A
chegada da caravana provocou alvoroço. Nas estreitas ruelas que
percorríamos, uma verdadeira multidão olhava-nos passar. E — não
nego que o orgulho me invadiu quando o constatei — o motivo de
tanto interesse, de tanta excitação, era a tenda onde eu estava.
Todos sabiam que dentro daquela tenda estava a nova esposa do rei.
Que por certo imaginavam bela e sedutora. Enganavam-se, mas de seu
engano nunca se dariam conta, pois jamais me veriam. Do palácio real
eu jamais sairia.
A
esse palácio, imponente, luxuoso, agora chegávamos. Passamos os
portões, guardados por sentinelas, entramos no pátio interno, e ali
a caravana se deteve. O emissário do rei, com quem eu não havia
falado durante toda a jornada, veio ajudar-me a descer e
apresentou-me à encarregada do harém, que daí em diante cuidaria
de mim. A mulher, grande, gorda e forte, com jeito masculino (quem
sabe tinha participação nos prazeres do serralho), olhou-me,
intrigada. Eu sabia o que estava pensando: Deus, é feia essa aí, é
a mais feia da safra. Mas se pensou, não o disse, claro: daí em
diante ninguém mais me chamaria de feia, eu agora era a mulher do
rei. Limitou-se a saudar-me com algumas palavras convencionais e
amáveis. Depois quis saber se eu estava muito cansada.
Respondi
que não, que a viagem fora muito boa.
Então,
podemos ganhar tempo preenchendo algumas formalidades, disse.
Explicou:
como o harém era muito grande, havia necessidade de um sistema
mínimo de registros, mesmo porque o rei pouco sabia de suas futuras
esposas. Deu-me então um véu — meu rosto não poderia mais ser
visto por homem algum, a não ser o rei, ou quem quer que ele
autorizasse — e levou-me à sala do escriba-mor de Salomão, um
encurvado ancião (eu começava a desconfiar que ler e escrever era
ofício impróprio para menores) que, com ar ranzinza e voz fanhosa,
indagou qualquer coisa que não entendi. Pedi que repetisse.
— Perguntei
se és a novata! berrou. Depois, contendo-se, deu-me as boas-vindas,
indagou se podia fazer minha ficha, coisa de rotina, de novo tive de
ouvir a história sobre o mínimo de organização necessário à
administração de um harém tão grande, com tantas esposas e
concubinas.
Eu
disse que sim, que estava à disposição para fornecer as
informações que quisesse. Muito satisfeito, ele desenrolou um
pergaminho sobre a mesa — a ficha —, pegou o cálamo, molhou-o no
tinteiro e começou.
— Nome
completo.
Eu
disse meu nome. Ele seguiu perguntando: data de nascimento, filiação,
nome de irmãos e de outros parentes, endereço para correspondência,
essas coisas habituais, outras não tão habituais, como preferências
alimentares cores favoritas. Também quis saber se eu cantava,
dançava e declamava poesias. Pediu-me ainda para narrar,
sinteticamente, meu último sonho, ou, caso não lembrasse, um
devaneio qualquer. Fui respondendo enquanto ele, sentado à mesa
diante de mim, escrevia laboriosamente.
Notei
que grafara mal a palavra “sonho” e, depois de pequena hesitação,
mostrei-lhe o erro.
Olhou-me
como se eu fosse um ser de outro planeta. perguntou, — Mas então
sabes ler e escrever? — assombrado.
Eu
disse que sim, e contei como tinha aprendido, com o que fez uma longa
anotação a respeito e passou a me olhar com reverência, mas também
com alguma raiva, que não me passou desapercebida. Pois que me olhe
com raiva, pensei. Daqui a pouco meu casamento com o rei estará
consumado, poderei cagar na cabeça desse velho coroca.
Terminado
o preenchimento da ficha, fui levada à ala do sacerdote, um membro
da alta hierarquia do Templo, que me fez entrar e ordenou à
encarregada do harém que nos deixasse a sós.
— Não
quero ser interrompido, acrescentou, em tom severo.
Voltando-se
para mim, perguntou se eu sabia por que fora trazida à sua presença.
Respondi que esperava instruções a respeito da cerimônia que, na
minha cabeça, deveria ocorrer ainda naquele dia, apesar de não
estar vendo grandes preparativos para tal. Olhou-me, sempre com
aquele ar de superioridade, e disse que não era bem aquilo. Em
verdade, sua missão era outra. Tinha de certificar-se de que eu não
era portadora de nenhuma lesão, de nenhum sinal de impureza, de
lepra, enfim, aquela doença que tornava maldito quem a portasse. Eu
teria, naturalmente, de me despir, mas não havia o que temer, pois
estava diante de um santo homem, de alguém que havia muito se
livrara da concupiscência. Não hesitei — ordens que vêm do alto
não se discutem — e tirei a roupa. Ele me olhou de cima a baixo.
