Há
um momento em que o pântano ganha vida. Eu gostaria que você visse,
mas, de algum modo, sempre que caminhávamos juntos pelo campo,
perdíamos esses preciosos e escassos momentos de revelação. Em vez
disso, o céu tem ficado bastante nublado, da cor das pedras sob ele,
ou a seca transforma a terra num lugar marrom, empoeirado e
espinhoso, ou teve aquela vez em que nevou tanto que a porta da
cozinha ficou presa por fora e eu precisei sair pela janela e, com
uma pá, abrir caminho para a nossa liberdade, e, durante uma viagem
em 1949, choveu sem parar, acho que por cinco dias ininterruptos.
Você nunca viu o pântano logo depois da chuva, quando fica tudo
púrpura e amarelo e cheira a solo negro e fértil.
Estava
correta a dedução que você fez logo no começo da nossa amizade,
de que eu havia nascido no norte da Inglaterra, apesar de todas as
afetações e manias que adquiri ao longo de tantas vidas, e meu pai
adotivo, Patrick August, nunca me deixou esquecer minhas raízes. Ele
era o único capataz do patrimônio dos Hulne, e havia sido durante
toda a sua vida. Assim como seu pai, e o pai dele, remontando a 1834,
quando a recém-enriquecida família Hulne comprou a terra para dar
forma a seu sonho de cidadãos da classe alta. Plantaram árvores,
abriram estradas no pântano, construíram torres e arcos ridículos
— construções extravagantes de donos extravagantes — que, na
época do meu nascimento, já se encontravam tomados pelos musgos que
evidenciavam sua decadência. Não era para eles o sórdido matagal
que cercava a propriedade, com seus dentes de pedra e suas gengivas
pegajosas de carne viva da terra. Mais vigorosas, as gerações
anteriores da família criavam ovelhas, ou talvez seja mais justo
dizer que as ovelhas se criavam sozinhas, nos prados que se estendiam
até os muros de pedra, mas o século XX não foi generoso com a
sorte dos Hulne, e o terreno, embora ainda de propriedade da família,
encontra-se negligenciado, selvagem — o lugar perfeito para um
garoto correr livre enquanto seus pais cumprem os afazeres.
Curiosamente, ao viver minha infância novamente, fui bem menos
intrépido. Meu conservador cérebro de idoso passou a considerar
perigosos os buracos e penhascos que eu pulava e escalava durante a
primeira vida, e usei meu corpo infantil como uma idosa talvez use um
biquíni atrevido presenteado por uma amiga esguia.
Como
o suicídio falhou espetacularmente na tarefa de terminar o ciclo dos
meus dias, decidi dedicar a terceira vida à busca das respostas que
pareciam tão distantes. Acredito que seja um pequeno ato de
misericórdia o fato de que nossas memórias voltem aos poucos,
conforme avançamos na infância; por isso, a lembrança de ter me
atirado para a morte surgiu, por assim dizer, como um resfriado que
chega aos poucos, sem causar surpresa, apenas a confirmação de que
aquilo acontecera e de fato não servira para nada.
Se
considerarmos a ignorância uma forma de inocência e a solidão uma
forma de se distanciar das preocupações, minha primeira vida teve
um tipo de felicidade, por mais que não tivesse um objetivo
concreto. Mas, já sabendo de tudo o que havia vivido antes, eu não
poderia viver aquela nova vida da mesma forma. Não só por já saber
os eventos que estavam por vir, mas principalmente por causa da nova
forma de perceber a realidade ao meu redor, e, tendo sido exposto a
essa realidade na minha primeira vida, nunca cheguei a pensar na
possibilidade de que fosse uma mentira. Outra vez um garoto e ao
menos temporariamente em comando de todas as minhas faculdades como
adulto, percebi a realidade que muitas vezes é encenada na frente de
uma criança na crença de que ela não será capaz de compreendê-la.
