O
grande artista chegou ao Aeroporto Tom Jobim em boa hora com a mala
de mão e nada para despachar. Só perdeu algum tempo na polícia,
porque havia um problema com o chip do passaporte e foi preciso
chamar um supervisor que o liberasse. No saguão foi compelido a
seguir pelos meandros do free shop, que ele estava acostumado a
atravessar acompanhando o fluxo dos passageiros. Àquela hora da
tarde, porém, com poucas partidas internacionais, era escasso o
movimento no terminal e redundante a iluminação nas lojas quase às
moscas. Pela primeira vez ele reparava no chão espelhado com setas e
faixas em diferentes cores e direções, e por um momento se viu
desorientado. Depois de entrar por engano numa loja de produtos
eletrônicos, sentiu um aperto na bexiga e distinguiu a custo a
indicação do WC entre tantos letreiros. No banheiro só havia dois
mictórios, ambos ocupados, e o grande artista correu para se aliviar
na latrina de uma cabine. Lavou as mãos e retomou seu caminho sem
tanta folga de tempo, pois até o portão de embarque, na outra
extremidade do aeroporto, era preciso vencer um extenso corredor com
uma esteira rolante central. Era uma esteira intermitente de onde a
cada cem metros se passava para o piso de granito, como quem salta de
um bonde em movimento. A passos largos, ele redobrava a velocidade da
esteira, com pressa de se instalar na primeira fileira do avião, sem
parar para nada ou ninguém. Uma vez sentado à janela colocaria um
ansiolítico debaixo da língua, taparia a cara com a manta,
dispensaria a refeição e pegaria no sono tão logo fosse permitido
reclinar o encosto da poltrona. Mas foi obrigado a frear atrás de um
rapazola e uma garota com mochilas nas costas, parados de mãos dadas
no meio da esteira. Poderia pedir licença, mas não queria chamar
atenção, nem havia real necessidade de ultrapassar os namorados,
que se dirigiam igualmente ao portão de embarque para Paris. Talvez
também houvesse em Paris alguém à espera do grande artista, que se
enterneceu vendo o rapaz roçar o passaporte novinho em folha na
ponta do nariz da garota. Foi aí que teve um sobressalto e começou
a se apalpar, embora ciente de que não guardara seus documentos nos
bolsos ou na valise. Ainda tinha bem presente a textura de um
passaporte em sua mão direita. Podia sentir nos dedos como que o
formato dessa lembrança, tão concreta quanto a alça da valise que
ele segurava com a mão esquerda. Para um viajante rodado como ele,
um passaporte escapar da mão parecia tão improvável quanto a sua
mão cair do punho.
Ele
não podia adivinhar que naquele instante um curioso abria um
passaporte abandonado junto com o cartão de embarque na bancada da
pia do banheiro. O indivíduo mal acreditou ao ver no documento o
nome e as fuças do grande artista que ele mais detestava. De
imediato detestou a ideia de que a celebridade fosse tomar champanhe
em Paris, viajando no mesmo avião que ele. Pressentindo que o
canalha voltaria ao banheiro a qualquer momento, num reflexo atirou
passaporte e cartão na lixeira embutida na pia. As outras três ou
quatro pessoas que estavam por perto não haveriam de ter notado seu
gesto, pois num banheiro masculino ninguém se olha. Então o
indivíduo puxou do toalheiro uma folha de papel-toalha para se
assoar com força e a enfiou na lixeira. Não contente, arrancou mais
um bocado de papel, protegeu a mão, arregaçou a manga e atochou o
lixo no intuito de afundar mais e mais o passaporte. Não se privou
de escarrar em cima da maçaroca.
Pelo
menos não era longo o trajeto de volta que o artista rastreou
cabisbaixo, esquadrinhando o piso de granito e três segmentos de
esteira. Na entrada do banheiro teve de se desviar de um sujeito ali
plantado, um homem bronzeado dos seus quarenta anos, com jaqueta de
camurça e ares de playboy, que o encarou com aquela expressão
hostil a que ele vinha se habituando nos últimos tempos. Como o
mundo parecia conspirar contra o grande artista, a cabine onde ele
havia urinado estava ocupada, tendo do lado de fora um tipo com um
crachá do aeroporto. Ele ficou sem entender se era um princípio de
fila, haja vista a série de cabines livres ao lado daquela. Daí se
virou para a pia onde se lembrava de ter lavado as mãos, e deu com
um gorducho de moletom escovando os dentes. De qualquer modo, por
cima dos ombros do gorducho pôde ver que não havia sinal do
passaporte na bancada. Mas o grande artista persistia na esperança
de ter pousado o documento sobre a caixa de descarga da latrina no
açodamento de abrir a braguilha. O funcionário do aeroporto
empurrou por fim a porta da cabine, assim que soou a descarga, e
ajudou a erguer um ancião para acomodá-lo numa cadeira de rodas. O
passaporte não estava no cubículo, e sem saber o que fazer, o
grande artista se olhou no espelho bem no momento em que estava
envelhecendo. Pensou na humilhação de depender de um acompanhante
nas próximas viagens, por incapaz de cuidar de seus papéis e se
arranjar sozinho. Pensou nos filhos, que mesmo com pena dele, tinham
seus próprios filhos e a vida para levar. Pensou nas mulheres que o
amaram num passado próximo e que hoje talvez preferissem não ser
vistas em sua companhia. Mas ao sair para o saguão atrás do
funcionário com o cadeirante, se convenceu de ser um homem de sorte.
