Reparai
que o grilo voltou a cantar!
Charles
Dickens
Não
juro, mas penso que o camarada grilo, que mora no mais alto ponto da
pirâmide de tijolos, no canto de muro, não é bem brasileiro e sim
colono europeu que se nacionalizou, sem decreto e ato jurídico
espontâneo ou pleiteado.
No
tempo de Gabriel Soares de Sousa, o grilo vinha para as povoações
metido na palha cortada na mata e aproveitada para os casebres.
Andava aos bandos como gafanhotos o que não é uso e costume mantido
por ele nem por seus antepassados conhecidos nos almanaques de Gota
para leitura da família grilídea, espécie ortóptera e gênero
Grillus, o Gryllus domesticus, preto ou esverdeado, e o
Gryllus campestris, negro, grosso, encorpado e falastrão.
Roberto
Southey conta que, em 1540, já um castelhano vinha para o Brasil
trazendo um grilo como passarinho cantador. E este grilo cantou
adivinhando a proximidade de terra quando nenhum mareante dela
suspeitava. Southey confessa que o grilo salvou a todos, naus e
passageiros, incluindo o senhor Adelantado Álvaro Nuñez Cabeza de
Vaca, que ia para o Paraguai. Injustamente, não houve entrega de
mercê do rei Nosso Senhor ao ortóptero que defendera vidas e
fazenda de Sua Majestade.
Vistos
e relatados, deduzo que o nosso é grilo de longe e o grilo do Brasil
velho fundiu-se nos amores com os emigrantes, vindos nos navios, com
ou sem permissão legal.
Tanto
é assim, que no Brasil o grilo não goza de prestígio como na
Europa inteira, onde ninguém intencionalmente tem a coragem de
matá-lo porque dizem os ingleses que to kill a cricket is
unlucky, e a sua presença garante felicidade a uma casa, the
cricket brings good luck to the house e desaparecendo é uma
verdadeira desgraça; Its departure from the house is a sign of
coming misfortune. Tratando-se de depoimentos de súditos de Sua
Graciosa Majestade creio ser bastante para elucidar suficientemente a
questão.
No
Brasil o grilo não conseguiu manter esta fama e lá uma pessoa ou
outra é que o ama. Triste e sabida minoria.
Outro
ponto a desenvolver é a antipatia quase geral ao canto do grilo,
determinando buscas com intuitos fatais para a sua pessoa. Ninguém
admite que portugueses e espanhóis criem grilos em gaiolinhas de
dois e cinco andares, cada um com seu tenor, e exista quem as compre
para deleite confessado na audição noturna do quinteto ou trio
encantador.
Idem
os livros ensinam que ele come, roendo, brotos, sementes, folhas
verdes, raízes. Verdade é que come tudo quanto quer ou pode.
Onívoro é que ele é. Terá dois a três olhos de fingimento
porque, se lhe arrancam as longas antenas, cega de vez. Os três
pares de patas, desiguais e prestantes, conservam três articulações
cada, o derradeiro par, comprido em demasia relativamente ao vulto,
vale catapulta, atirando-o longe, com segurança e presteza. Se
minhas pernas tivessem a proporção da força propulsora das do
grilo podia eu visitar, de um único salto, o Cristo do Corcovado sem
pagar transporte. E também possuíssem meus dentes idêntica energia
à das mandíbulas do grilo, partiria facilmente, com uma dentada, um
coco, bebendo-lhe a doce água sem trabalho de abri-lo.
Também
a sua voz merece registro pela extensão poderosa. Tivesse ele o
nosso volume, e sua fala cantada na praça Mauá alcançaria Botafogo
com tranquilidade e largura. Talvez até fosse perto dos túneis,
ainda audível.
Há,
entretanto, faculdades negativas a mencionar. Comendo, como come,
cinco vezes o seu peso, daria para o homem que lhe tivesse o apetite
uma margem surpreendente de despesas alimentares. Multiplicar o nosso
peso por cinco (e é quanto deveríamos comer), imitando o camarada
grilo. O grilo, sendo providencialista, ignora admiravelmente o preço
de vida, olhando os lírios do campo e as aves do céu.
