(Sonhar:
exercício que consiste em imaginar o impossível, para depois o
realizar. Como voar.)
Sibongile
tinha quinze anos quando uma senhora de muita idade, curvada como um
ponto de interrogação, se deteve diante dela. A velha olhou-a
longamente, estudou-lhe o rosto e as mãos, fez-lhe duas ou três
perguntas e em seguida pediu-lhe que fosse chamar a mãe. As duas –
a mãe de Sibongile e o ponto de interrogação – confabularam um
bom tempo, em voz baixa. Dias depois, a mãe levou-a para uma casa
onde já se encontravam algumas meninas da mesma idade. Sibongile
venceu, nos meses que se seguiram, as difíceis provas e rituais para
se transformar numa sangoma. Aprendeu a interpretar sonhos, a
diagnosticar doenças no jogo dos ossos, a lançar encantamentos, mas
não chegou a dominar todo o complexo mistério das raízes e ervas e
infusões, pois, de repente, o seu mundo perdeu o chão.
O
mundo inteiro perdeu o chão.
Lembra-se
das imagens nas televisões. O mar cavalgando sobre as praias e as
cidades. Arrastando transatlânticos, camiões e comboios, como se
fossem gravetos. Em muitos países, incluindo na África do Sul, o
poder central desagregou-se. O dinheiro deixou de ter valor. Bandos
errantes assaltavam as lojas e as casas. As igrejas encheram-se de
multidões desesperadas. Foi um tempo bom para todo o tipo de
profetas, sacerdotes e xamãs, incluindo as sangomas. Sibongile não
teve dificuldade em conseguir lugar numa das balsas, quando Durban se
ergueu no ar.
As
pessoas precisavam dos serviços dela, precisavam de alguém que
apontasse caminhos, que assegurasse algum alívio para males como a
angústia, a desesperança, a nostalgia de um chão, a escuridão do
futuro. Sofrimentos que os melhores médicos não eram capazes de
enfrentar.
O
Española Way caiu sobre Durban como uma ave de rapina sobre a carne
indefesa de um pardal. Dois ou três homens tentaram reagir, mas
foram rapidamente dominados. Os piratas brandiam armas de fogo. Além
disso, sabiam lutar. Mang, por exemplo, era um praticante exímio de
pencak silat, uma arte marcial indonésia, bem como da eskrima, luta
com bastões, espadas e facas, de origem filipina. Depois de reunirem
todos os habitantes no centro da aldeia, os piratas foram de balão
em balão, recolhendo alimentos, joias e outros objetos de valor. Ao
entrar numa das balsas, a Wedge Beach, Mang viu uma mulher escondida
num dos armários.
– Assim
que a vi apaixonei-me por ela – contou Mang. – Era linda. Era
linda, como uma artista de cinema de Bollywood.
– Bollywood?!
– Bollywood.
Era assim que chamávamos à indústria de cinema indiana. A capital
do cinema indiano ficava em Bombaim. Hoje há uma aldeia com esse
nome, enorme. Ainda fazem filmes lá. Mas não é a mesma coisa.
Sibongile
sorriu:
– Nunca
fui bonita. Mang, sim, era um homem bonito.
Mang
sabia que não poderia ficar em Durban. Sabia que não poderia levar
Sibongile para o balão dos piratas. Então soltou a Wedge Beach e
fugiu com a sangoma. Era uma noite sem lua. Os piratas só deram
conta da deserção na manhã seguinte. Ao compreender o que
acontecera, Boniface ficou louco de fúria. Supôs que o indonésio
descobrira algum tesouro, provavelmente joias, e que fugira para não
o partilhar. Mang riu-se ao recordar o episódio. Apontou para
Sibongile:
– O
meu tesouro era esta mulher!
A
balsa não tinha computador de bordo, nem radar, de forma que se
lançaram às cegas no céu. Andaram à deriva durante três dias.
Uma tarde, viram aproximar-se uma enorme balsa negra. O indonésio
reconheceu a Española Way. Compreendeu que estava perdido. Tomou,
então, uma decisão suicida. Fez com que o balão descesse ao nível
do mar, oculto pela bruma, lançou um bote insuflável e depois
saltou. Os piratas, que perseguiam o Wedge Beach, conseguiam vê-lo
no radar. Não viram, porém, o mergulho de Mang. Esperaram que o
balão voltasse a subir e abalroaram-no. Viraram e reviraram o Wedge
Beach. Não encontraram sinais de Mang, nem tesouro algum.
Interrogaram Sibongile, sem violência, sem erguerem a voz, até
obsequiosos, com salamaleques e mãozinhas de seda. A verdade é que
a temiam. Finalmente, Boniface convidou-a a instalar-se no Española
Way. Foi um sequestro amável. Ao capitão dos piratas convinha, por
um lado, ter a bordo uma mulher como ela, capaz de presságios e
encantamentos. Dava segurança à tripulação e a ele aumentava-lhe
o poder. Convenceu-se, além disso, de que Mang retornaria, mais
tarde ou mais cedo, à procura da sangoma, e que nessa altura poderia
trocá-la por bom preço. Continuava a acreditar que Mang roubara um
tesouro.
