Razão
tinha eu de suspeitar. Dissipou-se afinal a cortina de fumaça que
encobria em parte o mistério deste hotel internacional em que me
jogaram há mais de vinte anos. Não estamos num hotel, e sim num
tenebroso campo de concentração, com tortura e tudo, a julgar pela
que me infligiram ontem.
Levaram-me,
logo pela manhã, a uma câmara de gás onde havia uma cadeira
elétrica (que logo constatei ser uma cama e não uma cadeira) e na
qual sem dúvida pretendiam extorquir-me algum segredo de Estado, de
que sou portador mas que sinceramente ignoro qual seja. Fizeram-me
deitar nessa pseudocama, inteiramente nu e amarrado — com toda uma
equipe de guardas ao lado, disfarçados de enfermeiros — e
puseram-me na cabeça uma espécie de capacete de aço (um pouco mais
confortável, sem dúvida) do qual saía ostensivamente um par de
fios elétricos.
Não
me deram chance nenhuma de defesa, pois nada me perguntaram nem
responderam a nenhuma das minhas perguntas, como se o meu caso já
fosse um caso perdido e que tribunal nenhum pudesse mais apreciar.
Atado como estava, e amordaçado como um cão raivoso, vi
perfeitamente quando ligaram uma chave elétrica que se achava bem
junto à porta de entrada — e senti a morte despedaçar-se de
encontro à minha cabeça, como se um bólide houvesse caído do
espaço e fosse escolher justamente o meu crânio para campo de
pouso. Não direi que gritei, mesmo porque não me sobrou tempo nem
lucidez para isso — mas o que afirmo é que me transformei
instantaneamente num cadáver e me senti mais frio do que um cubo de
gelo jogado na gaveta de uma morgue. Vez por outra um pálido reflexo
de consciência assomava à minha cabeça imobilizada, e eu divisava
o teto a uma distância infinita e ouvia disparatadas as vozes de
meus algozes, como num quadro surrealista ou numa cena de grand
guignol, num segundo, porém, tudo se apagava de novo e eu voltava à
minha condição de cadáver congelado, ao choque brutal de uma bomba
que me estourava os miolos.
Quando
voltei a mim, após a ressurreição da carne, eu me encontrava
deitado e imóvel no meio da minha cama, sem outro pensamento que não
fosse o de respirar profundamente e de escutar bater o meu próprio
coração, tão espantosas me pareciam essas coisas tão simples, mas
que são em verdade espantosas e dignas da maior consideração.
Agora
pergunto: que querem de mim, realmente, esses senhores e essas
senhoras que até ontem eu tomava por gerentes e criados de um hotel
de luxo, embora estranhando sempre o regime severo de vigilância a
que estava, como todos os demais hóspedes, sujeito dia e noite, e
até mesmo durante o sono? Que segredo importantíssimo é esse que
querem arrancar-me à força, lançando mão inclusive das mais
terríveis ameaças, como essa extrema da cadeira elétrica, sem
julgamento prévio e sem conforto ao menos de um confessor?
Que
eu me lembre, nada fiz ultimamente que merecesse um castigo tão
capital, nem trago também comigo um segredo que não possa ser
revelado de portas abertas e a plenos pulmões, ou que me torne pelo
menos suspeito de lesa-majestade, ou lesa-pátria, ou mesmo
lesa-santidade, para só citar os três crimes mais graves que no
momento me ocorrem.
Estaremos
porventura numa nova Inquisição, ou será a mesma antiga que nunca
deixou de existir e que só agora, pela primeira vez, se fez sentir
em toda a sua plenitude sobre meu peito cansado e meu olhar triste,
por motivos que desconheço e que aos outros parecerão óbvios?
(Serei tão herege assim, eu que nem sequer nunca pensei em criar um
deus à minha imagem e semelhança e em adorá-lo como se adora um
senhor todo-poderoso, com subserviente hipocrisia?) Ou será que
efetivamente sou um agente secreto de qualquer potência estrangeira
— tão secreto que eu mesmo não sei — e, dotado de dupla
personalidade, esteja no momento posando de santo, até que eles
provem o contrário e me lancem com a minha verdade em pleno rosto?
Tudo é possível neste mundo de infinitas surpresas, e o que me
resta, como a eles, é apenas aguardar que os acontecimentos se
sucedam por si mesmos e que eu venha a revelar um dia, por bem ou por
mal, meu terrível segredo, ou — o que será mais triste minha
desesperada inocência.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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