Participa
serenamente de hábitos crepusculares, dos noturnos, e quando Deus
permite, diurnos também, com naturalidade ou cinismo.
Pode
voar perfeitamente, mas prefere a série de saltos olímpicos,
desferidos inopinada e brilhantemente quando o julgam quase
prisioneiro. Assim muito o devem divertir as carreiras inócuas de
Licosa e as campanhas teimosas de Titius. Deixa-os aproximar como se
estivesse dormindo e desaparece quando a aranha ou o escorpião o
consideram pronto para o jantar infalível. Tem, fiado nas pernas
traseiras feitas de aço, atrevimentos humorísticos: cantar perto de
Sofia, de Raca, de Gô, e vê-los de bico e focinho apontados para o
ar vazio de qualquer grilo. Igualmente zomba do povo de Ata. Respeita
unicamente o xexéu, o canário da goiabeira, o bem-te-vi e mesmo –
desconfiar é juízo em potencial – a lavadeira, tão amável e
mansinha. Nunca se mostra aos seus bicos e mete-se, caladinho,
debaixo do tijolo residencial ou nalguma folha abrigadora e
insusceptível de denunciar-lhe o retiro provisório.
Durante
a noite canta desafogando as mágoas; sabe que Sofia está longe
(Sofia bica todas as coisas passíveis de ser alimentação) e o
filósofo Niti esvoaça lá pela estrada velha e mesmo não mora no
quintal. Xexéu, canário, bem-te-vi, lavandeira não funcionam
durante a noite, obedecendo às leis de sua legislação trabalhista.
O
grilo, sozinho, enche todo espaço com seu canto. O instrumento
musical consta, realmente, de um reco-reco. Os dois élitros,
membranas finas, resistentes, podem vibrar por fricção em todo seu
comprimento. Na base do élitro direito uma saliência irradia cinco
nervuras, duas para o alto, duas para baixo e a quinta quase
transversal. É o arco vibrador, eriçado com cento e cinquenta
dentes, saliências que vão atritar a faixa rugosa do élitro
esquerdo. As nervuras servem de tímpanos ressonadores, dois pela
fricção direta e dois pela trepidação comunicada. Assim o humilde
reco-reco amplia na majestade da noite quieta sua sonoridade
vibrante. A potência estridulante consiste na simplicidade engenhosa
destes elementos. Mas é a parte material. Falta o artista que é a
virtuosidade da transmissão, a força que emite e sabe variar as
intensidades interpretativas de sua intenção, lírica,
contemplativa, sexual, boêmia, vadia. Há gama exata para todos os
sentimentos de grilo que possui ressonador para divulgá-los.
As
duas antenas são muito mais delicadas do que a polpa de um dedo
feminino, capaz e perfeitamente idôneo na comunicação dos
pensamentos mais complexos ou simplesmente perigosos. As antenas do
grilo negro são menores que as do esverdeado. Basta que toquem para
que o grilo adquira uma compreensão admirável do conjunto.
Compreensão que não é a nossa mas a dele; por isso ficam ou fogem,
cantam ou silenciam na conformidade da sensação captada.
Só
cantam os grilos machos. As fêmeas ouvem, compreendem e respondem
material e satisfatoriamente segundo circunstâncias de tempo e
lugar. Não é, como dizem, privilégio dos grilos. Desde a velha
antiguidade sempre as serenatas e os cantos esponsalícios foram
privativos dos homens. Nunca ouvi falar em serenata feminina nem
declaração melódica entoada por uma voz de mulher. São elas, como
as senhoritas ou madame grilo, as inspiradoras, os motivos, as
finalidades dos cantos. Para que mais, Laura, Beatriz, Julieta?
Afirma-se
que a senhorita que o grilo corteja sabe responder ao seu apelo não
apenas objetiva mas sonoramente, com um breve trilo eloquente e
bastante comprometedor.
Discute-se
muito, e com proveito para a paz universal e estabilidade do juízo
humano, se os grilos realmente comunicam-se com o seu reco-reco
sentimental. O grilo campestre tem dois cantos, segundo os mestres,
e, segundo o meu ouvido, três.