Nada disse, por razões obvias, mas eu sabia o que ele estava
pensando: é boa de corpo, essa aí, o rei vai passar bem.
Examinou-me
minuciosamente, e nada encontrou. Mas então lembrou-se de me mandar
tirar o véu, que eu, mesmo nua, conservara, de acordo com as
instruções da encarregada do harém. E aí estremeceu, claramente
estremeceu e não conseguia desviar o olhar da minha face.
Repulsa
e fascínio, era o que eu via em sua expressão. Repulsa pela feiura,
fascínio pelos sinais, aquele caleidoscópio cutâneo jamais por ele
visto, aquele homem que em matéria de lesões de pele devia ser uma
verdadeira enciclopédia. Pôs-se a estudá-los um a um, os sinais,
fazendo anotações e desenhos num pergaminho. Eu deixara de
interessar-lhe: o importante era aquela pequena verruga cuja forma
lembrava-lhe vagamente um inseto que certa vez vira numa árvore
junto ao lago da Galileia...
Falava
e anotava, anotava e falava. Por fim, cansada daquela história, pedi
licença, vesti-me e saí para grande decepção do sacerdote, que
não concluíra suas anotações.
Fui
conduzida ao harém, anexo ao palácio e deste separado por um
pequeno pátio com palmeiras e fontes marulhantes. Como o palácio, o
harém ultrapassava tudo que eu poderia ter imaginado em matéria de
luxo. Um vasto pavilhão, ricamente decorado com cortinas de seda,
vasos com plantas exóticas, macios tapetes. Até pavões, vaidosas
aves, faziam parte do cenário.
E
ali estavam, naturalmente, as mulheres. Foi um choque, quando as
avistei. Claro, sabia de antemão que Salomão tinha um dos maiores
haréns do mundo, mas uma coisa é saber, outra constatar com os
próprios olhos.
Deus,
que imenso mulherio ali se reunia. Mulheres em profusão, mulheres em
penca, mulheres a granel, mulheres para dar e vender, um despautério
de mulheres, um dilúvio mulheril. Mulheres de pé, sentadas ou
deitadas; conversando, rindo, sorrindo; mulheres meditativas e até
(mas num único caso) em prantos. Mulheres comendo, mulheres tocando
flauta, mulheres cheirando flores. Mulheres sozinhas; mulheres em
grupos de duas, três ou mais. Mulheres em esquadrão, mulheres em
formação de batalha, mulheres em linha reta, em círculo, em
triangulo (isósceles ou escaleno), em retângulo. Mulheres gárrulas,
mulheres sérias, mulheres agitadas, mulheres tranquilas. Quanto à
beleza (e como não poderia eu notar esse item), havia-as
esplendorosas, muito lindas, razoavelmente lindas, agradáveis. Mas
feia, nenhuma. Nenhuma, mesmo. Talvez eu pudesse rotular um ou outro
nariz como imperfeito, uma ou outra boca como mal desenhada, mas
feiúra como a minha, completa, definitiva, isso não havia. Eu era,
ai de mim, a única.
Era
fácil distinguir as esposas propriamente ditas das concubinas, que
se vestiam de maneira mais simples e tinham um ar modesto (talvez um
pouco zombeteiro, mas de qualquer forma a modéstia predominava). As
concubinas, talvez por constrangimento ignoraram a minha presença.
Mas as esposas, essas, miravam-me com atenção. Sem dúvida temiam
que a recém-chegada pudesse tornar-se a favorita do rei. Mas — eu
agora sem o véu — bastou-lhes uma rápida olhada para que se
convencessem; não, eu não era inimiga. Na corrida pelo real coração
eu não estava na pole position — ao contrário, largava muito
atrás e já largava parada.
Aliviadas,
puseram-se a rir. Olhavam-me, olhavam minha cara e — de onde saiu
essa coisa? — riam. Risinhos, a princípio risinhos, logo,
cacarejos gargalhadas — deboche escarrado, total desrespeito,
solidariedade, ça va sans dire, nenhuma. Olhem s¢ esse
bagulho, essa aí não foi parida, foi cagada. Se eu sofresse do
coração já teria morrido — e por aí afora.
