quinta-feira, 4 de agosto de 2022

A caravana


A chegada da caravana provocou alvoroço. Nas estreitas ruelas que percorríamos, uma verdadeira multidão olhava-nos passar. E — não nego que o orgulho me invadiu quando o constatei — o motivo de tanto interesse, de tanta excitação, era a tenda onde eu estava. Todos sabiam que dentro daquela tenda estava a nova esposa do rei. Que por certo imaginavam bela e sedutora. Enganavam-se, mas de seu engano nunca se dariam conta, pois jamais me veriam. Do palácio real eu jamais sairia.
A esse palácio, imponente, luxuoso, agora chegávamos. Passamos os portões, guardados por sentinelas, entramos no pátio interno, e ali a caravana se deteve. O emissário do rei, com quem eu não havia falado durante toda a jornada, veio ajudar-me a descer e apresentou-me à encarregada do harém, que daí em diante cuidaria de mim. A mulher, grande, gorda e forte, com jeito masculino (quem sabe tinha participação nos prazeres do serralho), olhou-me, intrigada. Eu sabia o que estava pensando: Deus, é feia essa aí, é a mais feia da safra. Mas se pensou, não o disse, claro: daí em diante ninguém mais me chamaria de feia, eu agora era a mulher do rei. Limitou-se a saudar-me com algumas palavras convencionais e amáveis. Depois quis saber se eu estava muito cansada.
Respondi que não, que a viagem fora muito boa.
Então, podemos ganhar tempo preenchendo algumas formalidades, disse.
Explicou: como o harém era muito grande, havia necessidade de um sistema mínimo de registros, mesmo porque o rei pouco sabia de suas futuras esposas. Deu-me então um véu — meu rosto não poderia mais ser visto por homem algum, a não ser o rei, ou quem quer que ele autorizasse — e levou-me à sala do escriba-mor de Salomão, um encurvado ancião (eu começava a desconfiar que ler e escrever era ofício impróprio para menores) que, com ar ranzinza e voz fanhosa, indagou qualquer coisa que não entendi. Pedi que repetisse.
Perguntei se és a novata! berrou. Depois, contendo-se, deu-me as boas-vindas, indagou se podia fazer minha ficha, coisa de rotina, de novo tive de ouvir a história sobre o mínimo de organização necessário à administração de um harém tão grande, com tantas esposas e concubinas.
Eu disse que sim, que estava à disposição para fornecer as informações que quisesse. Muito satisfeito, ele desenrolou um pergaminho sobre a mesa — a ficha —, pegou o cálamo, molhou-o no tinteiro e começou.
Nome completo.
Eu disse meu nome. Ele seguiu perguntando: data de nascimento, filiação, nome de irmãos e de outros parentes, endereço para correspondência, essas coisas habituais, outras não tão habituais, como preferências alimentares cores favoritas. Também quis saber se eu cantava, dançava e declamava poesias. Pediu-me ainda para narrar, sinteticamente, meu último sonho, ou, caso não lembrasse, um devaneio qualquer. Fui respondendo enquanto ele, sentado à mesa diante de mim, escrevia laboriosamente.
Notei que grafara mal a palavra “sonho” e, depois de pequena hesitação, mostrei-lhe o erro.
Olhou-me como se eu fosse um ser de outro planeta. perguntou, — Mas então sabes ler e escrever? — assombrado.
Eu disse que sim, e contei como tinha aprendido, com o que fez uma longa anotação a respeito e passou a me olhar com reverência, mas também com alguma raiva, que não me passou desapercebida. Pois que me olhe com raiva, pensei. Daqui a pouco meu casamento com o rei estará consumado, poderei cagar na cabeça desse velho coroca.
Terminado o preenchimento da ficha, fui levada à ala do sacerdote, um membro da alta hierarquia do Templo, que me fez entrar e ordenou à encarregada do harém que nos deixasse a sós.
Não quero ser interrompido, acrescentou, em tom severo.
Voltando-se para mim, perguntou se eu sabia por que fora trazida à sua presença. Respondi que esperava instruções a respeito da cerimônia que, na minha cabeça, deveria ocorrer ainda naquele dia, apesar de não estar vendo grandes preparativos para tal. Olhou-me, sempre com aquele ar de superioridade, e disse que não era bem aquilo. Em verdade, sua missão era outra. Tinha de certificar-se de que eu não era portadora de nenhuma lesão, de nenhum sinal de impureza, de lepra, enfim, aquela doença que tornava maldito quem a portasse. Eu teria, naturalmente, de me despir, mas não havia o que temer, pois estava diante de um santo homem, de alguém que havia muito se livrara da concupiscência. Não hesitei — ordens que vêm do alto não se discutem — e tirei a roupa. Ele me olhou de cima a baixo. Nada disse, por razões obvias, mas eu sabia o que ele estava pensando: é boa de corpo, essa aí, o rei vai passar bem.