O
primeiro é a cega-rega impertinente com que inebria seu devoto
auditório luso-castelhano. É uma série de notas curtas e claras,
como caídas às gotas, de um vaso bem alto. Intensidade e timbre são
imutáveis, e daí que signifiquem alguma coisa senão alegria
lúdica, bom humor, expansão comunicativa de uma boa digestão, de
um plano elaborado sem falhas para a futura aplicação. É idêntico
às cantigas no banheiro, aos solfejos quando voltamos para casa
eufóricos, ao indeciso cantarolar inconsciente com que acompanhamos
um trabalho maquinal, feito com carinho. O segundo é uma emissão de
notas de certa extensão, com intervalos que parecem regulares; notas
elevadas, metálicas, insistentes e capazes de despertar o Gigante de
Pedra.
Este
é o que julgo intencional e destinado a recadear para a noiva,
prometida pelo destino ou “conversada” de vez, como se diz em
Portugal. O terceiro é ainda em notas vivas e prolongadas, porém
com emissão de notas breves intervalares bem acentuadas.
Estes
cantos são perfeitamente diferenciados e reconhecíveis. As notas
breves do terceiro são ad libitum, em número desigual e de
valor sônico inapreciável.
A
intensidade do canto no grilo pode atingir a 20 mil vibrações por
segundo, quase o quádruplo do limite do som musical. É fácil
deduzir-se seu poder de penetração sonora, e decorrentemente
influência em sugestão, excitação e provocação nas fêmeas.
Há
na Europa (França, Itália etc.) grilos cantadores diurnos que não
emigraram para o Brasil. Os nossos são boêmios, preferindo as horas
crepusculares para as alegrias da execução musical. Nunca ouvi um
grilo cantando durante o dia. Sua cantiga participa, na classe do
violinos spalla, da grande orquestra sinfônica da noite tropical.
Uma
fácil imagem comparativa sobre a fina acuidade auditiva do grilo é
o ouvir como um grilo. Ele modifica os ritmos ou a intensidade do
canto desde que perceba uma aproximação. Em compensação não me
parece possuir visão suficiente. Com dissimulação e cuidado
prendemos um grilo. Impossível, em certas oportunidades, é
guiarmo-nos pelo seu canto. O grilo torna o canto difuso,
espalhado como por um processo ventriloquiano, ressonando em vários
ângulos quase ao mesmo tempo. Os dois élitros estão elevados para
a emissão das notas altas, numa mútua fricção incessante e ainda
a quinta nervura do élitro direito, a quase transversal, provoca
raspando a calosidade rugosa do élitro esquerdo outros valores
sonoros. Assim o canto dá a impressão de vir de todos os pontos, do
alto e de baixo, numa palpitação obstinada. Para as notas baixas, o
grilo desce o rebordo do élitro vibrante e toca no próprio ventre
que faz o papel de surdina pelo abaixamento do tom. É um pormenor
acústico que ele sabe empregar com efeito seguro.
Ao
lado do “ouvir como um grilo” sabe-se que a cigarra é surda,
totalmente, ou “dura de ouças”. Vê, entretanto, pelos dois
grandes olhos facetados e mais os três stematas que lhe servem de
telescópios, ou melhor, periscópios, desvendando o que se passa por
cima da cabeça do inseto. Mas, ouvir, não parece que ouça. A
verificação de Fabre está sem contestação há mais de setenta
anos.
Tem,
pois, o camarada grilo, estes elementos superiores à cigarra
clássica, amada pelos poetas grandes, desde Anacreonte a Olegário
Mariano. Ouve excelentemente e pode modificar sua técnica de
interpretação rítmica. Pode acentuar o canto porque o ouve e não
tem a possível cofose da cigarra.
Há,
para ele, tempo de amor e renuncia a sua gostosa solidão para
procurar a fêmea. O caminho para encontrá-la é pelo faro, seguindo
um aroma que a noiva segrega. O órgão olfativo do grilo é a
antena. Cortando-a, deixa de receber as emanações animativas e
excitadoras e desinteressa-se inteiramente pelo outro sexo. Fica
casto como o cavaleiro do Santo Graal.
