quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Capítulo I – A inocente Francisca


Município da Corte
Muito Leal e Heroica Cidade do Rio de Janeiro
17 de Outubro de 1847

Dia de grande aflição para Rosa. Só mesmo Nossa Senhora para lhe valer. Depois de um parto difícil, sua mãe Tomásia e a parteira vinham avisar que a menina corria risco de vida. Era preciso fazer alguma coisa, e já. O retardo podia ser fatal.
Talvez chamar o Dr. Felix fosse a única solução. Morava logo ali, era um pulo. Mas, quem sabe?, era homem importante, acostumado a tratar de gente fidalga. Uma moça pobre, mestiça e solteira como ela não ia conseguir os cuidados de médico tão afamado. Não podia hesitar. A menina precisava de socorro. Se fosse preciso, diria o nome do pai da pequena. Sabia que era amigo da família de Basileu. Não havia tempo a perder.
Mais: era preciso correr à Igreja a chamar o reverendo Jerônimo. Nessa hora o padre não pode faltar. A menina tem que ser batizada.
Vai se chamar Francisca Edwiges. Não é Edwiges, a santa da folhinha? E que Nossa Senhora das Dores proteja a inocente.
Se Basileu estivesse na Corte! Lá na província sequer imagina o que se passa com sua amada Rosa. Reconheceria a filha? Agora não importa; talvez já seja tarde.
Quem sabe se a Providência não está deliberando certo? Afinal a família Neves Gonzaga não consentirá no matrimônio, O Brigadeiro deseja futuro melhor para o filho. E sua filha, a menina Francisca, será uma bastarda. Bastarda! Quanto sofrimento espera essa criatura! Talvez seja melhor assim. Quando Basileu voltar – se voltar – nem precisa saber de nada. Estará livre para fazer sua carreira, como ele ou a família desejar. Assim seja.
A menina, no entanto, venceu o perigo. Aquela que mais tarde viria a ser conhecida como uma mulher de enorme audácia, a compositora Chiquinha Gonzaga, já veio à vida conhecendo o perigo e sabendo vencê-lo. Muitos ainda encontraria pela frente…
Em março de 1848, José Basileu retornou ao Rio. Três meses depois deu-se o batizado na Igreja de Santana, quando foi feito este registro no Livro 5, fls. 312: Francisca Aos dezesseis dias do mês de junho de mil oitocentos e inocente (1. A expressão refere-se à criança de mãe livre, enquanto designava-se como ingênuo a criança livre de mãe escrava.) quarenta e oito nesta freguesia quis unicamente os Santos Óleos, por ter sido batizada em perigo de vida pelo Reverendo Jerônimo Máximo Rodrigues Cardim a inocente Francisca, nascida em dezessete de outubro do ano próximo passado, filha natural de Dona Rosa Maria de Lima, solteira: foi protetora Nossa Senhora das Dores, e padrinho Antonio Basileu Neves Gonzaga; e nesta ocasião compareceu José Basileu Neves Gonzaga e em minha presença e das testemunhas com ele abaixo assinadas, que disseram reconhecê-lo, pelo próprio, disse que a inocente Francisca era sua filha, por tal a tinha, reconhecia e legitimava, como se nascesse de legítimo Matrimônio e para qualidade deste termo assinou comigo, e as testemunhas que foram: o Dr. Antonio Felix Martins e Mamede José da Silva Passos de que fiz este assento que assinei. (ass) O Coadjutor Fernando Pinto de Almeida. José Basileu Neves Gonzaga. Mamede José da Silva Passos Dr. Antonio Felix Martins.
O registro traz ainda a seguinte anotação à margem: Inutilizado por despacho de Sua Excelência Reverendíssima de 4 de dezembro de 1860. (ass) O Vigário P M Alcanforado. Livro 9, fls. 125.
Com 30 anos de idade e uma recente promoção a 1º tenente, José Basileu retornava à Corte depois de um ano de ausência. Regressara com uma licença de três meses para tratamento de saúde concedida pelo Presidente da Província de Pernambuco, para onde fora enviado em comissão ativa. Ao chegar, encontrou Rosa e a menina que lhe tinha nascido. Oficial cioso das suas responsabilidades tratou logo de assumir a paternidade da pequena. Tinha, porém dois problemas a resolver: conseguir o apoio da família Neves Gonzaga e garantir sua posição na corporação militar. A primeira tarefa foi frustrada. Foi impossível vencer a resistência do velho Brigadeiro Feliciano José, seu pai. O ingresso da humilde Rosa naquela família estava vetado; ainda mais naquelas circunstâncias! Só restava esperar que o tempo acomodasse ressentimentos. Quanto ao Exército, foi preciso cuidar logo de sua situação.
De imediato, solicitou vencimento do soldo integral já que a licença de que gozava lhe permitia apenas meio soldo, o que julgava insuficiente. O Brigadeiro Comandante rejeitou o requerimento e exigiu a inspeção de saúde no oficial, para verificar se o estado requeria realmente a licença. Diante disso, José Basileu recorre ao General Conde de Caxias, parente e protetor. Este lhe assegura os vencimentos integrais e livra-o da inspeção de saúde. Um mês depois, conseguia nomeação como desenhista do arquivo militar. Com isso garante a permanência remunerada na Corte.
Instala-se com Rosa e a menina na Rua Nova do Príncipe (atual Senador Pompeu), na Freguesia de Santana. (2. O termo freguesia correspondia à divisão territorial e constituía a mesma para a Igreja, a polícia e a municipalidade. Indicam a Rua do Príncipe como local de nascimento de Chiquinha Gonzaga. Até 1874, o seu nome exato era Rua Nova do Príncipe, passando então para Rua Príncipe dos Cajueiros, ou simplesmente Rua do Príncipe. Em 1877 ganhou a denominação atual. Após a revelação do seu registro de batismo, não podemos afirmar que tenha nascido ali. Acreditamos, entretanto, que nesta rua tenha passado a infância. O sobrado de nº. 67 pertencia ao Dr. João Emilio Neves Gonzaga, irmão de Basileu e, mais tarde, testemunha de casamento da sobrinha. A informação vem no relatório apresentado à Câmara Municipal da Corte sobre a nova numeração dos prédios da cidade, efetuada em 1878, quando o número foi trocado para 153. Trata-se do único Gonzaga cadastrado na rua. Moraria José Basileu na casa de propriedade do irmão?).
Desde logo trata de batizar a filha e reconhecer-lhe a paternidade. Agora a menina tinha um pai, condição indispensável à integração social de um indivíduo numa sociedade escravista. Rosa não teria mais porque temer. Sua filha, mesmo bastarda, porque nascida ilegítima, passava a ter um futuro garantido.

Edinha Diniz, in Chiquinha Gonzaga – uma história de vida

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