sábado, 13 de agosto de 2022

Cinzas do Norte | 2



No fundo da sala, a cadeira de Mundo vazia. Não fez os exames finais, perdeu o ano letivo e foi estudar no Colégio Brasileiro, onde podia desenhar à vontade, acordar tarde, entrar na aula no meio da manhã e cabular sem ser caceteado. Guardei o caderno de desenhos que ele, assustado, jogara no chão antes de mergulhar no pequeno lago da praça. Depois nos encontramos na porta do empório Casa Africana. Ele andava devagar, pisando pesado, o casaco da farda verde-amarela no ombro; tocou meu peito com o indicador, sorrindo com ironia: “O nó da gravata está frouxo. E o emblema do imperador? Sumiu?”.
Quis lhe devolver a sequência dos Corpos caídos. Recusou, eu podia ficar com os desenhos; tirou revistas de uma pasta de couro, as folheou: caricaturas de Daumier, não eram geniais? “Estes são brasileiros, Guignard, Volpi, Portinari. Estes aqui são franceses... e a revista é sobre arte africana.” Era a coleção Gênios da Pintura.
Falava com entusiasmo de artistas famosos e de anônimos, e parecia embriagado pelas imagens. Começou a ler trechos de um livro, sem se incomodar com o sol abrasador do meio-dia; lia e me mostrava a foto de uma pintura ou escultura. Levou um susto com a buzina do DKW. Pôs os livros e revistas na pasta e se dirigiu ao chofer: “Que foi, Macau?”.
Vamos almoçar?”, disse o homem, a cabeça fora da janela.
Tentei ver o rosto do pai no banco traseiro, mas ele estava voltado para o outro lado. Mundo se despediu e entrou na Casa Africana. Esperei o carro partir e atravessei a praça em direção à Vila da Ópera. Avistei cuecas velhas estendidas numa corda trançada no fim da servidão. Tio Ran! Nem isso ele lava! E exige tudo da irmã, não lhe dá trégua. Recolhi a roupa dele, senti cheiro de limão, alho e pimenta, e vi tia Ramira ticando peixe na cozinha. Tirei o cinturão, e já desatava o nó da gravata quando ouvi uns latidos.
É assim que Fogo dá as boas-vindas”, disse Jano.
Não conseguiu convencer Mundo a almoçar em sua casa e veio direto para cá, pensei, observando-o. Era a segunda vez que o via de muito perto, os olhos miúdos acinzentados e a testa enrugada como se estivesse sempre franzida. Em poucos anos a doença o envelhecera, mas a pose era a mesma. A camisa de linho engomada, azul com botões de madrepérola; a calça branca, larga. O que eu lembrava do primeiro encontro: o cinturão, grosso, cinza-escuro, quase da cor dos olhos. A voz, meio rouca, parecia mais grave: “Cadê tua tia?”.
Ela apareceu, e sua expressão foi de surpresa e vergonha. Cheirava a peixe cru, e, antes de cumprimentar o visitante, limpou as mãos no avental. “O senhor por aqui?”
Faz tempo que Fogo farejou gente nova na vizinhança.”
Entreolharam-se por algum tempo, até ela abrir os braços e erguer a cabeça: se desculpou pela desordem da sala, pelas manchas de mofo nos tabiques, as ripas do forro empenadas.
Mesmo assim, a senhora sabe, é uma grande vantagem morar no centro. Lá naquele matagal vocês estavam longe de tudo.”
Fogo abocanhou um vestido vermelho que ela havia costurado, o arrastou pela saleta, rodeando o dono. Ramira não reagiu à insolência do animal — tentou acariciá-lo; ele largou a peça de roupa, rosnou e foi farejar cheiros antigos, lá do Morro da Catita.
Meu irmão vai pintar as paredes e arrumar a casa. Quer dizer, ele diz isso desde que a gente se mudou para cá. Quando ficar pronta, o senhor vem tomar um café”, disse ela, servil e emocionada.
Ele está morando aqui ou ainda vive como um cigano?”, Jano perguntou, contrariado.
Um cigano”, repetiu Ramira. “Aparece de vez em quando, depois some.”
Jano bateu no meu ombro esquerdo, pôs o dedo nas três divisas verdes costuradas na manga da camisa: “Teu sobrinho promete coisa melhor... bem melhor que o tio e que meu filho, que até agora não promete nada. Vocês foram colegas de sala no Pedro II, não é? Mundo não fez os exames finais do segundo ano. E, pelo jeito, vai levar bomba de novo no Colégio Brasileiro. Eu soube que faltava às aulas de educação física. A mãe dele se orgulha disso, pensa que Mundo é muito delicado para praticar esporte. Meu chofer viu vocês dois lá perto do Brasileiro. Qual era a conversa?”.
Arte”, eu disse. “Ele só fala nisso. As pinturas...”
Por isso não promete nada”, Jano interrompeu. “Arte... quem ele pensa que é?”
