É
preciso ter Uma história pronta, ensina o Matinhos. O mundo
se divide entre os rápidos e os lentos, e o que os distingue é a
sua reação ao serem flagrados. Os rápidos inventam uma explicação
na hora. Os lentos, que são maioria, precisam ter uma história
pronta. Muitas vezes sua integridade física, se não sua
sobrevivência, depende de ter uma história pronta. Não precisa ser
convincente, segundo o Matinhos. Basta que esteja pronta. O Matinhos
sabe da importância da história pronta por experiência própria.
Um dia estava na cama com a vizinha quando sua mulher chegou em casa
do salão mais cedo do que o esperado. A mulher é dona de um salão
de beleza, o Matinhos vive, como ele mesmo diz, em disponibilidade.
Não é um vagabundo, é um disponível. Faz parte da grande reserva
de mão-de-obra ociosa da nação, esperando para ser convocada. Só
não vai atrás do emprego, que já é pedir demais. A nação que
venha buscá-lo. Enquanto a nação não vinha, o Matinhos enchia
parte das suas horas vagas, que eram todas, namorando a dona Zeneida
que também não tinha muito o que fazer depois de alimentar seu
marido, o Valdemar, um inativo, que dormia sestas longas e profundas
e só acordava para ir jogar dominó no bar. E um dia a mulher do
Matinhos chegou em casa mais cedo e por pouco não encontrou a dona
Zeneida na cama com o Matinhos. Dona Zeneida conseguiu sair pela
janela, sair pelo portão e entrar na sua casa só de calcinha,
agarrando o resto das suas roupas na frente do corpo, sem ser vista e
quando a mulher do Matinhos entrou no quarto, encontrou o marido
arquejante na cama, a cabeça atirada para trás, braços e pernas
abertos, o pijama desfeito.
— O
que é isso, Matinhos?
O
Matinhos mal conseguia falar.
— Não
sei... Acho que...
— O
que, homem de Deus?!
— Princípio
de enfarte.
E
o Matinhos não estava fingindo. O susto quase o matara. Fizeram
exames, tudo bem, a mulher pediu para o Matinhos nunca mais
assustá-la daquela maneira, e o Matinhos começou a pensar na
importância do pensamento contingencial. Sua mulher o teria flagrado
não só com a vizinha na cama mas sem uma história pronta. O que
ele teria dito, se fosse pego? “Não é o que você está
pensando”? Ridículo. Claro que era o que ela estava pensando. Ele
precisava ter uma história pronta. Uma história rica em detalhes,
criativa, tão elaborada que desencorajasse qualquer tentativa de
investigá-la e tão incomum que levasse à conclusão de que ninguém
a inventaria. Tão improvável que só poderia ser verdade.
E
o Matinhos pôs-se a construir, meticulosamente, a explicação que
daria no caso de ser flagrado com a dona Zeneida na cama. Algo sobre
o marido de dona Zeneida, o Valdemar, e o seu envolvimento com uma
rede de traficantes de droga. Bolivianos, era isso. Bandidos
bolivianos. A Polícia Federal estava usando a casa do Matinhos para
controlar o movimento na casa do Valdemar. Matinhos não tinha
contado nada à mulher para não assustá-la. Sim, estava colaborando
com a polícia. Tinham bolado um plano para tirar a dona Zeneida de
dentro da casa para poder revistá-la, aproveitando-se do fato de o
Valdemar normalmente cair num sono profundo depois de tomar a heroína
do meio-dia. Matinhos concordara em seduzir a dona Zeneida em nome da
lei, para ajudar a livrar o país do flagelo das drogas, ainda mais
trazida por bolivianos. Se a mulher do Matinhos fizesse um escândalo,
atrapalharia a diligência da polícia que naquele momento estava
revistando a casa do Valdemar e...
É
uma história longa que o Matinhos decorou e tem até ensaiado na
frente do espelho, para o caso de ser pego com a dona Zeneida na
cama. Uma possibilidade que ficou remota, porque depois do quase
flagrante, a dona Zeneida, que teve uma crise de nervos, se recusa a
sequer olhar para o Matinhos, quanto mais a responder seus “pssts”
por cima da cerca. E o Matinhos está assim, com uma história pronta
que só serve para o caso de flagrante com a dona Zeneida, já que na
casa do outro lado só mora um general reformado viúvo e com três
cachorros, mas sem a dona Zeneida. O Matinhos está começando a
pensar numa história pronta que sirva em qualquer contingência.
Luís Fernando Veríssimo, in Sexo na cabeça
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