terça-feira, 2 de agosto de 2022

O Lobo do Mar | Capítulo 8



Às vezes penso que Wolf Larsen é louco, pelo menos em parte, levando em conta todos os seus caprichos e mudanças de humor. Outras vezes vejo nele um grande homem, um gênio desperdiçado. Por fim, estou convencido de que ele é o perfeito homem primitivo que nasceu com um atraso de milhares de anos ou de várias gerações, um anacronismo em nosso século tão civilizado. É sem dúvida um individualista do tipo mais pronunciado. Não só isso, é também um homem muito solitário. Não há nenhuma afinidade entre ele e os outros homens a bordo. Sua virilidade e força mental tremendas erguem uma parede à sua volta. Para ele, os outros são crianças, inclusive os caçadores, e é assim que ele os trata, rebaixando-se ao mesmo nível por necessidade e brincando com eles como se fossem filhotes de cachorro. Ou então os inspecionando com a mão cruel de um vivisseccionista, vasculhando seus processos mentais e examinando suas almas como se quisesse verificar do que são feitas.
Diversas vezes eu o vi insultar um ou outro caçador à mesa com um olhar frio e calmo, e sobretudo com um certo ar de interesse, para então avaliar suas atitudes, respostas e ataques de raiva insignificantes com uma curiosidade que a mim, que observava tudo à parte e compreendia o que se passava, se afigurava quase risível. Quanto aos seus próprios ataques de raiva, tenho certeza de que não são reais, de que às vezes não passam de experimentos e de que fazem parte, em sua maioria, de uma pose ou atitude que ele prefere assumir diante de seus semelhantes. Com a possível exceção do episódio da morte do imediato, sei que nunca o vi furioso de verdade e que não desejo jamais vê-lo tomado por uma cólera genuína, que mobilize a sua força como um todo.
Falando em caprichos, devo contar o que aconteceu com Thomas Mugridge na cabine e com isso completar a narrativa de um incidente ao qual já aludi um par de vezes. Um dia, depois que a refeição das doze estava encerrada e eu tinha acabado de arrumar a cabine, Wolf Larsen e Thomas Mugridge desceram a escada da escotilha. Embora possuísse um minúsculo camarote que dava para a cabine, o cozinheiro nunca ousava demorar-se ou ser visto na cabine propriamente dita e a cruzava com toda a pressa, uma ou duas vezes por dia, como um espectro tímido.
Quer dizer que você sabe jogar “Napoleão”38 — disse Wolf Larsen em tom de satisfação. — É o que eu esperaria de um inglês. Eu mesmo aprendi a jogar em navios ingleses.
Thomas Mugridge ficou fora de si, como um imbecil deslumbrado, de tanta alegria que lhe dava conversar com o capitão como se fossem camaradas. O narizinho empinado e o esforço penoso de assumir a postura desenvolta de um homem de posição digna teriam sido nauseantes se não fossem ridículos. Ele ignorou minha presença, embora eu reconheça que talvez tivesse simplesmente perdido a capacidade de me ver. Seus olhos pálidos e aguados nadavam em mares ensolarados e preguiçosos, mas eu não tinha a menor condição de imaginar o que enxergavam.
Traga o baralho, Hump — ordenou Wolf Larsen enquanto os dois sentavam à mesa. — E traga também os charutos e o uísque que estão no meu quarto.
Retornei com o pedido a tempo de escutar o cockney insinuando vagamente que havia um segredo revestindo a sua pessoa, que ele poderia ser o filho desgarrado de um nobre da alta sociedade ou algo assim; e também que ele recebia dinheiro para manter-se afastado da Inglaterra.
Me pagam bem, senhor — foram as suas palavras —, me pagam muito bem pra ficar bem longe e nunca mais voltar.