Examinou-me minuciosamente, e nada encontrou. Mas então lembrou-se de me mandar tirar o véu, que eu, mesmo nua, conservara, de acordo com as instruções da encarregada do harém. E aí estremeceu, claramente estremeceu e não conseguia desviar o olhar da minha face.
Repulsa e fascínio, era o que eu via em sua expressão. Repulsa pela feiura, fascínio pelos sinais, aquele caleidoscópio cutâneo jamais por ele visto, aquele homem que em matéria de lesões de pele devia ser uma verdadeira enciclopédia. Pôs-se a estudá-los um a um, os sinais, fazendo anotações e desenhos num pergaminho. Eu deixara de interessar-lhe: o importante era aquela pequena verruga cuja forma lembrava-lhe vagamente um inseto que certa vez vira numa árvore junto ao lago da Galileia...
Falava e anotava, anotava e falava. Por fim, cansada daquela história, pedi licença, vesti-me e saí para grande decepção do sacerdote, que não concluíra suas anotações.
Fui conduzida ao harém, anexo ao palácio e deste separado por um pequeno pátio com palmeiras e fontes marulhantes. Como o palácio, o harém ultrapassava tudo que eu poderia ter imaginado em matéria de luxo. Um vasto pavilhão, ricamente decorado com cortinas de seda, vasos com plantas exóticas, macios tapetes. Até pavões, vaidosas aves, faziam parte do cenário.
E ali estavam, naturalmente, as mulheres. Foi um choque, quando as avistei. Claro, sabia de antemão que Salomão tinha um dos maiores haréns do mundo, mas uma coisa é saber, outra constatar com os próprios olhos.
Deus, que imenso mulherio ali se reunia. Mulheres em profusão, mulheres em penca, mulheres a granel, mulheres para dar e vender, um despautério de mulheres, um dilúvio mulheril. Mulheres de pé, sentadas ou deitadas; conversando, rindo, sorrindo; mulheres meditativas e até (mas num único caso) em prantos. Mulheres comendo, mulheres tocando flauta, mulheres cheirando flores. Mulheres sozinhas; mulheres em grupos de duas, três ou mais. Mulheres em esquadrão, mulheres em formação de batalha, mulheres em linha reta, em círculo, em triangulo (isósceles ou escaleno), em retângulo. Mulheres gárrulas, mulheres sérias, mulheres agitadas, mulheres tranquilas. Quanto à beleza (e como não poderia eu notar esse item), havia-as esplendorosas, muito lindas, razoavelmente lindas, agradáveis. Mas feia, nenhuma. Nenhuma, mesmo. Talvez eu pudesse rotular um ou outro nariz como imperfeito, uma ou outra boca como mal desenhada, mas feiúra como a minha, completa, definitiva, isso não havia. Eu era, ai de mim, a única.
Era fácil distinguir as esposas propriamente ditas das concubinas, que se vestiam de maneira mais simples e tinham um ar modesto (talvez um pouco zombeteiro, mas de qualquer forma a modéstia predominava). As concubinas, talvez por constrangimento ignoraram a minha presença. Mas as esposas, essas, miravam-me com atenção. Sem dúvida temiam que a recém-chegada pudesse tornar-se a favorita do rei. Mas — eu agora sem o véu — bastou-lhes uma rápida olhada para que se convencessem; não, eu não era inimiga. Na corrida pelo real coração eu não estava na pole position — ao contrário, largava muito atrás e já largava parada.
Aliviadas, puseram-se a rir. Olhavam-me, olhavam minha cara e — de onde saiu essa coisa? — riam. Risinhos, a princípio risinhos, logo, cacarejos gargalhadas — deboche escarrado, total desrespeito, solidariedade, ça va sans dire, nenhuma. Olhem s¢ esse bagulho, essa aí não foi parida, foi cagada. Se eu sofresse do coração já teria morrido — e por aí afora.