Sibongile
consultou os ossos, e o seu coração sossegou. Nas noites seguintes
sonhou muito. Viu Mang perdido num labirinto de algas e de brumas.
Viu-o a arder em febre, a sufocar de calor, a remar por entre um
vagaroso cardume de peixes mortos. Viu-o a sorver, com os lábios
gretados, a humidade das roupas. Durante semanas não voltou a
sonhar. Antes de se deitar tomava um chá de camomila, o qual,
segundo a tradição, propicia os sonhos. Nem isso a ajudava. Dormia
e despertava e só encontrava dentro de si o espesso negrume do medo.
Então, numa noite em que havia discutido brutalmente com Boniface,
exigindo que este a devolvesse a Durban, sonhou que Mang corria,
livremente, num chão muito verde. Acordou encharcada em suor.
Esforçou-se por adormecer, para retomar o sonho no ponto onde havia
acordado, os pés nus de Mang movendo-se rapidamente, a fugaz
silhueta de uma girafa ao longe, mas não conseguiu.
– Foi
assim mesmo – confirmou Mang.
Lançara
o bote, colocara às costas uma mochila com várias garrafas de água
e mergulhara. Sentira o estalo do corpo ao bater no mar, e o ardor
nos pulmões, ao emergir. Alçara o corpo para o bote. Erguendo o
olhar, vira o Wedge Beach a esfumar-se na neblina, levando a mulher
que amava. Remou durante horas. Desmaiava. Acordava. Bebia um pouco
de água e voltava a remar. Doía-lhe a cabeça. Sofria tonturas e
vagas alucinações. Vieram as algas e depois um oceano denso e
nauseabundo de peixes mortos. Atravessou o pesadelo, resistindo à
tentação de comer os peixes, até que, de repente, um leve fulgor o
atraiu. Remou na direção desse brilho.
Uma
praia!
Julgou
que estivesse a sonhar. Não se beliscou, porque era um sonho bom.
Desembarcou na areia. Pensou, primeiro, que fosse um simples atol,
semelhante a alguns que visitara anos antes, acompanhando
mergulhadores-coletores. Os atóis são pequenas ilhas mortas, rochas
cobertas de algas, ao redor das quais se concentra todo o tipo de
dejetos.
Avançou
por entre o nevoeiro, de surpresa em surpresa, pois a terra
continuava a erguer-se e a cada encosta se fazia mais verde. Uma erva
húmida ia emergindo, afirmando-se. Ao fundo, a luz do sol iluminou
por um breve instante um bosque espesso.
Não,
não encontrara girafas. Topara, porém, à entrada do bosque, com
uma tribo de pequenos macacos, muito ferozes, que o haviam expulsado
à pedrada. Circundando a ilha, achara coqueiros. Partira os cocos
para beber a água e provar a saborosa polpa. Durante um tempo que
lhe pareceu infinito, mas que podem ter sido apenas algumas horas,
ou, talvez, um dia, uma noite e outro dia, sobreviveu à custa dos
cocos e de pequenos peixes aflitos, presos entre as algas, os quais
devorava crus. O calor e o excesso de humidade provocavam-lhe atrozes
cefaleias. As rochas rasgavam-lhe os pés. Cruéis nuvens de
mosquitos tinham-lhe deixado a pele em ferida. Desesperado, ansiando
por um pouco de frescura, enfrentou a ira dos macacos e entrou no
bosque. Uma pedra atingiu-o na nuca e desmaiou. Não sabe por quanto
tempo permaneceu desacordado. Quando recuperou os sentidos estava no
céu, estendido, de costas, no cesto exíguo de um pequeno balão
salva-vidas, com uma ligadura na cabeça. Encontrou, ao seu lado, um
enorme cacho de banana-pão e dois garrafões com água. Mais nada.
Teve sorte. Antes de terminar de comer as bananas, antes que a água
se esgotasse, foi descoberto por uma balsa pesqueira norueguesa. Não
lhes falou na ilha. Nunca acreditariam nele. Além disso, não
saberia explicar como fora parar dentro de uma balsa salva-vidas.
Disse-lhes que era mergulhador-coletor, e que o seu aeróstato
sofrera uma avaria grave, perdera hélio, e abatera. Tivera apenas
tempo para insuflar um balão salva-vidas e colocar nele alguns
mantimentos. Viajou durante um ano com os noruegueses, pescando,
conhecendo aldeias e divertindo-se a inventar histórias (Mang é um
grande contador de histórias). Finalmente, deixaram-no em Jakarta,
onde reencontrou familiares e se reconverteu ao delicado negócio das
sedas.