Eu havia trazido os copinhos de licor como sempre, mas Wolf Larsen franziu o cenho, balançou a cabeça e fez sinal com as mãos para que eu trouxesse os copos grandes. Ele os encheu acima da metade com uísque puro, “bebida de cavalheiros”, de acordo com Mugridge, depois bateram os copos brindando à gloriosa partida de “Napoleão”, acenderam os charutos e começaram a embaralhar e a distribuir as cartas.
Apostaram dinheiro. Foram aumentando o valor das apostas. Beberam uísque, beberam até acabar, e precisei buscar mais. Não sei se Wolf Larsen trapaceou, coisa de que seria totalmente capaz, mas ele ganhou quase todas. O cozinheiro foi diversas vezes ao quarto pegar mais dinheiro. Lançava-se a cada nova jornada com crescente fanfarrice, mas nunca trazia mais que uns poucos dólares. Foi ficando cada vez mais à vontade, cada vez mais sentimental, e mal conseguia enxergar as cartas e manter a posição na cadeira. Prestes a empreender nova jornada ao quarto, enfiou o dedo gorduroso num buraco de botão do casaco de Wolf Larsen e não apenas proclamou como reiterou:
Tenho dinheiro, tenho dinheiro, tô dizendo, e sou filho de um nobre.
Wolf Larsen não sofria o efeito da bebida, mas entornava cada copo junto com o cozinheiro e inclusive parecia caprichar mais nas próprias doses. Nada nele se alterou. Não parecia nem estar se divertindo às custas do outro.
Ao término, com protestos veementes de que sabia perder como um cavalheiro, o cozinheiro apostou seu último dinheiro no jogo e perdeu. Constatando isso, afundou a cabeça entre as mãos e chorou. Wolf Larsen observou-o com curiosidade, dando a impressão de que pretendia abri-lo para uma vivissecção, e logo em seguida mudou de ideia, como se tivesse concluído por antecipação que não havia nada de interessante para ver.
Hump — ele me disse com uma cortesia calculada —, tenha a bondade de tomar o sr. Mugridge pelo braço e conduzi-lo ao convés. Ele não está se sentindo muito bem.
Depois acrescentou em voz baixa, no meu ouvido:
E peça a Johnson que jogue uns baldes de água salgada nele.
Deixei o sr. Mugridge no convés aos cuidados de um par de marujos sorridentes que tinham sido destacados para a função. O sr. Mugridge, semidesperto, continuava balbuciando que era filho de um nobre. Enquanto eu descia a escada da escotilha para limpar a mesa, ouvi Mugridge gritar ao receber o primeiro balde d’água na cabeça.
Wolf Larsen estava contabilizando seus ganhos.
Cento e oitenta e cinco dólares redondos — disse alto. — Como eu pensava. Esse mendigo veio a bordo sem um tostão.
E o que você ganhou me pertence — declarei com firmeza. Ele me mediu com um sorriso cômico.
Hump, estudei um pouco de gramática quando era jovem e acho que você está confundindo os tempos verbais. Devia ter dito “me pertencia”, e não “me pertence”.
Não é uma questão de gramática, e sim de ética — respondi.
Ele demorou um minuto para falar.
Sabia, Hump — ele disse com uma seriedade vagarosa que continha um traço indefinível de tristeza —, que esta é a primeira vez que ouço a palavra “ética” sair da boca de um homem? Somos os únicos neste barco que conhecemos seu significado.
Depois de outra pausa, ele prosseguiu:
Houve uma época em minha vida em que eu sonhava poder conversar com homens capazes de usar esta palavra, abandonar o lugar da vida em que eu havia nascido para conversar e conviver com homens que só falassem de ética e coisas do tipo. E esta é a primeira vez que ouço esta palavra ser pronunciada. O que não tem importância, por sinal, pois você está enganado. Não se trata de gramática nem de ética, mas de um fato.
Entendi — eu disse. — O fato é que o dinheiro está com você.
Seu rosto acendeu. Ele parecia contente com minha perspicácia.
Mas isso contorna a verdadeira questão — continuei —, que tem a ver com o que é direito.
Ah — ele retrucou com sorriso sardônico no canto da boca —, percebo que ainda crê em coisas como o certo e o errado.