Deu de barato que alguma boa alma, porventura um passageiro do seu
voo que encontrasse o passaporte, o confiaria a um comissário da
companhia aérea no portão de embarque.
Tornou
a tomar a esteira sem atinar que tinha pela frente uma moça com meia
dúzia de sacolas do free shop. Mas apesar da carga e das botas de
salto agulha, ela caminhava com desenvoltura, chamando em voz alta um
sujeito mais adiante: Amor, Amor. Quando o alcançou, permaneceram
empacados na esteira lado a lado, a moça parecendo se explicar e
Amor impassível olhando para o infinito. Ele estava evidentemente
aborrecido, decerto pela demora dela no free shop, ou pela fortuna
gasta em perfumes e cosméticos a caminho de Paris. O grande artista,
desinteressado de querelas conjugais, forçou um pigarro para ver se
o casal lhe dava passagem. No que o marido olhou para trás
brevemente, ele reconheceu o bonitão metido a playboy plantado pouco
antes à porta do banheiro. Em vez de avançar alguns metros, o
indivíduo falou baixinho no ouvido da mulher, que também deu uma
olhadela para trás com o rabo do olho e por pouco não tropeçava na
entrepausa da esteira. Agora o grande artista tinha diante de si uma
reta sem obstáculos, pois quem estava em cima da hora apertava o
passo, com a exceção do playboy bonitão e sua mulher, para quem
talvez as portas nunca se fechassem. O artista também já fora um
viajante tranquilo, seguro de si, mas naquelas circunstâncias se
sentia pessoalmente ameaçado pela voz feminina que anunciava a
última chamada para o voo 443 da Air France com destino a Paris.
Chegou suado ao portão, onde a fila de embarque minguava, com pouco
mais de vinte passageiros. Furou a fila para interrogar em francês a
agente de solo da Air France, que lhe respondeu em português que não
tinha notícia do passaporte. Talvez a polícia pudesse ajudá-lo,
mas a comunicação com a polícia estava temporariamente
interrompida. Nisso chegou um carrinho elétrico transportando duas
gestantes mais o velhote da cadeira de rodas, e o condutor ofereceu
uma carona de volta ao grande artista. Perguntou se era ele mesmo, o
grande artista, que imaginava a viajar rodeado de mulheres,
assessores e fotógrafos. O carrinho era vagaroso, de marcha única,
mas ele não tinha mais ilusões, já antevia seu regresso vexatório
para casa. Já se via entrando em casa com o semblante vago, como
quem voltasse de uma viagem sem recordações. Daquela jornada talvez
se lembrasse apenas da mulher novinha do bonitão, que cutucou o
marido e conteve o riso ao ver o artista exposto em carro aberto,
percorrendo o corredor vazio na contramão. Solícito, o condutor
levou o artista até o ponto de partida e só não o deixou na
polícia porque o carrinho não podia circular no free shop. Na
polícia informaram que, sempre que lhes chegam às mãos documentos
extraviados de um passageiro, anunciam prontamente pelo sistema de
som. Mas ele podia se dirigir ao serviço de achados e perdidos, que
ficava no outro terminal. Senão, ali mesmo no segundo andar havia um
posto de expedição de passaportes, e no prazo de trinta dias o
interessado poderia obter uma segunda via. O grande artista caminhou
desalentado pelo free shop, rondou a loja onde se perdera, mas nem se
deu o trabalho de consultar os vendedores. Voltou ao banheiro,
achando por bem urinar antes de pegar um táxi, e passou uma água no
rosto suarento. Enxugou-se com o papel-toalha e o largou sobre a
bancada, porque a lixeira embutida na pia estava abarrotada.
