segunda-feira, 22 de agosto de 2022

O passaporte

O grande artista chegou ao Aeroporto Tom Jobim em boa hora com a mala de mão e nada para despachar. Só perdeu algum tempo na polícia, porque havia um problema com o chip do passaporte e foi preciso chamar um supervisor que o liberasse. No saguão foi compelido a seguir pelos meandros do free shop, que ele estava acostumado a atravessar acompanhando o fluxo dos passageiros. Àquela hora da tarde, porém, com poucas partidas internacionais, era escasso o movimento no terminal e redundante a iluminação nas lojas quase às moscas. Pela primeira vez ele reparava no chão espelhado com setas e faixas em diferentes cores e direções, e por um momento se viu desorientado. Depois de entrar por engano numa loja de produtos eletrônicos, sentiu um aperto na bexiga e distinguiu a custo a indicação do WC entre tantos letreiros. No banheiro só havia dois mictórios, ambos ocupados, e o grande artista correu para se aliviar na latrina de uma cabine. Lavou as mãos e retomou seu caminho sem tanta folga de tempo, pois até o portão de embarque, na outra extremidade do aeroporto, era preciso vencer um extenso corredor com uma esteira rolante central. Era uma esteira intermitente de onde a cada cem metros se passava para o piso de granito, como quem salta de um bonde em movimento. A passos largos, ele redobrava a velocidade da esteira, com pressa de se instalar na primeira fileira do avião, sem parar para nada ou ninguém. Uma vez sentado à janela colocaria um ansiolítico debaixo da língua, taparia a cara com a manta, dispensaria a refeição e pegaria no sono tão logo fosse permitido reclinar o encosto da poltrona. Mas foi obrigado a frear atrás de um rapazola e uma garota com mochilas nas costas, parados de mãos dadas no meio da esteira. Poderia pedir licença, mas não queria chamar atenção, nem havia real necessidade de ultrapassar os namorados, que se dirigiam igualmente ao portão de embarque para Paris. Talvez também houvesse em Paris alguém à espera do grande artista, que se enterneceu vendo o rapaz roçar o passaporte novinho em folha na ponta do nariz da garota. Foi aí que teve um sobressalto e começou a se apalpar, embora ciente de que não guardara seus documentos nos bolsos ou na valise. Ainda tinha bem presente a textura de um passaporte em sua mão direita. Podia sentir nos dedos como que o formato dessa lembrança, tão concreta quanto a alça da valise que ele segurava com a mão esquerda. Para um viajante rodado como ele, um passaporte escapar da mão parecia tão improvável quanto a sua mão cair do punho.
Ele não podia adivinhar que naquele instante um curioso abria um passaporte abandonado junto com o cartão de embarque na bancada da pia do banheiro. O indivíduo mal acreditou ao ver no documento o nome e as fuças do grande artista que ele mais detestava. De imediato detestou a ideia de que a celebridade fosse tomar champanhe em Paris, viajando no mesmo avião que ele. Pressentindo que o canalha voltaria ao banheiro a qualquer momento, num reflexo atirou passaporte e cartão na lixeira embutida na pia. As outras três ou quatro pessoas que estavam por perto não haveriam de ter notado seu gesto, pois num banheiro masculino ninguém se olha. Então o indivíduo puxou do toalheiro uma folha de papel-toalha para se assoar com força e a enfiou na lixeira. Não contente, arrancou mais um bocado de papel, protegeu a mão, arregaçou a manga e atochou o lixo no intuito de afundar mais e mais o passaporte. Não se privou de escarrar em cima da maçaroca.
