Muitas
peles de cordeirinhos pendiam da cerca. Porfirio Lasta ouviu na
cantoria da tarde uma espécie de amanhecer. O arvoredo que rodeava o
sítio era pequeno, mas os pássaros o multiplicavam. Àquelas horas,
Porfirio sempre pensava na mesma coisa: na filha do capataz do
Recreo. Era uma senhorita opulenta, de meias de seda e salto alto.
Ele pensava também em um piano, que tinha entrevisto detrás de uma
porta, num dia de chuva. A música o fascinava, e lembrar-se dos
acordes de um piano e daquela mulher era o prêmio que recebia ao
cair da noite.
Fazia
já vinte anos que ele tinha arrendado aquelas terras, com um só
potreiro e um rancho: depois de muitos sacrifícios, conseguiu
comprá-las. Quando se instalou, o rancho estava quase em ruínas;
tinha-o restaurado aos poucos, de maneira que o teto não tivesse
goteiras, nem a porta rangesse demais. Tinha acrescentado mais tábuas
ao postigo da janela, aplainara o chão de terra batida e clareara as
paredes.
Em
volta do rancho havia os restos de uma horta, pouquíssimas galinhas,
uma ou outra vaca, três cavalos. Além disso, havia trezentas
ovelhas: era disso que ele vivia. Vendia bem a lã, e os gastos eram
poucos. Banhava-as no terreno vizinho. Entregava todo o lucro a um de
seus irmãos, o que sabia ler, escrever, conduzir o dinheiro e o
carro. Guardava só o necessário para seus gastos pessoais.
Porfirio
pensou em seu irmão; era distante e silencioso feito uma caixa de
ferro; circundava-o uma auréola de instrução. Vivia a duas léguas
de distância, em uma casa com vários corredores; tinha mulher e
alguns filhos.
Porfirio
tinha ido várias vezes reclamar-lhe o dinheiro. Desde a compra do
sitiozinho e dos animais, não tinha conseguido fazer com que seu
irmão lhe entregasse nenhuma quantia. Este costumava lhe dizer o
seguinte:
— Não
é bom que você guarde dinheiro em casa. Qualquer noite dessas podem
entrar para te matar.
— Não
tenho medo — respondia Porfirio, tremendo. — Preciso do dinheiro
para comprar umas quantas ovelhas crioulas. E depois, acho que estão
me fazendo falta uns hectares a mais.
O
irmão distraído não respondia nada.
Daquela
vez Porfirio saiu do rancho, abriu lentamente a porteira do alambrado
que dava no potreiro, caminhou entre bostas encrespadas e cardos,
anteparando a luz do poente com a mão. Era agosto. Fazia um frio
cortante: sentia-o de frente como uma coroa de gelo em suas mãos,
tal qual uma superfície dura. Apressou o passo. Deteve-se no limite
do potreiro, junto à cerca. Flocos de lã floresciam da cerca de
espinhos. O rebanho se desenrolava com ruído de tapete. Apenas uma
ovelha não se mexia. Estava de barriga para cima, deitada no chão,
prestes a parir. Alguns abutres e chimangos aguardavam o nascimento,
esperando um cordeirinho vivo ou uma mãe quase morta, com grandes
olhos vítreos.
Ao
se aproximar, Porfirio afugentou os pássaros. A ovelha respirava com
dificuldade, grunhia e mascava devagar gordos grãos invisíveis de
milho duríssimo. Em seguida, feito incisão na tarde vermelha, sobre
uma pedra cinza, foram nascendo, um, dois, três cordeirinhos
idênticos. A mãe lambeu cuidadosamente os dois primeiros e se
esqueceu do último. Porfirio procurou uma bolsa, limpou o terceiro
cordeirinho, o envolveu, o levou ao rancho e o colocou debaixo do
beiral.
Entrou
na casa e foi em direção ao fogão aceso. Pôs carne para assar nas
brasas.
Os
últimos raios de sol brilhavam na abertura da porta. Porfirio viu
cintilar um círculo de luz na parede do quarto. Era a mensagem
cotidiana de seu vizinho. Levantou-se do banco, despregou o
espelhinho redondo que tinha usado certa vez para se barbear e parou
na soleira da porta. Tentou inutilmente responder com o mesmo círculo
de luz, com o mesmo reflexo, sobre a casa do vizinho. O sol tinha
desaparecido. Canalizando a voz com as mãos postas de cada lado da
boca, depois de um instante gritou:
— Boa
noite.
