(Esperança:
é o nome que damos às nuvens quando nos falta a água.)
Navegar às escuras, isto é, sem recurso à Internet, implica grandes
riscos, em especial de noite, durante um temporal ou em condições
de nevoeiro denso. O maior risco é o da colisão com outros
aeróstatos. Numa manhã de sábado, afundámo-nos numa bruma tão
espessa que foi como se tivéssemos caído num boião de iogurte. Uma
voz que parecia vir de toda a parte à nossa volta quebrou, de
súbito, o largo silêncio:
– Quem
são vocês?!
Corri
para o convés, assustado, tentando ver alguma coisa para além da
infinda brancura. Nada. A voz voltou a gritar:
– Identifiquem-se!
A
Nova Esperança seguia alguns metros atrás de nós, presa por um
cabo. Também não a conseguia ver. Apenas via o cabo desaparecendo
na bruma. Aimée veio ter comigo:
– Serão
piratas?
– Não
vejo nada. Quem quer que seja, está onde?
– Sim,
e como nos descobriu?
A
voz voltou a fazer-se ouvir:
– Por
favor, identifiquem-se!
Mang
gritou:
– Identifique-se
você primeiro!
Fez-se
um breve silêncio, logo seguido por uma gargalhada feliz:
– Certo,
amigo. Chamo-me Patrick Maciel e sou o capitão da balsa francesa
Montparnasse. Quem são vocês?
Levantei
o megafone:
– Carlos
Tucano, capitão da balsa angolana Maianga. O senhor é o Patrick
Maciel, autor de Voando na Noite?
– Leu
o meu livro?
– Li
esse e todos os outros. Trago-os sempre comigo. Podia autografá-los?
Minutos
mais tarde tinha Patrick Maciel na minha biblioteca, sentado, a beber
chá. Era um homem já idoso, de cabelo branco, cortado rente, e
rosto seco e anguloso. Trazia uns óculos escuros, de aros redondos,
que pareciam solidamente aparafusados ao crânio. Ficou admirado ao
escutar a voz de Aimée:
– Aimée,
és mesmo tu?! Fugiste do Paris?
– Mais
ou menos...
Patrick
sorriu, divertido:
– Fizeste
bem. Todos os parisienses deviam fugir, de vez em quando. Voltariam
mais ricos e, ao mesmo tempo, mais humildes. E os teus pais?
– Você
sabe o que aconteceu com o Paris?
– Sim,
claro. Sou cego, mas ouço as notícias. Por isso pergunto pelos teus
pais...
Aimée
não sabia nada. Temia pelo pai e pelo irmão. Sobretudo pelo irmão.
Contámos a Patrick o que sucedera connosco (omitindo a parte da Ilha
Verde). O navegador solitário escutou-nos, espantado, mas sem nos
interromper. Terminou de beber o chá, pensativo:
– Eu
segui-o...
– Como?
– Eu
vinha seguindo o Paris. Perdi-o há dois dias...
Patrick
regressava a casa, após uma longa viagem, durante a qual visitara
diversas cidades e aldeias brasileiras. Existem no céu quatro
grandes cidades brasileiras – São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília
e Porto Alegre – e uma dúzia de aldeias. As cidades e aldeias
brasileiras movem-se em arquipélago, ou seja, nunca se afastam muito
umas das outras. Protegem-se e auxiliam-se. Quando os piratas tomaram
o controlo do dirigível, Patrick visitava o Recife, uma aldeia com
perto de cinco mil pessoas.
– Ainda
falei com o teu pai. Depois os bandidos cortaram as comunicações.
– Como
os conseguiste seguir? Aliás, como deste por nós, no meio deste
nevoeiro, sem comunicações?
Patrick
riu-se:
– Ah!
Esse é o meu segredo. Aprendi a escutar o vento.
Pensei
que estivesse a brincar:
– Foste
capaz de nos localizar no meio do nevoeiro, apenas escutando o vento?