Despediu-se de Ramira, me olhou de esguelha e assobiou para o cachorro: os dois andaram lado a lado até a porta; Fogo deu um salto e saiu trotando pela servidão, as manchas amarelas brilhando ao sol, e o eco do grito rouco: “Vai, salta, corre”. Minha tia lamentou: era uma vergonha receber um homem tão fino naquela bagunça, as promessas de Ranulfo não valiam nada.
Nossa casa na Vila da Ópera nunca ficou em ordem: o trabalho da costureira multiplicava panos, retalhos e moldes, e, vez ou outra, tio Ran levava para lá Corel e Chiquilito, dois amigos que começavam a fumar e beber antes da caldeirada de sábado; acabavam dormindo no assoalho, perto da porta aberta para a servidão, pois Ramira os proibia de pisar na saleta de costura; na manhã de domingo acordávamos com os discursos de um e outro, que defendiam ideias amalucadas sobre uma revolução no Brasil. Os assuntos eram variados e cruzados: reforma agrária, pesca de tambaqui, festa a bordo de um navio, o mais novo prostíbulo de Manaus, o Varandas da Eva. Brindavam ao Varandas, e Corel, com a bagana apagada na boca, gritava, animado: “O Rosa de Maio ainda é o melhor!”. Tinham esquecido a revolução e a reforma agrária, e recordavam as noites da juventude no Rosa de Maio, Lá Hoje, Shangrilá. Iam embora quando nem mesmo eles se reconheciam, deixando no chão um monte de pontas de cigarro e palitos de fósforos, copos com bebidas misturadas e um azedume que impregnava a saleta até a faxina seguinte. O resto do domingo se arrastava, a casa ficava tão enfadonha que eu e minha tia íamos passear no balneário Quinze de Novembro. Ela aturava a esbórnia porque o irmão, desde a morte do meu pai, se tornara o “homem da casa”.
No início de 1961, quando nos mudamos para o centro, o Morro da Catita ainda era formado de chácaras e casinhas esparsas no meio de uma mata que começava em São Jorge e se estendia até o limite de uma vasta área militar. Uma picada estreita ligava o Castanhal do Morro à estrada da Ponta Negra, em frente ao quartel do Batalhão de Infantaria da Selva. Quando tia Ramira precisava comprar tecido ou entregar uma costura a uma cliente no centro, andava pela picada até a entrada do quartel e esperava carona de um jipe ou caminhão militar. O trajeto demorava horas, mas ela se recusava a ir de canoa: não sabia nadar, tinha medo de morrer afogada no igarapé dos Cornos. Reclamava também do isolamento, da falta de luz elétrica, dos bichos que rondavam a casa, dos ouriços que caíam das castanheiras e quebravam com estalos assustadores as telhas de barro. Minha tia queria derrubar as árvores, o irmão não deixava: davam sombra e frutos e atraíam os animais que ele caçava. Ranulfo armava uma rede nos troncos, pendurava uma lamparina num galho e ficava lendo durante a noite; quando não chovia, amanhecia ali mesmo, ao relento, o livro aberto no peito nu, as folhas secas cobrindo parte do corpo. Os livros de tio Ran vinham de muito longe, do Sul, e ficavam empilhados no quartinho dele, lá nos fundos da chácara, nossa morada. Ele lia para mim um parágrafo ou uma frase longa, e se entusiasmava, esquecia que eu ainda era criança e não podia entender histórias complicadas, escritas com palavras difíceis; mesmo assim, continuava a ler em voz alta, e só parava para dar tapas nos braços e nas pernas, e então eu via o sangue dos mosquitos na pele morena. Lembro que, em plena tarde de um dia de semana, Ramira o encontrou lendo e fazendo anotações a lápis numa tira de papel de seda branco. Perguntou por que ele lia e escrevia em vez de ir atrás de trabalho.
Estou trabalhando, mana” disse tio Ran. “Trabalho com a imaginação dos outros e com a minha.”
Ela estranhou a frase, que algum tempo depois eu entenderia como uma das definições de literatura. E quando ele me dava uns livrinhos com desenhos, tia Ramira provocava: “Foram roubados de uma livraria ou comprados com o dinheiro daquela mulher?”.
Cresci ouvindo meus tios brigarem por causa de Alícia, que tinha morado num bairro vizinho, o Jardim dos Bares. Uma história anterior ao meu nascimento que, no entanto, ainda era comentada no Morro da Catita e parecia não ter fim. Certa vez, eu e minha tia avistamos Alícia e Jano na rua da Instalação, saindo da Casa Vinte e Dois Paulista. Vinham abraçados e sorridentes em direção a nós; tia Ramira diminuiu o passo, ficou nervosa, me puxou pelo braço, quis voltar. Paramos numa atitude ridícula, e os dois se aproximaram, ela mais alta e mais altiva que ele, mas só Jano cumprimentou Ramira, com um sorriso, erguendo a mão. Vi o rosto maquiado de Alícia, senti sua mão espanar meu cabelo, os dedos perfumados roçarem meus lábios, e ouvi a voz dizer: “Como está grandinho, é a cara da mãe”. Inclinou-se, me deu um beijo no canto da boca e se aprumou, repetindo: “A cara da Raimunda”.