O
ato amoroso realiza-o cavalgando a esposa que pode partir-lhe uma
perna por ânsia sexual ou ciúme prévio de saber que não
encontrará por muito tempo o esposo depois daquela hora embriagante.
Hora ou mais, ficam juntos, e, às vezes, saltam jungidos,
inseparáveis, parecendo um grilo duplo, assombrador da espécie.
O
namoro é sempre precedido pela cantiga interminável que a fêmea
responde ou não, sincronizada na recíproca. É, até prova em
contrário, a vez única em que se permite cantar, aceitando o
convite matrimonial na igreja verde e pagã do quintal. Quando a
fêmea acorre ao chamamento, as notas ficam mais doces e o feliz
escolhido presta a homenagem inicial à noiva passando-lhe levemente
pelo corpo as antenas trêmulas.
Ele,
o infiel, momentaneamente saciado, volta a seduzir outra romântica e
repete a proeza até que cessa a febre da reprodução. A desposada
larga uma série de grilos que nascem andando, comendo e quase
solicitando companheiras no habitual apelo do reco-reco dorsal. O pai
ignora-lhes ações e vida e compete ao devotamento maternal o
cuidado clássico durante uns vinte dias.
Durante
a fase de união saltam juntos por algum tempo mas é raro o encontro
em parelha. Mas fácil e comum é deparar-se com dois grilos do mesmo
sexo ocupados no pecado nefando, previsto e condenado pelos
monitórios do Santo Ofício. É quase uma sentença passada em
julgado o homossexualismo dos grilos. Não se pode indicar como
elemento constante em baixa, média e alta civilização por ser
useiro e vezeiro nos três estágios.
O
grilo ostenta o luxo de ter fósseis no xistos de Solenhofen e no
wealdiano, passagem entre os sistemas jurássico e cretáceo.
Significa sua contemporaneidade com os mimosos Iguanodontes e
Plesiossauros, antes que, explica o povo, morressem no dilúvio
porque não foi possível empurrá-los para dentro da Arca de Noé.
Passada
a tempestade sexual, o grilo retoma sua vida retirada, no isolamento,
boêmia e caçadas. Nunca aparece acompanhado nem mesmo por algum
amigo, como possuíam os imperadores romanos. Ao anoitecer,
exercita-se para sua caçada que é busca e identificação das
espécies vegetais preferidas. Quando coincide a escolha do grilo com
a utilidade para o homem nasce-lhe o título de invasor maléfico e
prejudicial.
O
poder de suas mandíbulas arma-o de superioridade para ingerir os
alimentos mais resistentes e diversos. O brando caule de uma gramínea
vale, em tempo, tanto quanto a semente coriácea que decidiu provar.
Rói igualmente madeira úmida ou semiapodrecida, tecidos,
substâncias doces.
Um
meu sagui (Hapalídeo) gostava imensamente de açúcar e
costumava vir furtá-lo no açucareiro, retirando a tampa com carinha
gaiata e desconfiada, metendo a mão e fugindo com o possível saque.
Depois do açúcar o seu prato favorito era o grilo. Acompanhava
minha mãe ao jardim, examinando cuidadosamente as roseiras e
agarrando os grilos dos quais saboreava primeiro a cabeça e depois
as patas, como se fossem caranguejos. De presente ou rapinagem havia
açúcar espalhado ao redor da casinha do sagui e muitas vezes este
apanhava grilos que ali vinham roer as pedrinhas.
Tanto
o doméstico como o do campo, os grilos são excessivamente gulosos
pelas flores, roendo sistematicamente as corolas semiabertas, as mais
lindas porque eram as mais delicadas e substanciais, indignando minha
mãe, jardineira devotada. O sagui exercia, em favor do seu agrado,
uma missão simpática no castigo severo aos grilídeos.