Mas o senhor não? Não mesmo?
Nem um pouco. O poder faz o direito, isso é tudo. A fraqueza está errada. O que é uma maneira muito pobre de dizer que é bom para si ser forte, e ruim para si ser fraco. Ou ainda melhor, é agradável ser forte, por causa das recompensas, e é desagradável ser fraco, por causa das desvantagens. Agora mesmo, a posse desse dinheiro é agradável. É bom possuí-lo. Podendo possuí-lo, cometeria uma injustiça comigo mesmo e com a vida que há em mim se abrisse mão do prazer de possuí-lo para entregá-lo a você.
Mas você comete uma injustiça comigo ao retê-lo — objetei.
De forma alguma. Um homem não pode injustiçar outro homem. Pode apenas injustiçar a si mesmo. Da forma como vejo, sempre cometo uma injustiça ao levar em conta os interesses dos outros. Não percebe? Como duas partículas de levedo podem ser injustas uma com a outra tentando devorar-se mutuamente? Seu impulso de devorar e não ser devorado é uma herança inata. Quando se afastam disso, pecam.
Então o senhor não acredita em altruísmo?
Ele reagiu como se a palavra lhe soasse conhecida, mas pensou nela com cuidado.
Vejamos, tem algo a ver com cooperação, não tem?
Bem, tem alguma relação, sim — respondi sem me surpreender com a lacuna em seu vocabulário, pois este era resultado, assim como todo o seu conhecimento, das leituras e estudos de um autodidata que nunca tivera qualquer orientação e havia pensado muito, mas conversado pouco ou nada. — Um ato altruísta é um ato realizado em benefício alheio. É um ato desinteressado, ao contrário de um ato egoísta, que é realizado em benefício próprio.
Ele anuiu com a cabeça.
Ah, sim, agora lembro. Spencer menciona isso.
Spencer! — gritei. — Você o leu?
Não muito — confessou. — Entendi uma boa parte dos Primeiros princípios, mas sua Biologia não é vento para minhas velas e sua Psicologia me deixou parado por dias na calmaria equatorial. Sinceramente, não entendi o que ele queria. Presumi que se tratava de uma deficiência mental de minha parte, mas depois concluí que eu não estava suficientemente preparado. Não tinha a base necessária. Somente Spencer e eu sabemos o quanto bati a cabeça. Mas tirei alguma coisa de seus Princípios de ética. Foi lá que topei com “altruísmo”, e agora lembro como o termo foi usado.
Fiquei pensando o que aquele homem poderia ter tirado de uma obra dessas. Eu lembrava o suficiente de Spencer para saber que o altruísmo era imperativo em seu ideal da melhor conduta. Era evidente que Wolf Larsen havia peneirado os ensinamentos do grande filósofo, rejeitando e selecionando o que melhor servia a suas necessidades e desejos.
Topou com alguma outra coisa? — perguntei.
Suas sobrancelhas contraíram-se de leve, indicando o esforço mental de articular em palavras certos pensamentos que nunca tinham sido pronunciados. Meu espírito se encheu de júbilo. Eu estava vasculhando sua alma da mesma maneira que ele vasculhava a dos outros. Estava explorando um território jamais desbravado. Uma região estranha, terrivelmente estranha, começava a se descortinar diante dos meus olhos.
Tentando usar o mínimo de palavras — ele disse —, Spencer coloca mais ou menos assim a questão: em primeiro lugar, o homem deve agir em benefício próprio. Fazer isso é bom e moralmente correto. Em segundo, ele deve agir em benefício de sua prole. Em terceiro, deve agir em benefício de sua raça.
E a conduta mais elevada, a melhor e mais correta — me intrometi —, é baseada em atos que beneficiam ao mesmo tempo o homem, sua prole e sua raça.