Pelo menos não era longo o trajeto de volta que o artista rastreou cabisbaixo, esquadrinhando o piso de granito e três segmentos de esteira. Na entrada do banheiro teve de se desviar de um sujeito ali plantado, um homem bronzeado dos seus quarenta anos, com jaqueta de camurça e ares de playboy, que o encarou com aquela expressão hostil a que ele vinha se habituando nos últimos tempos. Como o mundo parecia conspirar contra o grande artista, a cabine onde ele havia urinado estava ocupada, tendo do lado de fora um tipo com um crachá do aeroporto. Ele ficou sem entender se era um princípio de fila, haja vista a série de cabines livres ao lado daquela. Daí se virou para a pia onde se lembrava de ter lavado as mãos, e deu com um gorducho de moletom escovando os dentes. De qualquer modo, por cima dos ombros do gorducho pôde ver que não havia sinal do passaporte na bancada. Mas o grande artista persistia na esperança de ter pousado o documento sobre a caixa de descarga da latrina no açodamento de abrir a braguilha. O funcionário do aeroporto empurrou por fim a porta da cabine, assim que soou a descarga, e ajudou a erguer um ancião para acomodá-lo numa cadeira de rodas. O passaporte não estava no cubículo, e sem saber o que fazer, o grande artista se olhou no espelho bem no momento em que estava envelhecendo. Pensou na humilhação de depender de um acompanhante nas próximas viagens, por incapaz de cuidar de seus papéis e se arranjar sozinho. Pensou nos filhos, que mesmo com pena dele, tinham seus próprios filhos e a vida para levar. Pensou nas mulheres que o amaram num passado próximo e que hoje talvez preferissem não ser vistas em sua companhia. Mas ao sair para o saguão atrás do funcionário com o cadeirante, se convenceu de ser um homem de sorte. Deu de barato que alguma boa alma, porventura um passageiro do seu voo que encontrasse o passaporte, o confiaria a um comissário da companhia aérea no portão de embarque.
Tornou a tomar a esteira sem atinar que tinha pela frente uma moça com meia dúzia de sacolas do free shop. Mas apesar da carga e das botas de salto agulha, ela caminhava com desenvoltura, chamando em voz alta um sujeito mais adiante: Amor, Amor. Quando o alcançou, permaneceram empacados na esteira lado a lado, a moça parecendo se explicar e Amor impassível olhando para o infinito. Ele estava evidentemente aborrecido, decerto pela demora dela no free shop, ou pela fortuna gasta em perfumes e cosméticos a caminho de Paris. O grande artista, desinteressado de querelas conjugais, forçou um pigarro para ver se o casal lhe dava passagem. No que o marido olhou para trás brevemente, ele reconheceu o bonitão metido a playboy plantado pouco antes à porta do banheiro. Em vez de avançar alguns metros, o indivíduo falou baixinho no ouvido da mulher, que também deu uma olhadela para trás com o rabo do olho e por pouco não tropeçava na entrepausa da esteira. Agora o grande artista tinha diante de si uma reta sem obstáculos, pois quem estava em cima da hora apertava o passo, com a exceção do playboy bonitão e sua mulher, para quem talvez as portas nunca se fechassem. O artista também já fora um viajante tranquilo, seguro de si, mas naquelas circunstâncias se sentia pessoalmente ameaçado pela voz feminina que anunciava a última chamada para o voo 443 da Air France com destino a Paris. Chegou suado ao portão, onde a fila de embarque minguava, com pouco mais de vinte passageiros. Furou a fila para interrogar em francês a agente de solo da Air France, que lhe respondeu em português que não tinha notícia do passaporte. Talvez a polícia pudesse ajudá-lo, mas a comunicação com a polícia estava temporariamente interrompida. Nisso chegou um carrinho elétrico transportando duas gestantes mais o velhote da cadeira de rodas, e o condutor ofereceu uma carona de volta ao grande artista. Perguntou se era ele mesmo, o grande artista, que imaginava a viajar rodeado de mulheres, assessores e fotógrafos. O carrinho era vagaroso, de marcha única, mas ele não tinha mais ilusões, já antevia seu regresso vexatório para casa. Já se via entrando em casa com o semblante vago, como quem voltasse de uma viagem sem recordações. Daquela jornada talvez se lembrasse apenas da mulher novinha do bonitão, que cutucou o marido e conteve o riso ao ver o artista exposto em carro aberto, percorrendo o corredor vazio na contramão. Solícito, o condutor levou o artista até o ponto de partida e só não o deixou na polícia porque o carrinho não podia circular no free shop. Na polícia informaram que, sempre que lhes chegam às mãos documentos extraviados de um passageiro, anunciam prontamente pelo sistema de som. Mas ele podia se dirigir ao serviço de achados e perdidos, que ficava no outro terminal. Senão, ali mesmo no segundo andar havia um posto de expedição de passaportes, e no prazo de trinta dias o interessado poderia obter uma segunda via. O grande artista caminhou desalentado pelo free shop, rondou a loja onde se perdera, mas nem se deu o trabalho de consultar os vendedores. Voltou ao banheiro, achando por bem urinar antes de pegar um táxi, e passou uma água no rosto suarento. Enxugou-se com o papel-toalha e o largou sobre a bancada, porque a lixeira embutida na pia estava abarrotada.
