terça-feira, 9 de agosto de 2022

Capítulo l (Novamente)

Razão tinha eu de suspeitar. Dissipou-se afinal a cortina de fumaça que encobria em parte o mistério deste hotel internacional em que me jogaram há mais de vinte anos. Não estamos num hotel, e sim num tenebroso campo de concentração, com tortura e tudo, a julgar pela que me infligiram ontem.
Levaram-me, logo pela manhã, a uma câmara de gás onde havia uma cadeira elétrica (que logo constatei ser uma cama e não uma cadeira) e na qual sem dúvida pretendiam extorquir-me algum segredo de Estado, de que sou portador mas que sinceramente ignoro qual seja. Fizeram-me deitar nessa pseudocama, inteiramente nu e amarrado — com toda uma equipe de guardas ao lado, disfarçados de enfermeiros — e puseram-me na cabeça uma espécie de capacete de aço (um pouco mais confortável, sem dúvida) do qual saía ostensivamente um par de fios elétricos.
Não me deram chance nenhuma de defesa, pois nada me perguntaram nem responderam a nenhuma das minhas perguntas, como se o meu caso já fosse um caso perdido e que tribunal nenhum pudesse mais apreciar. Atado como estava, e amordaçado como um cão raivoso, vi perfeitamente quando ligaram uma chave elétrica que se achava bem junto à porta de entrada — e senti a morte despedaçar-se de encontro à minha cabeça, como se um bólide houvesse caído do espaço e fosse escolher justamente o meu crânio para campo de pouso. Não direi que gritei, mesmo porque não me sobrou tempo nem lucidez para isso — mas o que afirmo é que me transformei instantaneamente num cadáver e me senti mais frio do que um cubo de gelo jogado na gaveta de uma morgue. Vez por outra um pálido reflexo de consciência assomava à minha cabeça imobilizada, e eu divisava o teto a uma distância infinita e ouvia disparatadas as vozes de meus algozes, como num quadro surrealista ou numa cena de grand guignol, num segundo, porém, tudo se apagava de novo e eu voltava à minha condição de cadáver congelado, ao choque brutal de uma bomba que me estourava os miolos.
Quando voltei a mim, após a ressurreição da carne, eu me encontrava deitado e imóvel no meio da minha cama, sem outro pensamento que não fosse o de respirar profundamente e de escutar bater o meu próprio coração, tão espantosas me pareciam essas coisas tão simples, mas que são em verdade espantosas e dignas da maior consideração.
Agora pergunto: que querem de mim, realmente, esses senhores e essas senhoras que até ontem eu tomava por gerentes e criados de um hotel de luxo, embora estranhando sempre o regime severo de vigilância a que estava, como todos os demais hóspedes, sujeito dia e noite, e até mesmo durante o sono? Que segredo importantíssimo é esse que querem arrancar-me à força, lançando mão inclusive das mais terríveis ameaças, como essa extrema da cadeira elétrica, sem julgamento prévio e sem conforto ao menos de um confessor?
Que eu me lembre, nada fiz ultimamente que merecesse um castigo tão capital, nem trago também comigo um segredo que não possa ser revelado de portas abertas e a plenos pulmões, ou que me torne pelo menos suspeito de lesa-majestade, ou lesa-pátria, ou mesmo lesa-santidade, para só citar os três crimes mais graves que no momento me ocorrem.
Estaremos porventura numa nova Inquisição, ou será a mesma antiga que nunca deixou de existir e que só agora, pela primeira vez, se fez sentir em toda a sua plenitude sobre meu peito cansado e meu olhar triste, por motivos que desconheço e que aos outros parecerão óbvios? (Serei tão herege assim, eu que nem sequer nunca pensei em criar um deus à minha imagem e semelhança e em adorá-lo como se adora um senhor todo-poderoso, com subserviente hipocrisia?) Ou será que efetivamente sou um agente secreto de qualquer potência estrangeira — tão secreto que eu mesmo não sei — e, dotado de dupla personalidade, esteja no momento posando de santo, até que eles provem o contrário e me lancem com a minha verdade em pleno rosto? Tudo é possível neste mundo de infinitas surpresas, e o que me resta, como a eles, é apenas aguardar que os acontecimentos se sucedam por si mesmos e que eu venha a revelar um dia, por bem ou por mal, meu terrível segredo, ou — o que será mais triste minha desesperada inocência.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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