Município
da Corte
Muito
Leal e Heroica Cidade do Rio de Janeiro
17
de Outubro de 1847
Dia
de grande aflição para Rosa. Só mesmo Nossa Senhora para lhe
valer. Depois de um parto difícil, sua mãe Tomásia e a parteira
vinham avisar que a menina corria risco de vida. Era preciso fazer
alguma coisa, e já. O retardo podia ser fatal.
Talvez
chamar o Dr. Felix fosse a única solução. Morava logo ali, era um
pulo. Mas, quem sabe?, era homem importante, acostumado a tratar de
gente fidalga. Uma moça pobre, mestiça e solteira como ela não ia
conseguir os cuidados de médico tão afamado. Não podia hesitar. A
menina precisava de socorro. Se fosse preciso, diria o nome do pai da
pequena. Sabia que era amigo da família de Basileu. Não havia tempo
a perder.
Mais:
era preciso correr à Igreja a chamar o reverendo Jerônimo. Nessa
hora o padre não pode faltar. A menina tem que ser batizada.
Vai
se chamar Francisca Edwiges. Não é Edwiges, a santa da folhinha? E
que Nossa Senhora das Dores proteja a inocente.
Se
Basileu estivesse na Corte! Lá na província sequer imagina o que se
passa com sua amada Rosa. Reconheceria a filha? Agora não importa;
talvez já seja tarde.
Quem
sabe se a Providência não está deliberando certo? Afinal a família
Neves Gonzaga não consentirá no matrimônio, O Brigadeiro deseja
futuro melhor para o filho. E sua filha, a menina Francisca, será
uma bastarda. Bastarda! Quanto sofrimento espera essa criatura!
Talvez seja melhor assim. Quando Basileu voltar – se voltar – nem
precisa saber de nada. Estará livre para fazer sua carreira, como
ele ou a família desejar. Assim seja.
A
menina, no entanto, venceu o perigo. Aquela que mais tarde viria a
ser conhecida como uma mulher de enorme audácia, a compositora
Chiquinha Gonzaga, já veio à vida conhecendo o perigo e sabendo
vencê-lo. Muitos ainda encontraria pela frente…
Em
março de 1848, José Basileu retornou ao Rio. Três meses depois
deu-se o batizado na Igreja de Santana, quando foi feito este
registro no Livro 5, fls. 312: Francisca Aos dezesseis dias do mês
de junho de mil oitocentos e inocente (1. A expressão refere-se à
criança de mãe livre, enquanto designava-se como ingênuo a criança
livre de mãe escrava.) quarenta e oito nesta freguesia quis
unicamente os Santos Óleos, por ter sido batizada em perigo de vida
pelo Reverendo Jerônimo Máximo Rodrigues Cardim a inocente
Francisca, nascida em dezessete de outubro do ano próximo passado,
filha natural de Dona Rosa Maria de Lima, solteira: foi protetora
Nossa Senhora das Dores, e padrinho Antonio Basileu Neves Gonzaga; e
nesta ocasião compareceu José Basileu Neves Gonzaga e em minha
presença e das testemunhas com ele abaixo assinadas, que disseram
reconhecê-lo, pelo próprio, disse que a inocente Francisca era sua
filha, por tal a tinha, reconhecia e legitimava, como se nascesse de
legítimo Matrimônio e para qualidade deste termo assinou comigo, e
as testemunhas que foram: o Dr. Antonio Felix Martins e Mamede José
da Silva Passos de que fiz este assento que assinei. (ass) O
Coadjutor Fernando Pinto de Almeida. José Basileu Neves Gonzaga.
Mamede José da Silva Passos Dr. Antonio Felix Martins.
O
registro traz ainda a seguinte anotação à margem: Inutilizado por
despacho de Sua Excelência Reverendíssima de 4 de dezembro de 1860.
(ass) O Vigário P M Alcanforado. Livro 9, fls. 125.
Com
30 anos de idade e uma recente promoção a 1º tenente, José
Basileu retornava à Corte depois de um ano de ausência. Regressara
com uma licença de três meses para tratamento de saúde concedida
pelo Presidente da Província de Pernambuco, para onde fora enviado
em comissão ativa. Ao chegar, encontrou Rosa e a menina que lhe
tinha nascido. Oficial cioso das suas responsabilidades tratou logo
de assumir a paternidade da pequena. Tinha, porém dois problemas a
resolver: conseguir o apoio da família Neves Gonzaga e garantir sua
posição na corporação militar. A primeira tarefa foi frustrada.
Foi impossível vencer a resistência do velho Brigadeiro Feliciano
José, seu pai. O ingresso da humilde Rosa naquela família estava
vetado; ainda mais naquelas circunstâncias! Só restava esperar que
o tempo acomodasse ressentimentos. Quanto ao Exército, foi preciso
cuidar logo de sua situação.
De
imediato, solicitou vencimento do soldo integral já que a licença
de que gozava lhe permitia apenas meio soldo, o que julgava
insuficiente. O Brigadeiro Comandante rejeitou o requerimento e
exigiu a inspeção de saúde no oficial, para verificar se o estado
requeria realmente a licença. Diante disso, José Basileu recorre ao
General Conde de Caxias, parente e protetor. Este lhe assegura os
vencimentos integrais e livra-o da inspeção de saúde. Um mês
depois, conseguia nomeação como desenhista do arquivo militar. Com
isso garante a permanência remunerada na Corte.
Instala-se
com Rosa e a menina na Rua Nova do Príncipe (atual Senador Pompeu),
na Freguesia de Santana. (2. O termo freguesia correspondia à
divisão territorial e constituía a mesma para a Igreja, a polícia
e a municipalidade. Indicam a Rua do Príncipe como local de
nascimento de Chiquinha Gonzaga. Até 1874, o seu nome exato era Rua
Nova do Príncipe, passando então para Rua Príncipe dos Cajueiros,
ou simplesmente Rua do Príncipe. Em 1877 ganhou a denominação
atual. Após a revelação do seu registro de batismo, não podemos
afirmar que tenha nascido ali. Acreditamos, entretanto, que nesta rua
tenha passado a infância. O sobrado de nº. 67 pertencia ao Dr. João
Emilio Neves Gonzaga, irmão de Basileu e, mais tarde, testemunha de
casamento da sobrinha. A informação vem no relatório apresentado à
Câmara Municipal da Corte sobre a nova numeração dos prédios da
cidade, efetuada em 1878, quando o número foi trocado para 153.
Trata-se do único Gonzaga cadastrado na rua. Moraria José Basileu
na casa de propriedade do irmão?).
Desde
logo trata de batizar a filha e reconhecer-lhe a paternidade. Agora a
menina tinha um pai, condição indispensável à integração social
de um indivíduo numa sociedade escravista. Rosa não teria mais
porque temer. Sua filha, mesmo bastarda, porque nascida ilegítima,
passava a ter um futuro garantido.
Edinha Diniz, in Chiquinha Gonzaga – uma história de vida
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