Notável
é a sua persistência como cantor às vezes dispensável e
inoportuno. Sem explicação para chamamento da companheira
ocasional, alheio a qualquer utilidade imediata, antes perigosa pela
localização de sua pessoa na sonora coordenada geográfica,
sozinho, dispensando alimentação, executa extenso programa com seu
estridente reco-reco, variantes dos três números componentes do
repertório. Horas e horas, embevecido, as asas frementes no atrito
que o embriaga, entusiasta da própria execução inacabável e para
os demais monótona, atendendo inexistentes pedidos de repetição,
vive sua música como cercado de um halo de intensa vibração
sonora, executor e ouvinte único da maravilhosa serenata sem
assistência. Como o senso do utilitarismo é básico nos animais,
ninguém atina com a vocação cantora inteiramente desinteressada e
gratuita. Impressionante é vê-lo cantar, imóvel no seu recanto,
extasiado pela magia rascante do atrito promovido a melodia. Os
entomologistas admitem a existência deste canto sem aplicação, sem
motivo, sem direção no espaço. Certo haverá um impulso
incomprimível determinante desta atividade incompreendida pelos
pesquisadores. É necessário crer que o camarada grilo esteja
cumprindo uma missão obscura para os observadores mas indispensável
e lógica para ele mesmo. Igualmente rãs e cigarras cantam sem plano
útil e sem razão plausível. A interpretação que lhe dão é uma
justificativa baseada no raciocínio individual. As coisas “devem”
ser o que pensamos que sejam porque não sabemos como realmente
“são”.
Este
canto prolongado, puro, espontâneo, sacudido aos ventos tristes da
noite, numa oblação rústica, oferenda bárbara, homenagem
selvagem, não pode significar unicamente uma forma de expressão
mecânica, desacompanhada de intenção, de forças representativas,
mas tradutor de um movimento interior e misterioso, provocando sua
expansão pela forma divulgadora daquela sonoridade primitiva e
ritmada. Mais impressionante ainda porque o canto não está
condicionado ao ciclo da excitação comunicativa do sexo. Não tem
endereço à fêmea distante cujo perfume viajasse para suas antenas
sensitivas. O sabido alarde de canto, bailado, desfile e luta,
rejuvenescimento do pelo, couro, plumagem, para seduzir, enfeitiçar
e fixar o pronunciamento da fêmea em seu favor, e, no plano
ambivalente, afastar e amedrontar os concorrentes, não tem, no caso
presente, a mais remota influência. O grilo já fecundou a esposa e
a descendência está garantida. Retoma a rotina que não é silêncio
e vida vegetativa de comer e defecar mas a energia assume a grandeza
palpitante e nova daquele canto, obstinado e fiel, nas trevas do
escurão tropical.
There
are more things in heaven and earth,
Than
are dreamt of in your philosophy.
Natural
e humanamente muito Horácio não concorda.
O
tenor gosta de lutar. Maxilas fortes, palpos cerdosos, as antenas
adejantes, asas posteriores dobradas na posição longitudinal, os
olhos grandes, escuros e baços, numa expressão sinistra de
inutilidade, não se desvia de um encontro pressagiando o combate com
armas iguais.
Não
se medem num corpo a corpo em que as mandíbulas dão medida exata da
resistência. Iniciam um jogo de empurra, dando cabeçadas, marradas,
empuxões mútuos, cabeça a cabeça, como dois jovens touros
joviais. Curioso vê-los baixar a cabeça e pular um sobre o outro
num impulso das patas traseiras de prodigiosa propulsão. Depois é
que o duelo se aquece e as mandíbulas procuram dar o corte feroz e
definitivo, abreviando a pendência. O vencido é pasto do vitorioso.
Lei comum...
A
noite desceu e as estrelas clareiam o deserto do céu. Todos os
animais do canto de muro, calçada, cozinha e quintal, apareceram
para a revista ritual na luta noturna. Os morcegos passaram chiando
nas asas de seda transparente. Gô largou um rosnado anunciador de
caça à vista. O povo de Musi espalhou-se como sombras vivas e
ágeis. Titius deixou o solar e Licosa transpôs o rebordo do tanque,
seguindo presa invisível. O zumbido dos insetos venceu a treva fina
e tépida. Niti já deve estar na estrada velha. Sofia abriu o voo
silencioso na pista do sul. Fu largou o bufado resmungo saudador. A
figura esguia de Raca coleou, deslizando.
No
cimo informe dos tijolos subiram, claras, vivas, rápidas, três
notas como flechas de cristal varando a noite serena.
O
grilo começou a cantar…
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
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