sábado, 10 de setembro de 2022

A Vida no Céu | Décimo capítulo


(Nuvens: água em estado onírico. O alfabeto do céu.)

Os meus olhos viajam mais do que as minhas pernas. O meu pensamento mais do que os meus olhos. Sentei-me no convés, contemplando o laborioso espetáculo do vento esculpindo nuvens, criando, a cada instante, novas figuras. Aquilo sempre me fascinou. As minhas nuvens preferidas são os raros cirros Kelvin-Helmholtz, um fenômeno que ocorre quando a parte mais alta das nuvens se movimenta a uma velocidade superior, relativamente à parte mais baixa, desenhando ondas no céu. Lembram por vezes notas de música sobre uma pauta azul.
Podia ver a Nova Esperança, deslizando duzentos metros à nossa frente. Mang e Sibongile haviam-se mudado para a balsa-fantasma. Vera ficara conosco. Dava-se muito bem com Aimée. Os papagaios voavam entre os dois balões, gritando uns com os outros na sua língua misteriosa. Enquanto observava as nuvens, ia listando os mistérios com que, nas últimas semanas, o destino me brindara:

1. O que pretendia Boniface do meu pai?
2. O que acontecera à família da pequena Vera?
3. Quem socorrera Mang, na Ilha Verde, e o devolvera depois ao céu, numa balsa salva-vidas?