– Sim,
vocês, que veem, tendem a desvalorizar outros sentidos, como o
olfato e a audição. Nasci cego, mas, é claro, também me sirvo de
instrumentos de navegação e uso a Internet. Contudo, aprendi a
ouvir o vento. Um grande dirigível avançando à minha frente, numa
noite calma, produz um rasto sonoro bastante fácil de seguir. Assim,
fui atrás dele e, enquanto o fazia, informei Washington e outras
grandes cidades. Fiz isso, claro, antes de eles mergulharem neste céu
sem Deus. A seguir, para piorar tudo, deixei-me vencer pelo sono.
Adormeci durante alguns minutos e quando despertei tinha-os perdido.
– Acha
que ainda podemos encontrar o Paris?
Patrick
teve um gesto de desânimo:
– Talvez.
Mas teremos de nos guiar pelos sonhos.
Sibongile,
que, entretanto, se juntara a nós, riu-se:
– Sonhos?
Isso é comigo.
Expliquei
a Patrick que sonhar faz parte importante do ofício de Sibongile. O
francês não se mostrou muito impressionado. Intrigou-o, isso sim, a
história de Vera Regina e do balão-fantasma. Acariciou o cabelo da
menina. Prestou atenção, enquanto ela conversava com os papagaios
naquela língua de sombras. Vi-o franzir o sobrolho, perplexo:
– Eu
conheço essa língua!
– Como?!
Aimée
duvidou:
– Não
é língua nenhuma. São os papagaios imitando o linguajar dos bebés.
– Não,
não! – irritou-se Patrick. – Estou a reconhecer algumas
palavras. Parece-me hebraico!
– Hebraico?
– O
hebraico é uma língua muito antiga, afro-asiática, que foi
desaparecendo, pouco a pouco, ao longo dos séculos, até renascer,
nos finais do século XIX, ganhando estatuto oficial com a criação
do Estado de Israel, em 1948. A Bíblia foi escrita no antigo
hebraico, e também em aramaico e em grego.
Aimée
escutava-o, perplexa:
– E
agora, no céu, ainda há quem fale hebraico?
– Sim.
Há pelo menos duas aldeias, Tel-Aviv e Jerusalém, onde ainda se
fala hebraico. Eu estive em Jerusalém, há alguns anos, tenho amigos
lá.
Lamentei
a falta de rede. Se tivéssemos Internet, poderia procurar de novo na
Skypedia. Presumindo que a Nova Esperança fosse israelita, seria
fácil identificá-la. Patrick concordou. Depois, inclinou-se para
mim e perguntou-me:
– De
que é que vocês estão à procura?
Assustei-me:
– Como?!
– Ninguém
abandona a Estrada das Luzes se não for por um motivo muito forte.
Vocês não estão aqui, como eu, porque iam atrás do Paris. Então,
porque estão aqui?
Olhei
para Sibongile. Ela levou o dedo indicador aos lábios. Não valeu de
nada. Eu já tinha decidido contar tudo. O navegador solitário não
mostrou o menor sinal de ceticismo. Quando terminei deu-me uma
pequena pancada no ombro, como para me animar:
– Ah!
Agora sei o que os piratas querem...
– Acha
que também eles estão à procura da Ilha Verde?
– Tenho
a certeza.
– E
você acredita nisso – na Ilha Verde?
– Claro.
Acho que todos nós, que nascemos na terra, continuamos a acreditar
que um dia regressaremos.
Nessa
noite jantámos juntos na Maianga. Decidimos organizar turnos, no
convés, para o acaso de tropeçarmos no Paris.
Sibongile
tomou um chá de camomila e foi trabalhar.
Ou
seja: deitou-se e adormeceu.
Acordou,
na manhã seguinte, muito agitada. Tivera (ela dizia “vivera”) um
sonho intenso e um tanto estranho.
José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu
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