Eu nada dizia. Podia ter reagido, mais — podia ter quebrado a cara de uma meia dúzia daquelas dengosas, porque o que me faltava em beleza sobrava-me em músculos, e muitas na aldeia haviam sentido o peso de meu braço. Mas eu não estava a fim de criar confusão. Não naquele momento, pelo menos. De modo que engoli minha raiva e me deixei conduzir pela administradora do harém, que tentava consolar-me como podia: não dá bola, essas aí são umas invejosas, só sabem gozar as colegas. Levou-me para um aposento onde várias escravas tomaram conta de mim, banhando-me, perfumando-me, e por fim vestindo-me como uma verdadeira odalisca. Quando terminaram, a mulher disse que eu me olhasse no grande espelho ali colocado. Vacilei; uma segunda desilusão frente à superfície polida me seria insuportável. Ela, porém, insistiu: venha, veja como você mudou.
Olhos fechados, pus-me em frente ao espelho. Respirei fundo, contei até três — e me olhei.
Bem, aquilo foi uma surpresa. Uma muito agradável surpresa. Realmente, as moças tinham feito um bom trabalho. As vestes de seda, semitransparentes, valorizavam-me o corpo, que, como eu já disse, não era dos piores; além disso, havia o véu, o espesso véu que me ocultava a face, dando-me um ar a um tempo recatado e sedutor. Grande sacada, aquele véu.
Perguntaram-me o que achava. O tratamento que me davam, devo dizer, era extremamente respeitoso — afinal, eu era uma esposa do rei. Eu disse que estava satisfeita, que minhas expectativas tinham, de fato, sido ultrapassadas.
Muito bem — disse a encarregada do harém. — Se está tudo a teu gosto, peço-te que me acompanhes à sala do trono.
Chegara o momento, o grande momento. À medida que, seguindo a mulher pelos longos corredores, eu me aproximava da sala do trono, todo o resto, toda a minha vida até então, ia ficando para trás. Meu pai, minha mãe, a família, o pastorzinho, a pedra (pobre pedra), tudo agora era simples lembrança. Uma nova existência estava começando.
Finalmente, chegamos. As maciças portas, guardadas por soldados armados, estavam fechadas.
Temos de esperar um pouco — disse a mulher.
Ao cabo de algum tempo, para mim insuportavelmente longo, as portas se abriram e um homem de barbas brancas trajando luxuosas vestes, apareceu.
Era um dos cortesãos.
É ela? — perguntou, seco.
É ela — respondeu a encarregada do harém. — Chegou há pouco.
Como parecia ser hábito naquele lugar, ele mirou-me com atenção.
Obviamente tentava imaginar o rosto oculto atrás do véu. Mas logo desistiu: — Bem. Entrem logo.
Entramos. O rei estava sentado no trono, usando a coroa e o manto real.
Ao vê-lo, uma vertigem se apossou de mim. Cheguei a cambalear; a encarregada do harém teve de me amparar para que eu não caísse.
Que homem lindo, Deus do céu. Eu nunca tinha visto homem tão lindo. Um rosto longo, emoldurado por uma barba negra (com alguns fios prateados), olhos escuros, profundos, boca de lábios cheios, nariz um pouquinho adunco — o suficiente apenas para dar-lhe um charme especial. E o porte senhoril, e o ar másculo... Lindo, lindo.
De imediato me apaixonei por ele. Uma paixão avassaladora, definitiva, a paixão que, eu tinha certeza, daí em diante governaria minha vida.
Bendito o momento em que ele resolvera me chamar. Bendita a carta que me mandara. Bendita a boca que ditara as palavras daquela carta, bendito aquele homem, aquele lindo homem. Eu podia passar anos olhando-o, em muda adoração. Finalmente descobria o amor. O pastorzinho? Não, aquilo fora apenas um teste, um treino. Com ele, meu coração se preparara para o grande salto da paixão. Que estava agora tão próxima.
Salomão nem se dera conta de que eu estava ali, entregue ao que, depois descobri, era uma de suas atividades prediletas, a saber, julgar: decidir o que era certo e errado, o bom e o mau, decidir quem tinha e quem não tinha razão. Naquele momento estavam diante dele duas mulheres.