Nada parecia ligar os três enigmas. Eu, contudo, sentia que sim, que se amarravam uns aos outros, firmemente, como os cabos de uma rede, formando, no conjunto, um desenho lógico e musical. Sibongile concordava comigo:
Temos de encontrar a Ilha Verde – assegurara, horas antes, ao jantar, numa voz cheia de certezas. – Encontrando a Ilha Verde encontraremos todas as respostas.
E como encontramos a Ilha Verde?
Mang propôs-se falar com os pescadores noruegueses que o haviam resgatado. No diário de bordo da balsa pesqueira teriam de estar registadas as coordenadas onde ocorrera o resgate. A seguir, para localizar a Ilha Verde, bastar-nos-ia estudar a direção e a velocidade dos ventos durante as duas ou três horas anteriores. Isto, admitindo que o indonésio permanecera desacordado, em razão da pancada – ou, mais provavelmente, de alguma droga administrada a seguir – durante não mais do que duas ou três horas. Era um plano simples e, como quase todos os planos simples, resultou. Os noruegueses não demoraram a responder. Com aquela informação encontrámos, em poucos minutos, as coordenadas da Ilha Verde, ou melhor, da área onde supúnhamos que esta se situasse. Debrucei-me sobre os mapas com uma sensação de vertigem:
É na Amazônia, caramba! A Ilha Verde fica muito próximo de São Gabriel da Cachoeira, onde o meu pai nasceu.
Com efeito, as coordenadas apontavam para uma região identificada como Pico da Neblina. Aimée assobiou, também ela espantada:
Na Amazônia – onde ficava a floresta?! Uau!...
Consultei uma enciclopédia eletrônica. Antes do Dilúvio, o Pico da Neblina erguia-se até muito perto dos três mil metros de altitude. No topo, de noite, a temperatura podia descer até aos zero graus.
Procurei Júlio no Facebook. Não estava online. Deixei-lhe várias mensagens. Aguardei ansioso por uma resposta. A Internet funciona mal. Sofre avarias frequentes, incluindo nas rotas mais frequentadas. Existem, depois, vastíssimas zonas cegas, um “céu selvagem” ou “um céu sem Deus”, como gostam de dizer os navegadores solitários que as aldeias e grandes cidades se esforçam por evitar. Impedidas de solicitar ajuda, as aldeias que tombam numa zona cega convertem-se em vítimas fáceis dos piratas. Além disso, sem acesso a cartas do céu atualizadas, e à respetiva informação meteorológica, a navegação torna-se difícil e perigosa. Talvez Luanda estivesse a atravessar um desses pântanos. O mais provável, porém, é que o silêncio fosse apenas resultado de alguma avaria.
Estabelecemos uma rota e avançamos em direção ao Pico da Neblina. Calculamos que levaríamos pelo menos vinte e três dias a alcançar o nosso destino. Ao décimo dia, estava eu sentado no convés, observando as nuvens e listando mistérios, quando Aimée irrompeu, aos gritos, vinda da cabina de pilotagem:
Tomaram Paris! Os piratas tomaram Paris!...
Ergui-me de um salto:
Quem tomou Paris?!
Aimée encarou-me muito pálida:
Boniface. O Boniface tomou Paris!
Acabara de receber uma mensagem do irmão. Boniface tomara o controlo do dirigível. Subornara uma parte da pequena força policial do Paris, incluindo o Chefe da Segurança, e prendera os restantes. Prendera também todo o governo, incluindo Jean-Pierre Longuet, o pai dos dois irmãos. Alain refugiara-se em casa de um amigo. Conseguira enviar a mensagem antes que os piratas cortassem a Internet. Fiquei estupefacto:
Nunca aconteceu nada semelhante, isto de piratas tomarem o controlo de um dirigível. As grandes cidades vão reagir.
A minha previsão confirmou-se: as horas que se seguiram foram agitadas. Os governos do New York, Washington, Tokio, Xangai, New Delhi, São Paulo, Ciudad de México, Berlin e London emitiram um comunicado conjunto, condenando a ação e exigindo a rendição incondicional dos piratas e a libertação de todos os prisioneiros. Os salteadores não responderam. Segundo o The Sky Monitor, um dos meus jornais preferidos, os americanos estariam a ponderar uma invasão do Paris. As restantes cidades opuseram-se, alegando que tal intervenção ameaçaria a segurança de todos os parisienses.
A seguir aconteceu algo quase tão imprevisível quanto a tomada do Paris: o grande dirigível cortou todas as comunicações, afastou-se da Estrada das Luzes e desapareceu.
Aimée recusava-se a comer, recusava-se a dormir, agarrada ao computador:
Tanto silêncio, tanto silêncio...
A mim afligia-me o silêncio do Paris e o silêncio de Luanda. Pensava em Manu. Fechava os olhos e voltava a vê-lo, travando, a soco, o avanço dos homens de Boniface.
O que acontecera ao meu amigo?
E porque Boniface se arriscava tanto?
Ele era ambicioso, violento, e raramente demonstrava compaixão. Todavia, não me parecia lunático, e muito menos estúpido.
Juntei mais um mistério à minha lista.
Entretanto, fomos navegando.
Numa tarde de céu muito limpo encontramos um Manned Cloud. Flutuava a poucos metros da água. Ao aproximarmo-nos vimos que, no oceano, uma enorme baleia acompanhava o lento avanço do hotel, talvez enamorada daquele outro cetáceo voador, lá em cima, tão elegante e luminoso.
