Estatuto
dos Funcionários, artigo 240: “O dia 28 de outubro será
consagrado ao Servidor Público” (com maiúsculas).
Então
é feriado, raciocina o escriturário, que, justamente, tem um
“programa” na pauta para essas emergências. Não, responde-lhe o
governo, que tem o programa de trabalhar; é consagrado, mas não é
feriado.
É,
não é, e o dia se passou na dureza, sem ponto facultativo. Saberão
os groenlandeses o que seja ponto facultativo? (Os brasileiros
sabem.) É descanso obrigatório, no duro. João Brandão, o de alma
virginal, não entendia assim, e lá um dia em que o Departamento
Meteorológico anunciava: “céu azul, praia, ponto facultativo”,
não lhe apetecendo a casa nem as atividades lúdicas, deliberou usar
de sua “faculdade” de assinar o ponto no Instituto Nacional da
Goiaba, que, como é do domínio público, estuda as causas da
inexistência dessa matéria-prima na composição das goiabadas.
Hoje
deve haver menos gente por lá, conjeturou; ótimo, porque assim
trabalho à vontade. Nossas repartições atingiram tal grau de
dinamismo e fragor, que chega a ser desejável o não comparecimento
de noventa por cento dos funcionários, para que os restantes possam,
na calma, produzir um bocadinho. E o inocente João via no ponto
facultativo essa virtude de afastar os menos diligentes, ou os mais
futebolísticos, que cediam lugar à turma dos “caxias”.
Encontrou
cerradas as grandes portas de bronze, ouro e pórfiro, e nenhum sinal
de vida nos arredores. Nenhum — a não ser aquele gato que se
lambia à sombra de um tinhorão. Era, pela naturalidade da pose, o
dono do jardim que orna a fachada do Instituto, mas — sentia-se
pela ágata dos olhos — não possuía as chaves do prédio.
João
Brandão tentou forçar as portas, mas as portas mantiveram-se surdas
e nada facultativas. Correu a telefonar de uma confeitaria para a
residência do chefe, mas o chefe pescava em Mangaratiba, jogava
pingue-pongue em Correias, estudava holandês com uma nativa, na
Barra da Tijuca; o certo é que o telefone não respondeu. João
decidiu-se a penetrar no edifício galgando-lhe a fachada e
utilizando a vidraça que os serventes sempre deixam aberta, na
previsão de casos como esse, talvez. E começava a fazê-lo, com a
teimosia calma dos Brandões, quando um vigia brotou da grama e
puxou-o pela perna.
— Desce
daí, moço. Então não está vendo que é dia de descansar?
— Perdão,
é dia em que se pode ou não descansar, e eu estou com o expediente
atrasado.
— Desce
— repetiu o outro, com tédio. — Olha que te encanam se você
começa a virar macaco pela parede acima.
— Mas,
e o senhor por que então está vigiando, se é dia de descanso?
— Estou
aqui porque a patroa me escaramuçou, dizendo que não quer vagabundo
em casa. Não tenho para onde ir, tá bem?
João
Brandão aquiesceu, porque o outro, pelo tom de voz, parecia disposto
a tudo, inclusive a trabalhar de braço, a fim de impedir que ele
trabalhasse de pena. Era como se o vigia lhe dissesse: “Veja bem,
está estragando meu dia. Então não sabe o que quer dizer
facultativo?”. João pensava saber, mas nesse momento teve a
intuição de que o verdadeiro sentido das palavras não está no
dicionário; está na vida, no uso que delas fazemos. Pensou na
Constituição e nos milhares de leis que declaram obrigatórias
milhares de coisas, e essas coisas, na prática, são facultativas ou
inexistentes. Retirou-se, digno, e foi decifrar palavras cruzadas.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
Nenhum comentário:
Postar um comentário