Eu
nada dizia. Podia ter reagido, mais — podia ter quebrado a cara de
uma meia dúzia daquelas dengosas, porque o que me faltava em beleza
sobrava-me em músculos, e muitas na aldeia haviam sentido o peso de
meu braço. Mas eu não estava a fim de criar confusão. Não naquele
momento, pelo menos. De modo que engoli minha raiva e me deixei
conduzir pela administradora do harém, que tentava consolar-me como
podia: não dá bola, essas aí são umas invejosas, só sabem gozar
as colegas. Levou-me para um aposento onde várias escravas tomaram
conta de mim, banhando-me, perfumando-me, e por fim vestindo-me como
uma verdadeira odalisca. Quando terminaram, a mulher disse que eu me
olhasse no grande espelho ali colocado. Vacilei; uma segunda
desilusão frente à superfície polida me seria insuportável. Ela,
porém, insistiu: venha, veja como você mudou.
Olhos
fechados, pus-me em frente ao espelho. Respirei fundo, contei até
três — e me olhei.
Bem,
aquilo foi uma surpresa. Uma muito agradável surpresa. Realmente, as
moças tinham feito um bom trabalho. As vestes de seda,
semitransparentes, valorizavam-me o corpo, que, como eu já disse,
não era dos piores; além disso, havia o véu, o espesso véu que me
ocultava a face, dando-me um ar a um tempo recatado e sedutor. Grande
sacada, aquele véu.
Perguntaram-me
o que achava. O tratamento que me davam, devo dizer, era extremamente
respeitoso — afinal, eu era uma esposa do rei. Eu disse que estava
satisfeita, que minhas expectativas tinham, de fato, sido
ultrapassadas.
— Muito
bem — disse a encarregada do harém. — Se está tudo a teu gosto,
peço-te que me acompanhes à sala do trono.
Chegara
o momento, o grande momento. À medida que, seguindo a mulher pelos
longos corredores, eu me aproximava da sala do trono, todo o resto,
toda a minha vida até então, ia ficando para trás. Meu pai, minha
mãe, a família, o pastorzinho, a pedra (pobre pedra), tudo agora
era simples lembrança. Uma nova existência estava começando.
Finalmente,
chegamos. As maciças portas, guardadas por soldados armados, estavam
fechadas.
— Temos
de esperar um pouco — disse a mulher.
Ao
cabo de algum tempo, para mim insuportavelmente longo, as portas se
abriram e um homem de barbas brancas trajando luxuosas vestes,
apareceu.
Era
um dos cortesãos.
— É
ela? — perguntou, seco.
— É
ela — respondeu a encarregada do harém. — Chegou há pouco.
Como
parecia ser hábito naquele lugar, ele mirou-me com atenção.
Obviamente
tentava imaginar o rosto oculto atrás do véu. Mas logo desistiu: —
Bem. Entrem logo.
Entramos.
O rei estava sentado no trono, usando a coroa e o manto real.
Ao
vê-lo, uma vertigem se apossou de mim. Cheguei a cambalear; a
encarregada do harém teve de me amparar para que eu não caísse.
Que
homem lindo, Deus do céu. Eu nunca tinha visto homem tão lindo. Um
rosto longo, emoldurado por uma barba negra (com alguns fios
prateados), olhos escuros, profundos, boca de lábios cheios, nariz
um pouquinho adunco — o suficiente apenas para dar-lhe um charme
especial. E o porte senhoril, e o ar másculo... Lindo, lindo.
De
imediato me apaixonei por ele. Uma paixão avassaladora, definitiva,
a paixão que, eu tinha certeza, daí em diante governaria minha
vida.
Bendito
o momento em que ele resolvera me chamar. Bendita a carta que me
mandara. Bendita a boca que ditara as palavras daquela carta, bendito
aquele homem, aquele lindo homem. Eu podia passar anos olhando-o, em
muda adoração. Finalmente descobria o amor. O pastorzinho? Não,
aquilo fora apenas um teste, um treino. Com ele, meu coração se
preparara para o grande salto da paixão. Que estava agora tão
próxima.
Salomão
nem se dera conta de que eu estava ali, entregue ao que, depois
descobri, era uma de suas atividades prediletas, a saber, julgar:
decidir o que era certo e errado, o bom e o mau, decidir quem tinha e
quem não tinha razão. Naquele momento estavam diante dele duas
mulheres.
Prostitutas,
concluí de imediato. Eu nunca tinha visto rameiras em minha vida;
tais mulheres não existiam em nossa aldeia — e caso se atrevessem
a lá aparecer, meu pai as expulsaria, furioso, gritando abominação,
abominação (ou talvez as encerrasse, para seu próprio desfrute,
numa caverna). Mas não duvidei um segundo sequer de que aquelas
mulheres fossem profissionais do sexo. O jeito como se vestiam, a
berrante maquiagem... Putas, sim, indiscutivelmente putas. E feias.
