sábado, 3 de setembro de 2022

A Lua Vem da Ásia | Capítulo XXVI

Sobre os meus olhos a cabeça imóvel de minha mãe — de minha falsa mãe, pondere-se. Dentro das narinas um cheiro forte de enxofre, como se acabassem de tirar-me de um esgoto: de um esgoto de Nápoles, mais precisamente.
O coração pulsa-me dentro do cérebro e me faz estalar as têmporas, e nem ao menos posso passar a mão sobre o suor que me escorre da fronte, pois tenho as mãos atadas e também os pés, como o Crucificado ou mais exatamente como Prometeu no seu rochedo. Minha mãe, que faz as vezes do abutre, devora-me com o seu olhar cheio de espanto e mal se atreve vez por outra a tocar-me com a ponta dos dedos, como se eu fora um leproso. Tento cuspir-lhe no rosto mas faltam-me as forças, e o mais que consigo é expelir pela boca uma lava amarga e oleosa, que me desce pelo pescoço e me faz lançar um grito horrível, que me assusta e paralisa. Minha mãe, que estava a dois palmos do meu nariz, desaparece como por encanto deve ter morrido de susto, a infeliz — e eu fico só com a minha consciência, petrificado e amarrado sob o enorme peso do teto.
Como então me impuseram de novo o suplício da cadeira elétrica, como tudo está a indicar neste silêncio da sala e nesta bomba-relógio que trago dentro do cérebro e que explodirá de repente, levando-me e a todo o prédio pelos ares? Com o pouco de raciocínio que me resta, após esta batalha cruenta de um homem contra todas as forças do mal que andam soltas pelo mundo, chego a recordar em parte (ou terá sido apenas um pesadelo?) o drama em que fui mais uma vez obrigado a representar a parte principal, com a inocência própria dos supliciados, mesmo quando grande tenha sido a sua culpa. Pois não é torturando um homem, e tentando extrair-lhe os miolos pelos processos mais modernos, que se conseguirá arrancar-lhe a sua verdade ou impor-lhe uma verdade nova e de circunstância, como se tentou fazer em todos os tempos e sobretudo nos tempos da Inquisição. A mim, pelo menos, esse processo medieval e sanguinário sempre me pareceu ridículo ao extremo, como há de parecer a todos os que pensem e sintam como eu — e o meu silêncio é tudo que lhes posso oferecer em troca, quando não uma ou outra blasfêmia inoperante, proferida em meio às minhas alucinações. Dou a minha verdade ao primeiro mendigo da esquina e sem que ele a peça, como a dou de bom grado a quem se mostre humano como eu e me trate como a um amigo; jamais, porém, a terão os que não confiem na minha sinceridade e usem de processos violentos para abrir-me a boca e os olhos, que são apenas os olhos e a boca do meu corpo, não da minha alma. Os carrascos, tenho-os na conta apenas de imbecis a serviço do Estado ou de outra potência ainda mais impotente do que o Estado — e com os imbecis a minha conduta foi sempre uma e única: eles de um lado e eu do lado oposto, como duas margens de um rio que nem o mar da morte conseguirá jamais unir.
Mas eis que de novo o olhar da minha mãe volta, agora úmido de pranto, a escrutar-me a dois palmos do meu nariz, como se eu fora uma cisterna vazia e cheia de sombras. Ao seu lado, imponente em seu uniforme branco e com o ar de vitória nas bochechas rosadas, o meu maior inimigo, de há pouco e de sempre, com o seu par de lentes assestadas no nariz adunco e os seus bigodes imundos mal disfarçando a boca de vampiro ainda tinta de sangue. Ele, o chefe dos torturadores, o mesmo que ainda há uma semana me tratava como um ser humano e a cujas gentilezas eu correspondia ingenuamente, como se corresponde a um amável gerente de hotel em tempo de paz ou mesmo em tempo de guerra — ele, o carrasco-mor, o inquisidor sem entranhas, debruça-se com minha mãe sobre o meu futuro cadáver e tenta ainda uma vez interrogar-me com o seu par de óculos, nos quais se reflete por um instante a minha própria imagem.
Como acreditar na afeição materna de uma mulher que assim se alia, sem o menor escrúpulo, ao meu maior inimigo, como que esquecida de todo o mal que ele me fez e me fará ainda outras tantas vezes, tantas quantas sejam necessárias para que eu afinal revele o meu segredo, que eu mesmo não sei qual seja? Que mãe é essa, desnaturada e hipócrita, que nem ao menos sabe simular um pranto autêntico, com seu olhar parvo e ao mesmo tempo cheio de malícia, que não tem nada do meu olhar dentro do espelho? Mães dessa espécie, por certo o Estado as cria e cultiva em estufas especiais, para que possam trair no devido tempo os seus filhos adotivos e entregá-los de mãos atadas aos inimigos do gênero humano, que os desindividualizam e os tornam bons cidadãos, com o direito de partirem para a guerra ou de morrerem fuzilados de encontro a um muro qualquer, numa clara manhã de primavera. Com o asco que me vai dentro do peito, sinto desta vez força suficiente para cuspir-lhes em pleno rosto, à minha mãe e ao seu cúmplice adiposo, obrigando-os a um salto espetacular para trás, de surpresa e de espanto, que por sua comicidade provoca em mim uma crise convulsiva de gargalhadas, que até agora ainda não cedeu de todo.
(Escrito de memória).

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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