No canto direito da bancada, a boca da lixeira era um buraco circular com borda de alumínio. Ele observou o monturo de papéis usados, e lhe passou pela cabeça que o seu passaporte poderia estar no fundo daquele poço. Tinha noção de quanto era detestado em certos meios, e não era de admirar que algum canalha chegasse ao ponto de jogar seus pertences no lixo. Mas se enganava o cujo se imaginasse que um grande artista, mesmo na ausência de espectadores, se rebaixaria a fuçar uma lixeira por causa de um passaporte; na verdade, ele já nem se lembrava do que ia fazer em Paris. Por outro lado, o canalha daria gargalhadas se soubesse que os papéis do artista haviam sido encaminhados no saco de lixo a um aterro sanitário a fim de serem triturados, incinerados, ou reciclados para a confecção de novos passaportes destinados a cidadãos decentes. Meio sem se dar conta, o artista já revolvia a superfície da lixeira, com papéis-toalha mais ou menos úmidos. Era óbvio, porém, que o canalha não deixaria o passaporte tão facilmente ao alcance da mão, ele o afundaria mais e mais até onde só um canalha igual a ele pudesse chegar. Pouco a pouco o grande artista foi tomando gosto em infiltrar os dedos por entre substâncias pegajosas, restos de sanduíche, chicletes mascados, e ao enfiar o braço até o cotovelo, tocou uma aresta de papel mais rígido. Não teve dúvida; com o polegar e o indicador içou o cartão de embarque, que trouxe a reboque meio metro de fio dental. Praticamente deitado na pia, imergiu o braço inteiro até as profundezas do saco de lixo, onde em meio a consistências de lodo tateou um papelão acetinado. Sim, tinha alcançado a capa do passaporte, que aparentemente estava aberto e perigava se desfazer, se puxado sob o peso de tamanha imundície. Dragou e jogou fora metade das porcarias para resgatá-lo inteiro, e em ato contínuo quase o devolveu ao lixo. Era como se o passaporte estivesse impregnado não só do ranço dos dejetos, mas do ódio da mão odienta do canalha que o conspurcou. Procurou manuseá-lo como o canalha o haveria feito, na tentativa de compreender a essência mesma da canalhice, e no verso da segunda página deparou com a sua foto besuntada de um muco amarelo-escuro. Semelhava um molho de mostarda ressequido aqui e ali, criando crostas que resistiam à esfrega do papel-toalha. Umedeceu a ponta do papel para remover um a um os sedimentos, com o apuro de um restaurador de obras de arte, mas o retrato que se revelava lhe era estranho; tinha um quê de canalha em suas fuças, tal e qual um canalha o veria. Atordoado, o grande artista se olhou no espelho bem no momento em que se transformava ele próprio num canalha. Ainda tentou recuperar algum traço de simpatia, ou um vestígio de bons sentimentos, para se desculpar com a faxineira que, vindo recolher as lixeiras, o encontrou no meio dos detritos espalhados no chão. No entanto, ser um artista detestável por fora o fazia se sentir intimamente mais limpo; ele às vezes suspeitava que se deixar amar por desconhecidos é uma forma de corrupção passiva. Saiu deixando pegadas até o saguão, onde o alto-falante transmitia um ultimato aos retardatários do voo 443, e sentiu uma ponta de orgulho ao ouvir seu nome infame a ecoar pelo aeroporto. Acenou para o carrinho elétrico, cujo condutor fez que não o conhecia com aquela roupa lambuzada, e revigorado pela execração pública pegou a correr. Correu por dois, como quem foge e quem persegue, correu tão rápido que sob as suas passadas a esteira parecia rolar para trás. Prestes a fechar o atendimento, a agente da Air France fez uma cara enjoada ao receber o passaporte com o cartão de embarque. Destacou o canhoto do cartão seboso e conferiu a foto do passaporte, que custou a devolver porque as páginas grudavam nos seus dedos. Exaurido, o grande artista atravessou a ponte de embarque se arrastando, e na passagem sanfonada para a porta do avião, pensou que a sanfona se dobraria com ele dentro.