Correram
anos atrás de anos.
O
tempo, aliás, não faz senão correr. Por vezes, em certas tardes
soalheiras, quando no céu nada se move, acreditamos que adormeceu,
mas é uma ilusão. Nós, sim, adormecemos. O tempo nunca se cansa.
Sibongile
assistiu a inúmeros assaltos. Participou em alguns. Os seus sonhos
ajudavam Boniface a selecionar os alvos. Certa ocasião, ao atacarem
uma pequena aldeia americana, foram recebidos a tiro. Recuaram a
custo, arrastando feridos. No regresso à Española Way, alguns dos
piratas voltaram-se contra a sul-africana, aos gritos, acusando-a de
pouco empenho nos sonhos. Acusação, aliás, com algum fundamento: a
sangoma perdera a alegria de sonhar e desleixava-se a lançar os
ossos. Um dos piratas, um nigeriano gigantesco, com braços grossos
como troncos de imbondeiro, um pescoço de touro, esbofeteou-a:
– Bruxa!
Vais morrer!
Boniface
tomou a defesa dela. Talvez porque se afeiçoara à sangoma. Talvez
por considerar que ali, no Española Way, só a ele cabia o direito
de decidir sobre a vida e a morte de quem quer que fosse. A discussão
amargou, subiu de tom, entre ásperos brados e acusações, até que
o capitão dos piratas sacou da pistola e disparou contra o
nigeriano, atingindo-o numa perna. Os outros piratas juntaram-se em
redor do companheiro. Boniface e Sibongile foram recuando.
Conseguiram alcançar uma das lanchas rápidas e fugiram.
Por
sorte, o Paris vagava perto. Boniface trazia dez diamantes escondidos
nas pregas do blusão. Duas dessas pedras serviram para subornar os
polícias de fronteira do dirigível, pois nem o norte-americano nem
a sul-africana, possuíam documentos, além de que teriam de explicar
o que faziam, perdidos entre as nuvens, numa lancha rápida sem nome
nem registo.
Uma
vez no Paris, a relação entre os dois azedou-se. Sibongile pensou
em denunciar Boniface às autoridades francesas. O norte-americano
recordou-lhe que, embora contra vontade, ela própria havia
participado em ações de pirataria. E, assim, a sangoma voltou a
lançar os ossos, lendo o destino dos pobres emigrantes, em troca de
um prato de comida.
Sibongile
não voltara a sonhar com Mang. Convenceu-se de que o indonésio
havia morrido. Mang, de novo no céu, procurou por ela. Pesquisou no
Facebook. Nunca a encontrou. No Española Way, como é óbvio,
ninguém acedia às redes sociais. No Paris, sim, toda a gente, com
exceção dos passageiros clandestinos.
– O
que é que um passageiro clandestino mais ambiciona? – Sibongile
fez a pergunta, sorriu, e ela mesma deu a resposta. – A
invisibilidade. Assim, continuei invisível.
Não
fosse a mão caprichosa do acaso, e os dois jamais se teriam
reencontrado. Certa noite, num bar, Mang escutou um comerciante de
sedas contar como uma mulher africana o salvara da morte:
– Estava
no Paris, em negócios. Saía de um restaurante, acompanhado por um
dos meus clientes, quando aquela mulher se postou diante de mim. No
teu regresso a Jakarta, disse-me, de olhos fechados, não te
detenhas em Mumbai. Se o fizeres, morrerás num incêndio. Não
lhe prestei atenção. Na viagem de regresso deu-se a coincidência
de Mumbai se atravessar no meu caminho. Não conheço Mumbai. Pensei
em jantar por lá, em pernoitar, mas logo me lembrei do aviso da
mulher, e desisti. Prossegui viagem. Soube, horas depois, que
acontecera um terrível incêndio na aldeia. Estavam a fazer um
filme, um daqueles filmes cheios de música e de romance, que eles
fazem em Mumbai, e nesse filme acontecia um incêndio. Perderam o
controlo do falso fogo, e o fogo real matou muita gente.
Mang
empalideceu. O coração aos saltos dentro do peito:
– Essa
mulher tem uma marca na testa? Uma meia lua?
O
comerciante confirmou. Acrescentou que pretendia regressar em breve
ao Paris, para lhe agradecer. Mang deu-lhe o seu endereço de correio
eletrônico, solicitando que o passasse à sangoma. Sibongile ficou
eufórica ao saber que Mang estava vivo.
– E
os sonhos? – perguntei-lhe. – Porque não sonhaste tu com este
encontro?
A
sangoma fingiu-se ofendida com a pergunta:
– Não
vejo o meu próprio futuro! Não quero. Avançar por um futuro já
sonhado é como viver uma vida que outra pessoa já viveu por mim.
José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu
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