela, e eu me perguntei se na Nortúmbria já haviam ouvido falar de epinefrina, ou se esse tipo de medicamento ainda seria criado.
Ela me sacudiu por um instante e foi embora, mas o efeito perdurou, porque continuei tremendo e batendo a cabeça no chão, e eu sabia que havia me molhado, mas isso também foi agradável, interessante e diferente como a saliva, a urina adotando a temperatura do meu corpo até que secou e começou a incomodar, e além disso era um longo caminho, então Bill Feio chegou lá e seu rosto havia sido destruído. Tinha se esborrachado no teto como um tomate maduro, o crânio esmagado para dentro, e só restaram um nariz, dois olhos e uma boca maliciosa flutuando nos restos de sangue e cérebro encharcado ao redor, e quando ele se inclinou sobre mim pedacinhos de seu cerebelo pingavam de sua bochecha, deslizavam para o canto da boca e formavam uma lágrima de matéria cinzenta-rosa que ficava pendurava no lábio inferior e caía, como purê de maçã da colher de um bebê, direto no meu rosto, e eu gritava sem parar até que ele me estrangulou e eu parei de gritar.
É óbvio que a essa altura eu já havia perdido a noção do tempo, e com isso parei de tentar chegar a um diagnóstico através do exercício de contagem do tempo.

Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August

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