Nem bem pisou o carpete do avião, a porta se fechou às suas costas, e ao baque surdo se seguiu a bordo um zum-zum negativo. Sentiu-se um intruso, como se a sua respiração ofegante contaminasse a atmosfera da classe executiva. Ele não se perturbava com os olhares enviesados, mas ver seu assento ocupado por outro passageiro o indignou. O indivíduo usava uma calça creme com vinco, sapato social, tinha jeito de francês e não escutou seus protestos porque estava com fones de ouvido assistindo a um filme. Uma aeromoça fez o grande artista recuar para passar com os casacos e paletós dos passageiros, que pendurou no armário ao lado da porta do banheiro. Na mesma hora saiu do banheiro um comissário de bordo nervoso, ordenando ao recém-chegado que guardasse a valise no bagageiro e se sentasse na poltrona do corredor, pois a aeronave não tardaria a decolar. Mas ele fazia questão da janela, tinha o canhoto do cartão marcado 1-L e quis fazer valer o seu direito, alheio ao burburinho crescente à sua volta. Entretanto o indivíduo que usurpara seu assento, ao ver a mancha úmida e marrom na manga direita do seu suéter branco, lhe cedeu o lugar e se mudou para a poltrona à esquerda, bufando como só os franceses sabem bufar. O artista, porém, continuava irrequieto, e já com o avião em movimento se levantou para buscar a nécessaire na sua valise. Mais assanhado ficou ao avistar na última fileira do seu setor o playboy bonitão e a mulher, que baixaram os olhos e fingiram mexer no celular. Advertido pela aeromoça, voltou a afivelar o cinto e colocou dois ansiolíticos debaixo da língua, o primeiro para baixar ao estado normal, o segundo como tomava normalmente para induzir o sono. Mas assim que o avião levantou voo, apertou o botão de chamada para a aeromoça lhe arranjar um tira-manchas para o seu suéter. Mostrou-lhe a mancha malcheirosa e tentou lhe explicar a procedência, na ânsia de partilhar com alguém a sua saga, mas a história do passaporte na lixeira não soava verossímil em francês. Convencido de que os ansiolíticos não fariam efeito, recorreu a um sonífero hipnótico, um socorro que ele tinha sempre à cabeceira. Dormiu ouvindo o ruído de talheres e louças do jantar, que serviram ainda com o dia claro. Deve ter sonhado com o passaporte, com a degradação a que se sujeitara, com sua mão mergulhada num chorume, deve ter sonhado até com as fuças do seu algoz, e já era noite quando foi despertado pela raiva. A raiva que ele vinha abafando até então retornou em seu pior estágio, o de raiva fermentada. Sentiu que seria inútil tomar outro sedativo, pois para tal veneno não existe antídoto. Ele tinha os olhos escancarados, cegos de raiva, uma raiva cor de mostarda. Quando os fechava, suas córneas queimavam, como se ele tivesse mostarda sob as pálpebras. Lentamente, contudo, suas pupilas foram se ajustando à semiescuridão a bordo, e ele se levantou para circular entre os passageiros adormecidos. Dormiam de bruços, de costas, em posição fetal, de boca aberta, com a cabeça coberta, caminhar entre eles era feito um passeio num necrotério. Foi se postar ao lado da poltrona que vinha mirando, onde o bonitão ressonava com uma expressão plácida, um quase sorriso nos lábios. Alguém diria que ele sonhava peripécias eróticas em Paris com sua mulher jeitosa, que na poltrona ao lado dormia virada para a janela, um pedaço das coxas lisas aparecendo fora da manta. Olhando melhor, porém, não havia lascívia no sorriso dele. O sorriso era só com o canto esquerdo da boca, o típico sorriso de um canalha. Ele sonhava seguramente com o momento em que afundou na lixeira o passaporte de um grande artista. Sonhava e ressonhava a mesma cena dentro de um sono denso, contínuo, de quem nunca precisou de calmantes. Era mesmo um homem que dormia bem, como todo autêntico canalha, e em seu rosto não havia nem sombra de raiva, somente um ódio satisfeito. Assim o artista compreendeu que não passava de um aprendiz de canalha, com sua insônia enraivecida. Havia chegado ali disposto a quebrar os dentes do bonitão, julgando que nada haveria de mais canalha que esmurrar um desafeto dormindo no escuro. Reprimiu a tempo o arroubo estúpido, mas não seu desejo de vingança, e algum instinto o conduziu ao armário onde a aeromoça guardara os agasalhos antes da decolagem. Abriu a portinhola, afastou paletós, jaquetas, blusões e identificou o casaquinho da mulher do bonitão, com seu mosaico de quadradinhos marrons, do mesmo padrão das botas. Ali pegado estava aquela jaqueta de camurça de playboy, e no bolso esquerdo do forro ele encontrou o que queria. Surrupiou o passaporte do canalha-mor e se trancou no banheiro com a gana de um adolescente a ponto de se masturbar. Abriu o passaporte direto na página de identificação, onde constavam os dados biográficos e a foto do bonitão com os olhos muito abertos, como assustado com o que estava para lhe acontecer. Era uma página plastificada, maleável, que em vez de se rasgar esgarçava, dando a impressão de que a cara do bonitão iria se deformar numa careta elástica. Mas de repente, com o auxílio das unhas, conseguiu romper a foto ao meio. Daí em diante foi fácil picar a página em miúdos, e lá se foi para a lixeira a identidade do canalha com seu nome composto, seus quatro sobrenomes, os múltiplos nomes de pai e mãe e sua data de nascimento. Em seguida o artista se entreteve a moer as páginas carimbadas, com entradas e saídas de Paris, Nova Iorque, Roma, Praga, aeroportos do Oriente, todo um passado do playboy globe-trotter atirado na lixeira. Sobrou a capa azul-marinho com o brasão da República, que nem com os dentes ele poderia rasgar. Virou-a do avesso, afundou-a no lixo, mudou de ideia e a buscou de volta para atirar na latrina. A sucção da descarga era violenta, e instantaneamente o artista se sentiu vazio, sem raiva, sem ódio, sem desejo algum, senão o de alcançar sua poltrona e dormir a fundo.