Não tão feias quanto eu, mas muito feias, mesmo assim, o que fazia
supor parcos rendimentos e baixa categoria. Prostitutas uma estrela,
no máximo. Talvez duas, com boa vontade. Bem, uma estrela para a
mais alta, duas estrelas para a mais baixa, que tinha belos olhos. De
todo modo, uma estrela e meia na média. Mas não era isso o que
importava, seu ranking. O importante era que ali, na presença de um
rei poderoso, de um rei detentor de mandato divino, estavam duas
prostitutas. Que se sentiam perfeitamente à vontade no palácio
real. Que falavam em altos brados, apontando-se dedos ameaçadores.
Depois de algum tempo de gritaria, finalmente entendi o que se
passava: cada uma se dizia mãe de uma criança recém-nascida, que
um dos guardas, sem muito jeito, segurava ao colo.
Tinham
dado à luz ao mesmo tempo, um dos bebês morrera, mas algo de
confuso acontecera e o resultado é que estavam ali, disputando o
nenê.
A
mim aquilo causava espécie. Então o rei, a quem estava afeta a
administração de um país, usava seu tempo resolvendo questiúnculas
de mulheres de má vida? Salomão, no entanto (ah, mas era lindo
aquele homem), não estava nem aí para tais objeções. Pelo jeito,
prostitutas e outras pessoas de baixa classe eram frequentadoras
habituais da open house em que a sala do trono periodicamente
se transformava. Mais, obviamente tinha prazer no que estava fazendo.
Ouviu-as atentamente, fez três ou quatro perguntas (irrelevantes, no
meu modo de ver, mas quem era eu para opinar sobre relevâncias?);
depois ficou em silêncio, meditando.
E,
nesse momento, senti — e todos ali sentiram, acredito — que
alguma coisa estava acontecendo. Algo tinha mudado. O ar estava
denso, pesado, como saturado de invisível vapor. Era a sabedoria
dele. Exalava sabedoria por todos os poros, impregnava-nos com sua
sabedoria. O que dava uma sensação esquisita, uma espécie de
cosquinha, que coisa gozada. Uma das prostitutas, a de uma estrela,
até rascava as coxas com as unhas aguçadas. Tudo aquilo se
constituía em prenúncio do que havia de vir: a sentença. Que
Salomão enunciou na sua voz grave, pausada (Deus, que tesão me dava
aquela voz, meu grelo vibrava em uníssono com ela). Num primeiro
momento, a decisão soou surpreendente, cruel até: já que era
impossível esclarecer quem era a mãe verdadeira, a criança seria
cortada em duas, cada mulher recebendo uma metade. Todos
estremeceram, os cortesãos se olharam, e ouvi um deles murmurar para
outro a seu lado: essa não, o cara está dando uma de temerário, a
coisa vai pegar mal no estrangeiro.
Mas
Salomão, muito seguro, chamou de imediato um soldado para cumprir a
ordem. O homem veio, espada na mão. Momento de suspense, momento de
extremo suspense, todos ali imóveis, respiração contida, um
cortesão até tapando os olhos com a mão. Uma das mulheres, a de
duas estrelas, ficou parada, em silêncio, como conformada com a
sentença; mas a outra reagiu de maneira extraordinária. Correu para
o soldado, agarrou-se no braço que já se erguia no ar, pronto para
o golpe, e em voz estrangulada gritou, se é para matarem meu nenê,
prefiro que o entreguem inteiro para essa aí. Grande comoção no
recinto; Salomão então se pôs de pé.
— Para!
— ordenou ao soldado, que se deteve, como que congelado.
Dirigindo-se
à mulher que havia gritado, proclamou: — És a verdadeira mãe, o
grito que ouvimos foi o da tua maternidade. O filho é teu, podes
pegá-lo. O soldado, um tanto desapontado (pelo jeito seus planos de
fatiar uma criança naquele dia haviam sido frustrados), entregou o
nenê à mulher enquanto todos aplaudiam: palmas, gritos, assobios,
um verdadeiro delírio. O rei, satisfeito, sorria. Tinha do que se
orgulhar: acabara de dar uma prova concreta, palpável de sua
sabedoria. A sabedoria cuja fama se espalhara pelo mundo e que o
transformara numa lenda viva, no monarca dos monarcas.
Moacyr Scliar, in A Mulher que escreveu a Bíblia
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