Prostitutas, concluí de imediato. Eu nunca tinha visto rameiras em minha vida; tais mulheres não existiam em nossa aldeia — e caso se atrevessem a lá aparecer, meu pai as expulsaria, furioso, gritando abominação, abominação (ou talvez as encerrasse, para seu próprio desfrute, numa caverna). Mas não duvidei um segundo sequer de que aquelas mulheres fossem profissionais do sexo. O jeito como se vestiam, a berrante maquiagem... Putas, sim, indiscutivelmente putas. E feias. Não tão feias quanto eu, mas muito feias, mesmo assim, o que fazia supor parcos rendimentos e baixa categoria. Prostitutas uma estrela, no máximo. Talvez duas, com boa vontade. Bem, uma estrela para a mais alta, duas estrelas para a mais baixa, que tinha belos olhos. De todo modo, uma estrela e meia na média. Mas não era isso o que importava, seu ranking. O importante era que ali, na presença de um rei poderoso, de um rei detentor de mandato divino, estavam duas prostitutas. Que se sentiam perfeitamente à vontade no palácio real. Que falavam em altos brados, apontando-se dedos ameaçadores. Depois de algum tempo de gritaria, finalmente entendi o que se passava: cada uma se dizia mãe de uma criança recém-nascida, que um dos guardas, sem muito jeito, segurava ao colo.
Tinham dado à luz ao mesmo tempo, um dos bebês morrera, mas algo de confuso acontecera e o resultado é que estavam ali, disputando o nenê.
A mim aquilo causava espécie. Então o rei, a quem estava afeta a administração de um país, usava seu tempo resolvendo questiúnculas de mulheres de má vida? Salomão, no entanto (ah, mas era lindo aquele homem), não estava nem aí para tais objeções. Pelo jeito, prostitutas e outras pessoas de baixa classe eram frequentadoras habituais da open house em que a sala do trono periodicamente se transformava. Mais, obviamente tinha prazer no que estava fazendo. Ouviu-as atentamente, fez três ou quatro perguntas (irrelevantes, no meu modo de ver, mas quem era eu para opinar sobre relevâncias?); depois ficou em silêncio, meditando.
E, nesse momento, senti — e todos ali sentiram, acredito — que alguma coisa estava acontecendo. Algo tinha mudado. O ar estava denso, pesado, como saturado de invisível vapor. Era a sabedoria dele. Exalava sabedoria por todos os poros, impregnava-nos com sua sabedoria. O que dava uma sensação esquisita, uma espécie de cosquinha, que coisa gozada. Uma das prostitutas, a de uma estrela, até rascava as coxas com as unhas aguçadas. Tudo aquilo se constituía em prenúncio do que havia de vir: a sentença. Que Salomão enunciou na sua voz grave, pausada (Deus, que tesão me dava aquela voz, meu grelo vibrava em uníssono com ela). Num primeiro momento, a decisão soou surpreendente, cruel até: já que era impossível esclarecer quem era a mãe verdadeira, a criança seria cortada em duas, cada mulher recebendo uma metade. Todos estremeceram, os cortesãos se olharam, e ouvi um deles murmurar para outro a seu lado: essa não, o cara está dando uma de temerário, a coisa vai pegar mal no estrangeiro.
Mas Salomão, muito seguro, chamou de imediato um soldado para cumprir a ordem. O homem veio, espada na mão. Momento de suspense, momento de extremo suspense, todos ali imóveis, respiração contida, um cortesão até tapando os olhos com a mão. Uma das mulheres, a de duas estrelas, ficou parada, em silêncio, como conformada com a sentença; mas a outra reagiu de maneira extraordinária. Correu para o soldado, agarrou-se no braço que já se erguia no ar, pronto para o golpe, e em voz estrangulada gritou, se é para matarem meu nenê, prefiro que o entreguem inteiro para essa aí. Grande comoção no recinto; Salomão então se pôs de pé.
Para! — ordenou ao soldado, que se deteve, como que congelado.
Dirigindo-se à mulher que havia gritado, proclamou: — És a verdadeira mãe, o grito que ouvimos foi o da tua maternidade. O filho é teu, podes pegá-lo. O soldado, um tanto desapontado (pelo jeito seus planos de fatiar uma criança naquele dia haviam sido frustrados), entregou o nenê à mulher enquanto todos aplaudiam: palmas, gritos, assobios, um verdadeiro delírio. O rei, satisfeito, sorria. Tinha do que se orgulhar: acabara de dar uma prova concreta, palpável de sua sabedoria. A sabedoria cuja fama se espalhara pelo mundo e que o transformara numa lenda viva, no monarca dos monarcas.

Moacyr Scliar, in A Mulher que escreveu a Bíblia

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