No
canto direito da bancada, a boca da lixeira era um buraco circular
com borda de alumínio. Ele observou o monturo de papéis usados, e
lhe passou pela cabeça que o seu passaporte poderia estar no fundo
daquele poço. Tinha noção de quanto era detestado em certos meios,
e não era de admirar que algum canalha chegasse ao ponto de jogar
seus pertences no lixo. Mas se enganava o cujo se imaginasse que um
grande artista, mesmo na ausência de espectadores, se rebaixaria a
fuçar uma lixeira por causa de um passaporte; na verdade, ele já
nem se lembrava do que ia fazer em Paris. Por outro lado, o canalha
daria gargalhadas se soubesse que os papéis do artista haviam sido
encaminhados no saco de lixo a um aterro sanitário a fim de serem
triturados, incinerados, ou reciclados para a confecção de novos
passaportes destinados a cidadãos decentes. Meio sem se dar conta, o
artista já revolvia a superfície da lixeira, com papéis-toalha
mais ou menos úmidos. Era óbvio, porém, que o canalha não
deixaria o passaporte tão facilmente ao alcance da mão, ele o
afundaria mais e mais até onde só um canalha igual a ele pudesse
chegar. Pouco a pouco o grande artista foi tomando gosto em infiltrar
os dedos por entre substâncias pegajosas, restos de sanduíche,
chicletes mascados, e ao enfiar o braço até o cotovelo, tocou uma
aresta de papel mais rígido. Não teve dúvida; com o polegar e o
indicador içou o cartão de embarque, que trouxe a reboque meio
metro de fio dental. Praticamente deitado na pia, imergiu o braço
inteiro até as profundezas do saco de lixo, onde em meio a
consistências de lodo tateou um papelão acetinado. Sim, tinha
alcançado a capa do passaporte, que aparentemente estava aberto e
perigava se desfazer, se puxado sob o peso de tamanha imundície.
Dragou e jogou fora metade das porcarias para resgatá-lo inteiro, e
em ato contínuo quase o devolveu ao lixo. Era como se o passaporte
estivesse impregnado não só do ranço dos dejetos, mas do ódio da
mão odienta do canalha que o conspurcou. Procurou manuseá-lo como o
canalha o haveria feito, na tentativa de compreender a essência
mesma da canalhice, e no verso da segunda página deparou com a sua
foto besuntada de um muco amarelo-escuro. Semelhava um molho de
mostarda ressequido aqui e ali, criando crostas que resistiam à
esfrega do papel-toalha. Umedeceu a ponta do papel para remover um a
um os sedimentos, com o apuro de um restaurador de obras de arte, mas
o retrato que se revelava lhe era estranho; tinha um quê de canalha
em suas fuças, tal e qual um canalha o veria. Atordoado, o grande
artista se olhou no espelho bem no momento em que se transformava ele
próprio num canalha. Ainda tentou recuperar algum traço de
simpatia, ou um vestígio de bons sentimentos, para se desculpar com
a faxineira que, vindo recolher as lixeiras, o encontrou no meio dos
detritos espalhados no chão. No entanto, ser um artista detestável
por fora o fazia se sentir intimamente mais limpo; ele às vezes
suspeitava que se deixar amar por desconhecidos é uma forma de
corrupção passiva. Saiu deixando pegadas até o saguão, onde o
alto-falante transmitia um ultimato aos retardatários do voo 443, e
sentiu uma ponta de orgulho ao ouvir seu nome infame a ecoar pelo
aeroporto. Acenou para o carrinho elétrico, cujo condutor fez que
não o conhecia com aquela roupa lambuzada, e revigorado pela
execração pública pegou a correr. Correu por dois, como quem foge
e quem persegue, correu tão rápido que sob as suas passadas a
esteira parecia rolar para trás. Prestes a fechar o atendimento, a
agente da Air France fez uma cara enjoada ao receber o passaporte com
o cartão de embarque. Destacou o canhoto do cartão seboso e
conferiu a foto do passaporte, que custou a devolver porque as
páginas grudavam nos seus dedos. Exaurido, o grande artista
atravessou a ponte de embarque se arrastando, e na passagem sanfonada
para a porta do avião, pensou que a sanfona se dobraria com ele
dentro.
Nem
bem pisou o carpete do avião, a porta se fechou às suas costas, e
ao baque surdo se seguiu a bordo um zum-zum negativo. Sentiu-se um
intruso, como se a sua respiração ofegante contaminasse a atmosfera
da classe executiva. Ele não se perturbava com os olhares
enviesados, mas ver seu assento ocupado por outro passageiro o
indignou. O indivíduo usava uma calça creme com vinco, sapato
social, tinha jeito de francês e não escutou seus protestos porque
estava com fones de ouvido assistindo a um filme. Uma aeromoça fez o
grande artista recuar para passar com os casacos e paletós dos
passageiros, que pendurou no armário ao lado da porta do banheiro.