Acredito que meus pais adotivos me amaram — ela, muito antes dele
—, mas, para Patrick August, eu nunca fui carne de sua carne até
que minha mãe adotiva morresse.
Há
um estudo médico sobre esse fenômeno, mas minha mãe adotiva nunca
morre exatamente no mesmo dia em cada vida. A causa é sempre a mesma
— a menos que fatores externos intervenham violentamente. Perto do
meu aniversário de seis anos, ela começa a tossir, e, perto de eu
completar sete, a tosse vem com sangue. Meus pais não podem pagar os
honorários do médico, mas por fim minha tia Alexandra fornece a
moeda para que a minha mãe vá ao hospital de Newcastle e volte com
o diagnóstico de câncer de pulmão. (Acredito que sejam carcinomas
de células não pequenas, confinadas primeiro ao pulmão esquerdo;
frustrantemente tratável quarenta anos após esse diagnóstico, mas,
na época, absolutamente fora do alcance da ciência.) O médico
prescreve tabaco e láudano, mas a morte chega depressa em 1927. Após
o falecimento, meu pai para de falar por completo e começa a fazer
passeios pelas colinas, às vezes sumindo durante dias. Eu cuido de
mim mesmo com total competência, e a partir de então, na
expectativa da morte da minha mãe, estoco comida para me alimentar
durante as longas ausências de meu pai. Quando volta, ele permanece
calado e distante, e, embora não responda com raiva a nenhuma das
abordagens do meu eu infantil, isso se dá, em suma, porque ele não
responde a absolutamente nada. Durante a minha primeira vida, eu não
entendia seu sofrimento nem sua forma de manifestá-lo, pois eu mesmo
me via sofrendo com a mudez exacerbada própria de uma criança que
precisava de ajuda, ajuda essa que não tive dele. Na segunda vida, a
morte da minha mãe se deu quando eu ainda estava no hospício, e eu
me via concentrado demais na minha própria loucura para processar o
fato, mas na terceira vida tudo veio como um trem que se aproxima
devagar de um homem amarrado aos trilhos; inevitável, irrefreável,
visto de longe à noite, e, para mim, saber de antemão o que vai
acontecer era pior do que o acontecimento em si. Eu sabia o que
estava por vir, e, de certa forma, quando ela morreu, foi um alívio,
o fim de uma expectativa e portanto, um evento menos traumático.
A
morte iminente da minha mãe também me proporcionou uma espécie de
ocupação durante a minha terceira vida. A prevenção, ou pelo
menos o gerenciamento da situação, havia se tornado minha principal
preocupação. Como não encontrava explicação para o que vivia,
salvo, talvez, que um deus do Antigo Testamento tivesse me lançado
uma maldição, eu acreditava que, ao realizar atos de caridade ou
tentar afetar os grandes eventos da minha vida, talvez quebrasse esse
ciclo de morte-nascimento-morte que parecia ter se abatido sobre mim.
Pensando não ter cometido crimes que precisassem de redenção e sem
eventos maiores por desfazer na vida, eu me apeguei ao bem-estar de
Harriet como minha primeira e mais evidente cruzada, e nela embarquei
com toda a sabedoria que a minha mente de uma criança de 5 anos (já
chegando aos 97) seria capaz de reunir.
Usei
a ajuda que servia como desculpa para evitar o tédio da escola, e
meu pai estava preocupado demais para prestar atenção ao que eu
fazia; assim, eu me dediquei a cuidar da minha mãe e descobri como
nunca antes o modo como ela vivia quando meu pai não se encontrava
por perto. Acho que se pode pensar nisso como uma chance de conhecer,
com a mentalidade de um adulto, uma mulher que conheci apenas
brevemente quando criança. E foi então que suspeitei pela primeira
vez que Patrick não era meu pai verdadeiro.