O
silêncio multiplicou a voz. A noite caiu de repente. Ele entrou no
rancho e junto ao fogão comeu um pedaço de carne com pão e vinho
tinto. A chama da vela tremulava com o vento, apesar de ele ter
fechado a porta. Os rangidos eram seus companheiros.
Sem
se despir, deixou-se cair na cama. Tinha dois ponchos bem puídos e
uma manta com as bordas vermelhas. O sono, antes de chegar a seus
olhos, rondava por todo seu corpo que nem água bem mansa. Não foi
domado pelo sono como em outras noites. Soprou a vela e o quarto
ficou em trevas. Demorou para dormir. Repassou mentalmente os
trabalhos do dia e depois começou a sonhar.
Sonhou
que se casava com a filha do capataz do Recreo na igreja de Azul.
Depois da cerimônia, chegava ao Recreo com sua noiva em uma
carruagem, escoltado por toda a família, que vinha em um vagão,
rebocando um piano com rodas. O piano era uma casinha alta e preta,
com um tablado coberto no centro. Tinha dois candelabros de ouro de
cada lado. Uma família pequeníssima de anões vivia dentro dessa
casa. A música surgia aparentemente das mãos da pianista, quando
ela tocava as notas, mas o procedimento era mais complicado e
misterioso: a música surgia da boca dos anõezinhos.
— Tem
que levar com cuidado — dizia o pai da noiva, abraçando o piano —;
ele tem notas muito sofridas.
Os
cavalos foram freados, com cuidado, diante da porteira, e em seguida
o pai, junto com o resto da família da noiva, saiu pelo sítio,
agitando ramos para espantar os mosquitos. A filha do capataz, que
era rechonchuda, deitou-se na cama de ferro e Porfirio ao lado dela,
no chão de terra batida, sobre uns quantos sacos que serviam de
colchão. Aquela casa, tão suntuosa por dentro, tinha dormitórios
com chão de terra batida. Os recém-casados já deviam estar
dormindo quando a porta se abriu de repente. Uma tropa de cavalos
passou relinchando.
O
cachorro latia ao longe. Um círculo de luz bailou suavemente na
parede. Ao ver o sinal do vizinho, Porfirio sorriu. Uma sombra se
delineava no batente da porta e ele não viu outro rosto a não ser
aquele círculo de luz. Deu alguns passos adiante, para além de seu
sonho; ainda penso que ele teve tempo de se assustar, de virar
sonâmbulo, ele, que nunca tinha sido, quando sentiu que lhe
afundavam um ferro bem vermelho no peito.
A
escuridão modificou as cores, os meios-tons, como a revelação
caprichosa de uma fotografia.
A
mão de Remigio Lasta não soltava a faca. O silêncio, que não
havia se manifestado até então, crescia; preenchia-se de
filamentos, de silvos, de memórias, da cantoria de grilos
infinitesimais.
Nenhuma
porta estalava, nenhum móvel: todos os objetos se ausentavam sobre o
chão de terra. As paredes, o teto tinham se dissolvido, mas o homem
sentiu, na irrealidade do quarto, uma presença viva. Dava as costas
à janelinha; as paredes tinham se dissolvido, mas a janelinha, não.
Incomodava-o ter costas; eram elas o lugar vulnerável do corpo; a
fim de ignorar isso, ele virou bruscamente a cabeça e viu, pela
primeira vez, um fantasma. Estudou-o com atenção. Era uma senhorita
opulenta, de meias de seda e salto alto. Ouviu uma insuportável
musiquinha de piano. Instantes depois, sentiu o contato de uma mão
sobre uma das suas, e três dedos seus ficaram dormentes.
Tirou
a faca e a limpou com a manta. A lanterna era pequena e iluminava uma
circunferência nítida, porém muito exígua. Procurou um fósforo;
acendeu a vela. Fez um passeio circular ao redor do quarto. Sentou-se
por um minuto em um banco e tirou as luvas: olhou para suas mãos
escuras, de veias muito salientes. Levantou-se do banco e voltou a
pôr as luvas. Os três dedos continuavam dormentes. Soprou a vela, e
depois de iluminar o quarto com a lanterna abriu a porta uma última
vez e olhou para o céu. A noite carecia de estrelas; mirou o cavalo,
que estava a cinco metros, e disse em voz alta:
— Duas
léguas, duas léguas. Terei tempo de percorrê-las antes que
amanheça.
Montou
o cavalo e ninguém, a não ser eu, pôde ouvir aquele galope, que ia
longe na noite. Ninguém, a não ser eu, soube que Remigio Lasta
herdaria não apenas o dinheiro, como também o sonho de seu irmão.
Silvina Ocampo, in A fúria
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