Percebemos, estudando os mapas, que, para alcançar o Pico da Neblina, teríamos de mergulhar, também nós, numa zona cega. Um deserto imenso à nossa frente. Um vasto céu sem deuses. Aimée, ansiosa, insistiu para que aguardássemos mais alguns dias. Queria saber notícias dos pais. Abracei-a:
Sim, vamos esperar mais dois ou três dias. Mais uma semana. Precisamos de saber o que se passa no Paris e em Luanda. Sinto que tudo isto está ligado.
Sem dúvida – concordou Sibongile. – Já te disse isso. Está tudo ligado. Infelizmente, não podemos esperar. Não temos mantimentos para muitos mais dias. Precisamos de avançar.
Assim, avançamos.
Não foi como cair num poço. Havia a luz exuberante pulsando no interior da bruma. O próprio silêncio parecia iluminado.
Todavia, foi como cair.
Sem Internet não conseguíamos sequer comunicar entre as duas balsas, a não ser aos gritos, através de megafones. Optamos por navegar o mais baixo possível, não só para melhor podermos ver a Ilha Verde – caso ela se desse a ver –, como também para escaparmos aos olhares de eventuais salteadores. Pairávamos entre um bafo de dragão. Se saíssemos para o convés, o calor e a umidade colavam-nos a roupa à pele em escassos minutos. Os papagaios andavam tão irritados, ralhando e brigando uns com os outros, que decidimos recolhê-los na biblioteca, onde podiam gozar a frescura do ar condicionado.
Surpreendentemente, portaram-se bem. Passaram a sussurrar, sempre na mesma língua redonda que a pequena Vera parecia compreender tão bem, rindo e conversando com eles.
Do que falam? – perguntou-me Aimée. – Porque eles falam, não falam?
Juntei mais um mistério à minha lista.
Fazíamos turnos no convés, vigiando o céu e o mar (raramente víamos o mar). À terceira noite, Aimée despertou-me:
Peixes! – murmurou perplexa. – Milhares de peixes, e voam!
Viste peixes voadores? Viste-os com os binóculos?
Aimée sacudiu a cabeça, num “não!” vigoroso e incrédulo:
Não compreendes, Carlos. Eles estão aqui, voam ao redor das balsas. Têm olhos azuis. Olham para mim como se me conhecessem.
Certamente adormeceste – retorqui, forçando um sorriso. – Adormeceste e sonhaste.
Levantei-me e saí para o convés. Debrucei-me na balaustrada. A noite abraçou-me, quente e ensopada. Surpreendeu-me o seu hálito doce. E então vi-os. Dançavam à nossa volta. Vinham de longe, do fundo abismo, como uma correnteza de prata. Giravam entre nós e a Nova Esperança. Detinham-se, por instantes, junto ao cristal das janelas, talvez surpreendidos com o seu próprio reflexo, e era possível distinguir as duras escamas, as barbatanas longas como asas, os redondos olhos azuis.
Acreditas agora? – soprou Aimée. – Devem ser milhares. Talvez milhões.
Eu já ouvira falar em alucinações coletivas. Consta que em certas áreas do céu, voando muito baixo, se corre o risco de inalar um gás alucinógeno produzido pela decomposição de um grande número de algas de uma espécie muito rara. A acumulação de algas costuma ocorrer em redor de atóis ou ilhéus mortos.
Arrastei Aimée para a cabina de pilotagem e servi-lhe uma das infusões que trouxéramos de Jakarta. Falei-lhe nas algas. Riu-se até às lágrimas:
Queres dizer que não há nada lá fora? Aqueles peixes voam na nossa cabeça?
Na manhã seguinte chamei Sibongile pelo megafone. Lançamos uma ponte entre as balsas e o casal juntou-se a nós. Mang estava agitadíssimo:
Vocês viram aquilo, esta noite?
Os peixes?
Peixes? Que peixes? A noite estava cheia de borboletas fosforescentes.
Sibongile sacudiu os ombros, agastada:
Não sei o que este tipo andou a fumar. Acordou-me a meio da noite com esta história das borboletas. Mandei-o passear e voltei a dormir.
Falei-lhes das algas e da nossa própria experiência. Mang também escutara histórias semelhantes. Contou que um dos primos, mergulhador-coletor, vira sereias a dançar num atol. Ele e os cinco homens que o acompanhavam:
Regressaram a Jakarta numa espécie de transe. Durante meses só falavam naquilo. As pessoas riam-se deles. A mim, o que me pareceu mais estranho foi contarem todos a mesma história.
Olhei-o de frente. Respirei fundo e disparei:
A tua ilha, a Ilha Verde, não será também o resultado de uma alucinação?...
Mang encarou-me, ofendido:
Estás a dizer que imaginei a ilha?!
A ilha talvez não. Estavas num pequeno barco. Sentias-te cansado, desesperado, sufocado pelo calor. Chegaste a uma ilha cercada por algas. Talvez tenhas visto árvores onde havia apenas rochas. Macacos que não estavam lá. Depois tropeçaste, caíste, bateste com a cabeça...
E o que aconteceu a seguir? Como fui parar dentro de uma balsa salva-vidas? Também seria uma alucinação? Achas que ascendi aos céus a bordo da minha própria alucinação?
Não pude deixar de rir. Mang tinha razão. Alguém viveria ali, naquela ilha, alguém compassivo o suficiente para se dispor a salvar um desconhecido, colocando-o, com considerável dispêndio de recursos e energias, numa balsa salva-vidas e enviando-o de volta ao céu. Por outro lado, alguém que não queria ser contactado. Alguém que pretendia manter um segredo.

José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu

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