Eles se foram, e minha tia murmurou: “Que mulher insuportável. E como sabe fingir que gosta dele”.
Quando Ramira anunciou de surpresa a compra de uma casinha na Vila da Ópera, o irmão reagiu como uma criança enfezada: “Queres morar perto do Jano, não é?”.
Eu e o meu sobrinho vamos sair daqui”, disse ela, com calma. “Minhas clientes nem conseguem entrar no Morro. Lá no centro a clientela só vai aumentar.”
Ele não se mexeu, pensando que era apenas uma ameaça. Mas, no dia em que Ramira fechou a máquina de costura e guardou moldes, revistas, carretéis, agulhas e panos, Ranulfo ficou olhando a arrumação com ar de derrota. Então ela me disse, alto: “Teu tio largou um ótimo emprego na Vila Amazônia... jogou o destino no lixo. No ano passado ainda brincou de locutor de rádio. Dois fracassos. Se ele quiser ficar aqui, pode arranjar um trabalho fixo e pagar o aluguel desta tapera”.
Ele mesmo fez a mudança para a Vila da Ópera: encaixotou a máquina de costura, cobriu com panos surrados os móveis, a geladeira a querosene e o fogão, e transportou a tralha toda na caminhonete velha do Corel. Na carroceria, vi minha tia agarrada à máquina, o rosto aflito ao lado da cara zombeteira do irmão. Corel e Ranulfo carregaram tudo para dentro da nova casa, puseram cada objeto no lugar, e todos ficamos calados.
As cinco casinhas de madeira da Vila da Ópera, enfileiradas, se intrometiam como uma cicatriz num quarteirão de sobrados austeros; o acesso era por uma servidão de uns três metros de largura, e, à direita, um portão de ferro vedava a entrada de uma mansão moderna, cujo quintal cercava o pequeno pátio da nossa casa. A Vila fora erguida por operários que, em 1929, haviam trabalhado na construção de dois casarões geminados, e acabaram tomando posse do que tinha sido um canteiro de obras.
Tio Ran olhou os tabiques caiados com manchas de umidade, circulou teatralmente pela sala minúscula e resmungou: “Não vou morar aqui. Onde estão as castanheiras pra gente armar a rede? É muito apertado, mana. É triste demais”.
Onde vais dormir?”
Ele cutucou o amigo e perguntou: “Onde, Corel? Na carroceria da tua caminhonete? E onde vou guardar meus livros?”.
Os dois começaram a rir, e logo tia Ramira entendeu a farsa. “Tu podes dormir no quarto do Lavo, na cozinha ou no pátio. Só não podes entrar no meu quarto e na saleta de costura.”
Ele também entendeu.
Ranulfo fazia os trabalhos pesados e resolvia problemas com que a irmã detestava lidar. Em troca, podia dormir no chão da sala depois das noitadas extravagantes; passava dias sem aparecer, de repente chegava abatido, sem um centavo no bolso, e filava a boia que às vezes ele mesmo trouxera em estado bruto: queixadas, pacas e patos-do-mato, amarrados na carroceria da caminhonete de Corel. Tio Ran matava os animais com golpes de terçado e distribuía uns pedaços aos vizinhos. Comida para duas semanas. Arranjava bebida no bar do Sujo, onde pendurava a conta durante um mês e então mandava cobrar em casa. Recebíamos uma tira de papel de embrulho engordurado com a assinatura dele embaixo do total da dívida.
Muita gente em Manaus ainda lembrava das histórias e conversas de suas transmissões radiofônicas; quando criança, eu ficava acordado até meia-noite para escutá-las; tia Ramira fingia esconder o radinho de pilha, temendo a voz de demônio do irmão, mas ouvia tudo: o pessoal de uma chácara vizinha aumentava o volume de um aparelho poderoso. Eu tinha a impressão de que os moradores do Morro da Catita, do Jardim dos Bares, de Santo Antônio, São Jorge e da Glória se divertiam e choravam com o radialista falastrão. Lembro do Natal triste de 1960, quando ele chegou calado e, em vez de entrar em casa, trepou numa castanheira e ficou empoleirado lá em cima, fumando tabaco de corda e olhando para a ribanceira e para o igarapé dos Cornos. Fora demitido da rádio Rio Mar: os padres que dirigiam a estação julgaram que seu programa semanal Meia-Noite Nós Dois se tornara insensato e obsceno demais. Mas tio Ran se orgulhava do único trabalho que lhe dera prazer e o fizera conhecido na capital e no interior do Amazonas.
De qualquer forma”, disse ele anos mais tarde, “depois do golpe militar iam acabar me demitindo: os censores dessa panaceia não iam aturar meus comentários políticos, muito menos minhas histórias de amor no meio da madrugada.”

Milton Hatoum, in Cinzas do Norte

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