Sobre
os meus olhos a cabeça imóvel de minha mãe — de minha falsa mãe,
pondere-se. Dentro das narinas um cheiro forte de enxofre, como se
acabassem de tirar-me de um esgoto: de um esgoto de Nápoles, mais
precisamente.
O
coração pulsa-me dentro do cérebro e me faz estalar as têmporas,
e nem ao menos posso passar a mão sobre o suor que me escorre da
fronte, pois tenho as mãos atadas e também os pés, como o
Crucificado ou mais exatamente como Prometeu no seu rochedo. Minha
mãe, que faz as vezes do abutre, devora-me com o seu olhar cheio de
espanto e mal se atreve vez por outra a tocar-me com a ponta dos
dedos, como se eu fora um leproso. Tento cuspir-lhe no rosto mas
faltam-me as forças, e o mais que consigo é expelir pela boca uma
lava amarga e oleosa, que me desce pelo pescoço e me faz lançar um
grito horrível, que me assusta e paralisa. Minha mãe, que estava a
dois palmos do meu nariz, desaparece como por encanto deve ter
morrido de susto, a infeliz — e eu fico só com a minha
consciência, petrificado e amarrado sob o enorme peso do teto.
Como
então me impuseram de novo o suplício da cadeira elétrica, como
tudo está a indicar neste silêncio da sala e nesta bomba-relógio
que trago dentro do cérebro e que explodirá de repente, levando-me
e a todo o prédio pelos ares? Com o pouco de raciocínio que me
resta, após esta batalha cruenta de um homem contra todas as forças
do mal que andam soltas pelo mundo, chego a recordar em parte (ou
terá sido apenas um pesadelo?) o drama em que fui mais uma vez
obrigado a representar a parte principal, com a inocência própria
dos supliciados, mesmo quando grande tenha sido a sua culpa. Pois não
é torturando um homem, e tentando extrair-lhe os miolos pelos
processos mais modernos, que se conseguirá arrancar-lhe a sua
verdade ou impor-lhe uma verdade nova e de circunstância, como se
tentou fazer em todos os tempos e sobretudo nos tempos da Inquisição.
A mim, pelo menos, esse processo medieval e sanguinário sempre me
pareceu ridículo ao extremo, como há de parecer a todos os que
pensem e sintam como eu — e o meu silêncio é tudo que lhes posso
oferecer em troca, quando não uma ou outra blasfêmia inoperante,
proferida em meio às minhas alucinações. Dou a minha verdade ao
primeiro mendigo da esquina e sem que ele a peça, como a dou de bom
grado a quem se mostre humano como eu e me trate como a um amigo;
jamais, porém, a terão os que não confiem na minha sinceridade e
usem de processos violentos para abrir-me a boca e os olhos, que são
apenas os olhos e a boca do meu corpo, não da minha alma. Os
carrascos, tenho-os na conta apenas de imbecis a serviço do Estado
ou de outra potência ainda mais impotente do que o Estado — e com
os imbecis a minha conduta foi sempre uma e única: eles de um lado e
eu do lado oposto, como duas margens de um rio que nem o mar da morte
conseguirá jamais unir.
Mas
eis que de novo o olhar da minha mãe volta, agora úmido de pranto,
a escrutar-me a dois palmos do meu nariz, como se eu fora uma
cisterna vazia e cheia de sombras. Ao seu lado, imponente em seu
uniforme branco e com o ar de vitória nas bochechas rosadas, o meu
maior inimigo, de há pouco e de sempre, com o seu par de lentes
assestadas no nariz adunco e os seus bigodes imundos mal disfarçando
a boca de vampiro ainda tinta de sangue. Ele, o chefe dos
torturadores, o mesmo que ainda há uma semana me tratava como um ser
humano e a cujas gentilezas eu correspondia ingenuamente, como se
corresponde a um amável gerente de hotel em tempo de paz ou mesmo em
tempo de guerra — ele, o carrasco-mor, o inquisidor sem entranhas,
debruça-se com minha mãe sobre o meu futuro cadáver e tenta ainda
uma vez interrogar-me com o seu par de óculos, nos quais se reflete
por um instante a minha própria imagem.
Como
acreditar na afeição materna de uma mulher que assim se alia, sem o
menor escrúpulo, ao meu maior inimigo, como que esquecida de todo o
mal que ele me fez e me fará ainda outras tantas vezes, tantas
quantas sejam necessárias para que eu afinal revele o meu segredo,
que eu mesmo não sei qual seja? Que mãe é essa, desnaturada e
hipócrita, que nem ao menos sabe simular um pranto autêntico, com
seu olhar parvo e ao mesmo tempo cheio de malícia, que não tem nada
do meu olhar dentro do espelho? Mães dessa espécie, por certo o
Estado as cria e cultiva em estufas especiais, para que possam trair
no devido tempo os seus filhos adotivos e entregá-los de mãos
atadas aos inimigos do gênero humano, que os desindividualizam e os
tornam bons cidadãos, com o direito de partirem para a guerra ou de
morrerem fuzilados de encontro a um muro qualquer, numa clara manhã
de primavera. Com o asco que me vai dentro do peito, sinto desta vez
força suficiente para cuspir-lhes em pleno rosto, à minha mãe e ao
seu cúmplice adiposo, obrigando-os a um salto espetacular para trás,
de surpresa e de espanto, que por sua comicidade provoca em mim uma
crise convulsiva de gargalhadas, que até agora ainda não cedeu de
todo.
(Escrito
de memória).
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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