Despertou com os passos dos tripulantes que recolhiam as bandejas do café da manhã. Já se preparava a aterrissagem e a aeromoça retirava os cabides do armário para entregar os casacos a seus donos, entre os quais a famigerada jaqueta de camurça. Restabelecido em sua boa índole, o grande artista chegou a se apiedar do playboy, que seria embarcado no primeiro avião de volta ao Rio. Ao pensar na moça, contudo, ele se viu novamente habitado por um espírito canalha; almejou encontrá-la por acaso, entediada e só, fazendo turismo nas ruas de Paris. O avião ainda taxiava na pista após o pouso e os passageiros já se levantavam, apesar das advertências da aeromoça. O artista apanhou sua valise atento ao bonitão, que vestia a jaqueta em pé enquanto a mulher na poltrona retocava a maquiagem. Logo que os motores se desligaram, foram todos se afunilando à porta de saída, e calhou de o artista ficar bem atrás do casal com suas valises e sacolas de free shop. Foi quando o bonitão se virou para ele de maneira abrupta, com um olhar frontal quase acusatório, e se declarou um grande admirador da sua arte. A mulher também o admirava, e com um sorriso tímido lhe desejou uma boa estada em Paris. Ele os seguiu a curta distância rumo à polícia de imigração e presenciou o momento em que o bonitão deu por falta do seu passaporte: meteu a mão no bolso interno da jaqueta, estacou, começou a se apalpar, e logo se desentendeu com a mulher, que lhe abria sua bolsa quadriculada e dentro dela a carteira de documentos de padrão idêntico. O artista seguiu reto, e da última vez que viu o casal, ela chorava e ele vasculhava valises e sacolas sentado no chão. À frente do artista estavam na fila da polícia os jovens namorados com suas mochilas, que só se desgrudaram diante do guichê, porque não podiam passar pela imigração de mãos dadas. Na cola do artista vinha o seu vizinho de poltrona, que pelo visto não era francês, pois aquela fila era de estrangeiros. Com a calça creme de vincos intactos, trazia um cigarro apagado na boca, na certa fissurado para fumar lá fora. Teria de aguentar um pouco, porque o gendarme implicou com o passaporte do grande artista e chamou um supervisor para o examinar. O supervisor manuseou com desgosto o passaporte melado, provavelmente com a determinação de barrar a entrada do grande artista no país. O artista ainda tentou relatar o episódio da lixeira, da mostarda, do canalha, mas as palavras lhe faltavam em francês. Então começou a se irritar com a impaciência do seu vizinho de assento, que avançara o limite da faixa amarela no chão e bisbilhotava a confabulação dos gendarmes. Desfrutando sua autoridade, o supervisor remanchava a virar e revirar o passaporte, fazendo que não com a cabeça. Olhava o forasteiro, olhava a foto e a cada minuto pedia a opinião do colega, que abanava a cabeça com maior veemência. O artista já se resignava a ser repatriado no mesmo voo do bonitão, quando o chefão buscou uma página em branco, suspirou, bufou e finalmente carimbou o passaporte. Ao partir, o grande artista desejou uma boa estada ao companheiro de viagem, que respondeu com o isqueiro na mão: da próxima vez eu taco fogo.

Chico Buarque, in Anos de chumbo e outros contos

Nenhum comentário:

Postar um comentário