Não concordo com essa parte — ele retrucou. — Não vejo nenhuma necessidade ou bom senso nisso. Cortei fora a raça e a prole. Não sacrificaria coisa alguma por elas. É apenas afetação e sentimentalismo, e você mesmo deve pensar assim, se for um homem que não crê na vida eterna. Se a imortalidade estivesse à minha espera, o altruísmo seria um investimento rentável. Eu poderia elevar minha alma a altitudes de toda espécie. Mas com nada de eterno à minha espera, a não ser a morte, e tendo recebido apenas um período muito breve para rastejar e me debater nesse fermento a que chamamos vida, seria imoral de minha parte realizar qualquer ato que implique sacrifício. Qualquer sacrifício que me impeça de rastejar e me debater é uma tolice e, mais que isso, uma depravação e uma injustiça contra mim mesmo. É preciso rastejar e se debater sempre que possível para extrair o máximo do fermento. E a imobilidade eterna que me aguarda também não será facilitada ou dificultada pelos sacrifícios e atos desinteressados de meus tempos de fermento fervilhante.
Você é, portanto, um individualista, um materialista e um hedonista.
Palavras fortes — ele sorriu. — Mas o que é um hedonista?
Forneci a definição e ele concordou com a cabeça.
Além disso — continuei —, podemos dizer que o senhor é daquele tipo de homem em quem não se pode confiar quando há interesses particulares em jogo?
Você está começando a entender — ele disse, se enchendo de ânimo.
O senhor é um homem totalmente desprovido daquilo que o mundo chama de moral?
Isso mesmo.
Um homem a se temer o tempo todo…
Exato.
Da mesma forma que tememos uma víbora, um tigre ou um tubarão?
Agora você me conhece — ele disse. — E me conhece como sou conhecido pela maioria. Os outros me chamam de lobo.
Você é uma espécie de monstro — ousei acrescentar —, um Calibã que meditou sobre Setebos e que age como você, nos momentos de ócio, movido por caprichos e veleidades.
Ele franziu o cenho diante da alusão, sem compreender, e logo me disse que não conhecia o poema.
Comecei a ler Browning faz pouco — confessou —, e é bem difícil. Não avancei muito, e já estou perdido o bastante no ponto em que cheguei.
Para não me estender muito, digo apenas que fui buscar o livro em seu camarote e li “Calibã” em voz alta. Ele ficou encantado. Podia entender muito bem aquele modo primitivo de argumentar e ver o mundo. Interrompeu a leitura repetidas vezes para tecer comentários e fazer críticas. Quando terminei, ele me pediu para repetir uma segunda e uma terceira vez. Mergulhamos em discussões: filosofia, ciência, evolução, religião. Ele traía as incorreções típicas do leitor autodidata, mas também, é forçoso reconhecer, a segurança e a objetividade das mentes primitivas. Seu ponto forte era a própria simplicidade de sua argumentação, e seu materialismo era muito mais convincente que o materialismo sutil e complexo de Charley Furuseth. Não que eu, um idealista confesso e, nas palavras de Furuseth, temperamental, fosse me deixar convencer. Mas Wolf Larsen investia contra as últimas fortalezas da minha fé com um vigor que, se não merecia uma concordância convicta, ao menos merecia todo o respeito.
O tempo passou. O jantar ficou pronto mas a mesa não estava posta. Fui ficando inquieto e ansioso, e quando Thomas Mugridge lançou um olhar reprovador pela escotilha, com um semblante irado e doentio, me preparei para cumprir minhas obrigações. Mas Wolf Larsen gritou para ele:
Mestre-Cuca, você vai ter que se virar sozinho esta noite. Hump está ocupado.
Mais uma vez, algo sem precedentes aconteceu. Naquela noite, sentei à mesa com o capitão e os caçadores enquanto Thomas Mugridge nos servia e depois lavava os pratos; um capricho, um humor de Calibã da parte de Wolf Larsen, e dava para saber que isso ia me custar caro mais tarde. Por ora, íamos conversando sem parar, para o desprazer dos caçadores, que não entendiam uma palavra sequer do que dizíamos.

Jack London, in O Lobo do Mar

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