Na mesma hora saiu do banheiro um comissário de bordo nervoso,
ordenando ao recém-chegado que guardasse a valise no bagageiro e se
sentasse na poltrona do corredor, pois a aeronave não tardaria a
decolar. Mas ele fazia questão da janela, tinha o canhoto do cartão
marcado 1-L e quis fazer valer o seu direito, alheio ao burburinho
crescente à sua volta. Entretanto o indivíduo que usurpara seu
assento, ao ver a mancha úmida e marrom na manga direita do seu
suéter branco, lhe cedeu o lugar e se mudou para a poltrona à
esquerda, bufando como só os franceses sabem bufar. O artista,
porém, continuava irrequieto, e já com o avião em movimento se
levantou para buscar a nécessaire na sua valise. Mais assanhado
ficou ao avistar na última fileira do seu setor o playboy bonitão e
a mulher, que baixaram os olhos e fingiram mexer no celular.
Advertido pela aeromoça, voltou a afivelar o cinto e colocou dois
ansiolíticos debaixo da língua, o primeiro para baixar ao estado
normal, o segundo como tomava normalmente para induzir o sono. Mas
assim que o avião levantou voo, apertou o botão de chamada para a
aeromoça lhe arranjar um tira-manchas para o seu suéter.
Mostrou-lhe a mancha malcheirosa e tentou lhe explicar a procedência,
na ânsia de partilhar com alguém a sua saga, mas a história do
passaporte na lixeira não soava verossímil em francês. Convencido
de que os ansiolíticos não fariam efeito, recorreu a um sonífero
hipnótico, um socorro que ele tinha sempre à cabeceira. Dormiu
ouvindo o ruído de talheres e louças do jantar, que serviram ainda
com o dia claro. Deve ter sonhado com o passaporte, com a degradação
a que se sujeitara, com sua mão mergulhada num chorume, deve ter
sonhado até com as fuças do seu algoz, e já era noite quando foi
despertado pela raiva. A raiva que ele vinha abafando até então
retornou em seu pior estágio, o de raiva fermentada. Sentiu que
seria inútil tomar outro sedativo, pois para tal veneno não existe
antídoto. Ele tinha os olhos escancarados, cegos de raiva, uma raiva
cor de mostarda. Quando os fechava, suas córneas queimavam, como se
ele tivesse mostarda sob as pálpebras. Lentamente, contudo, suas
pupilas foram se ajustando à semiescuridão a bordo, e ele se
levantou para circular entre os passageiros adormecidos. Dormiam de
bruços, de costas, em posição fetal, de boca aberta, com a cabeça
coberta, caminhar entre eles era feito um passeio num necrotério.
Foi se postar ao lado da poltrona que vinha mirando, onde o bonitão
ressonava com uma expressão plácida, um quase sorriso nos lábios.
Alguém diria que ele sonhava peripécias eróticas em Paris com sua
mulher jeitosa, que na poltrona ao lado dormia virada para a janela,
um pedaço das coxas lisas aparecendo fora da manta. Olhando melhor,
porém, não havia lascívia no sorriso dele. O sorriso era só com o
canto esquerdo da boca, o típico sorriso de um canalha. Ele sonhava
seguramente com o momento em que afundou na lixeira o passaporte de
um grande artista. Sonhava e ressonhava a mesma cena dentro de um
sono denso, contínuo, de quem nunca precisou de calmantes. Era mesmo
um homem que dormia bem, como todo autêntico canalha, e em seu rosto
não havia nem sombra de raiva, somente um ódio satisfeito. Assim o
artista compreendeu que não passava de um aprendiz de canalha, com
sua insônia enraivecida. Havia chegado ali disposto a quebrar os
dentes do bonitão, julgando que nada haveria de mais canalha que
esmurrar um desafeto dormindo no escuro. Reprimiu a tempo o arroubo
estúpido, mas não seu desejo de vingança, e algum instinto o
conduziu ao armário onde a aeromoça guardara os agasalhos antes da
decolagem. Abriu a portinhola, afastou paletós, jaquetas, blusões e
identificou o casaquinho da mulher do bonitão, com seu mosaico de
quadradinhos marrons, do mesmo padrão das botas. Ali pegado estava
aquela jaqueta de camurça de playboy, e no bolso esquerdo do forro
ele encontrou o que queria. Surrupiou o passaporte do canalha-mor e
se trancou no banheiro com a gana de um adolescente a ponto de se
masturbar. Abriu o passaporte direto na página de identificação,
onde constavam os dados biográficos e a foto do bonitão com os
olhos muito abertos, como assustado com o que estava para lhe
acontecer. Era uma página plastificada, maleável, que em vez de se
rasgar esgarçava, dando a impressão de que a cara do bonitão iria
se deformar numa careta elástica. Mas de repente, com o auxílio das
unhas, conseguiu romper a foto ao meio. Daí em diante foi fácil
picar a página em miúdos, e lá se foi para a lixeira a identidade
do canalha com seu nome composto, seus quatro sobrenomes, os
múltiplos nomes de pai e mãe e sua data de nascimento. Em seguida o
artista se entreteve a moer as páginas carimbadas, com entradas e
saídas de Paris, Nova Iorque, Roma, Praga, aeroportos do Oriente,
todo um passado do playboy globe-trotter atirado na lixeira. Sobrou a
capa azul-marinho com o brasão da República, que nem com os dentes
ele poderia rasgar. Virou-a do avesso, afundou-a no lixo, mudou de
ideia e a buscou de volta para atirar na latrina. A sucção da
descarga era violenta, e instantaneamente o artista se sentiu vazio,
sem raiva, sem ódio, sem desejo algum, senão o de alcançar sua
poltrona e dormir a fundo.