Toda
a família Hulne foi ao funeral da minha mãe adotiva, quando enfim
ela morreu na minha terceira vida. Meu pai entoou um breve discurso,
e eu fiquei ao lado dele, um menino de 7 anos usando calça e paletó
pretos emprestados de Clement Hulne, o primo três anos mais velho
que, na minha vida anterior, implicava comigo, quando lembrava que eu
estava lá para sofrer com seus maus-tratos. Apoiada na bengala com
cabo de marfim talhado no formato de uma cabeça de elefante,
Constance Hulne disse algumas poucas palavras sobre a lealdade e a
força de Harriet, além da família que ela deixava. Alexandra Hulne
me disse que eu deveria ser forte; Victoria Hulne se curvou e
beliscou minhas bochechas, provocando em mim um estranho impulso
infantil de morder os dedos enluvados que haviam profanado meu rosto.
Rory Hulne não disse nada e ficou me encarando. Ele havia feito isso
antes, na primeira vez em que eu pegara roupas emprestadas para
enterrar minha mãe, mas eu, tomado de uma tristeza inexprimível,
não compreendera a intensidade daquele olhar. Dessa vez, nós nos
encaramos, e pela primeira vez vi refletida a minha imagem, a imagem
do que eu me tornaria.
Você
não me conheceu em todos os estágios da vida, então me permita
descrevê-los aqui.
Quando
criança, eu nasço com o cabelo quase vermelho, tom que, com o tempo
desvanece e os caridosos diriam que se torna castanho-avermelhado,
mas que francamente parece mais a cor de uma cenoura. A cor vem da
família da minha mãe verdadeira, assim como a propensão a ter bons
dentes e à hipermetropia. Quando criança sou pequeno, um pouco mais
baixo do que a média, e magro, embora isso se dê tanto pela má
alimentação quanto pela predisposição genética. Meu estirão
começa quando faço 11 anos e continua até os 15, quando,
felizmente, posso fingir que sou um garoto de 18 anos que parece mais
novo e, portanto, pular três anos entediantes e ir direto para a
vida adulta.
Quando
jovem, eu deixava a barba crescer desgrenhada, tal qual meu pai
adotivo, Patrick; mas ela não me cai bem, e, quando a deixo
descuidada, fico parecido com um conjunto de órgãos sensoriais
perdido num arbusto de framboesa. Quando tomei consciência disso,
comecei a fazer a barba com regularidade, revelando assim a face do
meu pai verdadeiro. Temos os mesmos olhos acinzentados, as mesmas
orelhas diminutas, o cabelo levemente ondulado e um nariz que, junto
com a tendência a ter doenças ósseas quando idoso, provavelmente é
a pior herança genética que ele me legou. Não que o nariz seja
especialmente grande — não é; mas ele é tão inegavelmente
arrebitado que se encaixaria bem no rosto do rei dos duendes, e em
vez de ser delineado na minha face e traçar um ângulo com meu
rosto, parece homogeneizado, fundido com a minha pele, como se fosse
um apêndice moldado em argila, não em osso. As pessoas são
educadas demais para comentar, mas vez ou outra, quando uma criança
menos comedida e dona de um melhor material genético o vê, começa
a chorar. Quando idoso, meu cabelo fica tão branco que parece um
flash de fotografia; o estresse pode adiantar a descoloração, e nem
a medicina nem a psicologia são capazes de preveni-la. Preciso de
óculos para ler aos 51 anos; lamentavelmente chego a essa idade
durante a década de 1970, época ruim para a moda, portanto, assim
como quase todos que chegam a certa idade, eu recorro ao estilo com
que me sentia mais à vontade quando jovem e escolho uma armação
discreta e antiquada. Com eles na frente dos meus olhos, que são
mais juntos do que o normal, eu me olho no espelho do banheiro e
percebo que fico igual a um acadêmico idoso; era um rosto ao qual,
no momento de enterrar Harriet pela terceira vez, eu já tivera quase
cem anos para me familiarizar. É o rosto de Rory Edmond Hulne,
encarando-me do outro lado do caixão da mulher que não poderia ser
minha mãe verdadeira.
Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August
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