Despertou
com os passos dos tripulantes que recolhiam as bandejas do café da
manhã. Já se preparava a aterrissagem e a aeromoça retirava os
cabides do armário para entregar os casacos a seus donos, entre os
quais a famigerada jaqueta de camurça. Restabelecido em sua boa
índole, o grande artista chegou a se apiedar do playboy, que seria
embarcado no primeiro avião de volta ao Rio. Ao pensar na moça,
contudo, ele se viu novamente habitado por um espírito canalha;
almejou encontrá-la por acaso, entediada e só, fazendo turismo nas
ruas de Paris. O avião ainda taxiava na pista após o pouso e os
passageiros já se levantavam, apesar das advertências da aeromoça.
O artista apanhou sua valise atento ao bonitão, que vestia a jaqueta
em pé enquanto a mulher na poltrona retocava a maquiagem. Logo que
os motores se desligaram, foram todos se afunilando à porta de
saída, e calhou de o artista ficar bem atrás do casal com suas
valises e sacolas de free shop. Foi quando o bonitão se virou para
ele de maneira abrupta, com um olhar frontal quase acusatório, e se
declarou um grande admirador da sua arte. A mulher também o
admirava, e com um sorriso tímido lhe desejou uma boa estada em
Paris. Ele os seguiu a curta distância rumo à polícia de imigração
e presenciou o momento em que o bonitão deu por falta do seu
passaporte: meteu a mão no bolso interno da jaqueta, estacou,
começou a se apalpar, e logo se desentendeu com a mulher, que lhe
abria sua bolsa quadriculada e dentro dela a carteira de documentos
de padrão idêntico. O artista seguiu reto, e da última vez que viu
o casal, ela chorava e ele vasculhava valises e sacolas sentado no
chão. À frente do artista estavam na fila da polícia os jovens
namorados com suas mochilas, que só se desgrudaram diante do guichê,
porque não podiam passar pela imigração de mãos dadas. Na cola do
artista vinha o seu vizinho de poltrona, que pelo visto não era
francês, pois aquela fila era de estrangeiros. Com a calça creme de
vincos intactos, trazia um cigarro apagado na boca, na certa
fissurado para fumar lá fora. Teria de aguentar um pouco, porque o
gendarme implicou com o passaporte do grande artista e chamou um
supervisor para o examinar. O supervisor manuseou com desgosto o
passaporte melado, provavelmente com a determinação de barrar a
entrada do grande artista no país. O artista ainda tentou relatar o
episódio da lixeira, da mostarda, do canalha, mas as palavras lhe
faltavam em francês. Então começou a se irritar com a impaciência
do seu vizinho de assento, que avançara o limite da faixa amarela no
chão e bisbilhotava a confabulação dos gendarmes. Desfrutando sua
autoridade, o supervisor remanchava a virar e revirar o passaporte,
fazendo que não com a cabeça. Olhava o forasteiro, olhava a foto e
a cada minuto pedia a opinião do colega, que abanava a cabeça com
maior veemência. O artista já se resignava a ser repatriado no
mesmo voo do bonitão, quando o chefão buscou uma página em branco,
suspirou, bufou e finalmente carimbou o passaporte. Ao partir, o
grande artista desejou uma boa estada ao companheiro de viagem, que
respondeu com o isqueiro na mão: da próxima vez eu taco fogo.
Chico Buarque, in Anos de chumbo e outros contos
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