domingo, 17 de julho de 2022

Sobre os sonhos

... cum prostrata sopore urguet membra quies et mens sine pondere ludit.
Petrônio

Muitos autores que escreveram sobre sonhos, consideram-nos tão somente revelações do que ocorreu em distantes regiões do mundo ou presságios do que ainda vai ocorrer.
Consideremo-los de outro ponto de vista. Os sonhos nos dão uma certa ideia das excelências" da alma humana e uma noção de sua independência.
Em primeiro lugar, nossos sonhos são demonstrações da grande independência da alma, que o poder de dormir não logra abater nem apaziguar. Quando o homem está cansado no fim do dia, esta parte ativa de seu todo continua se movendo e sem fadiga. Quando os órgãos dos sentidos aspiram seu lógico repouso e necessária reparação, e o corpo já não pode acompanhar a substância espiritual a que está unido, a alma aguça suas numerosas faculdades e continua em ação até que seu companheiro possa acompanhá-la novamente. Desta maneira, se veem os sonhos como relaxamentos e distrações da alma quando esta está desobrigada de sua máquina, esportes e recreação e deixou sua carga ir dormir.
Em segundo lugar, os sonhos mostram a agilidade e perfeição que são próprias das faculdades da mente quando estão desligadas de seu corpo. A alma fica obstruída e lenta em suas operações quando atua em conjunto com seu pesado e desajeitado companheiro. Porém nos sonhos é maravilhoso observar como e com que loquacidade e vivacidade se manifesta. A lentidão do discurso provoca arengas não premeditadas ou ágeis diálogos em idiomas dos quais pouco ou nada se sabe. A gravura abunda em prazeres, o atordoamento em réplicas sutis ou pontos de comicidade. Não há ação mais penosa da mente do que a invenção; não obstante, nos sonhos funciona com uma facilidade e uma diligência que não ocorrem quando estamos acordados. Por exemplo, creio que todos nós, em uma ocasião ou noutra, sonhamos que líamos livros, diários ou cartas: a invenção resulta tão vivida que a mente deve esforçar-se e superar-se para formular suas próprias sugestões para pôr em ordem a composição.
Desejaria insertar aqui um parágrafo de Religio medici, cujo engenhoso autor 7 se dá conta de si mesmo em seus sonhos e em seus pensamentos quando está acordado. “Em nossos sonhos estamos um pouco mais do que em nós mesmos, e o repouso do corpo parece ajudar o despertar da alma. Há uma ligação de sentido, porém a liberdade da razão e nossas concepções de vigília não coincidem com a fantasia dos nossos sonhos... Em um sonho pude compor toda uma comédia: sustentar a ação, apreender os gestos e despertar rindo de minhas próprias invenções. Quando minha memória é tão fiel como minha razão, isto é frutífero; porém eu nunca estudaria em meus sonhos, ainda que neles fizesse as minhas devoções; nossas espessas memórias têm tão escasso sustento em nosso abstrato entendimento, que esquecem a história e somente podem relatar as nossas almas acordadas uma confusa e parcial narrativa do que ocorreu... Assim, observou-se que o homem, no momento de sua partida, fala e racionaliza demasiadamente sobre si mesmo: a alma começa sentir-se livre de suas amarras físicas e a racionalizar sobre si mesma como deve ser feito: a discutir imperiosamente sobre sua imortalidade”.

7 Religio medici: A religião de um médico (1643 — um ano antes havia aparecido uma edição pirata repleta de erros), de Thomas Browne (1605-1682). Trata-se de uma série de notas pessoais de grande ponderação espiritual e religiosa, rica de temas, escrita em 1635. Antes de ser impressa, circulou em cópias manuscritas. Alcançou grande êxito em inglês, latim, francês, flamengo e alemão, e gozou da estima do dr. Johnson e após ele, de Lamb, Coleridge, Carlyle, Browning, etc.

Em terceiro lugar, as paixões afetam a mente com mais força quando estamos adormecidos. Alegria e tristeza dão uma sensação mais vigorosa de prazer e de pesar do que em qualquer outro momento. E o mesmo acontece com a devoção — tal como dá a entender o citado autor — toda a vez que a alma se eleva enquanto o corpo repousa. A experiência de todo o homem informará a respeito, ainda que de maneira diferente, conforme a constituição de cada um.
O que desejo destacar é p divino poder da alma, capaz de produzir sua própria companhia. Conversa com inumeráveis seres de sua própria criação e se transporta a dez mil cenários de sua própria imaginação. É o seu próprio teatro, seu ator e seu espectador. Isto me faz recordar o que Plutarco atribui a Heráclito: todo homem acordado habita um mundo comum; porém cada um pensa que habita seu próprio mundo quando dorme (sonha); acordado, conversa com o mundo da natureza; dormindo, com o seu mundo particular...
Tampouco devo esquecer a observação de Tertuliano sobre o poder divinatório dos sonhos. Nenhum crente nas Divinas Escrituras pode duvidar deste poder; e inumeráveis exemplos nos dão também escritores antigos e modernos, tanto sagrados quanto profanos. Se estes presságios obscuros, se estas visões noturnas se originam de algum poder latente da alma ou de alguma comunicação com o Ser Supremo, ou acontecem por intervenção de espíritos dependentes, muito foi elocubrado a respeito por mentes sábias. Sua existência, porém, é incontestável, e foi destacada por autores alheios a toda suspeita de superstição ou entusiasmo.
Não creio que a alma se desligue inteiramente do corpo. Basta com que não esteja excessivamente fundida com a matéria ou que não se encontre enredada e perplexa pela máquina da vigília. A união com o corpo se desliga o necessário para dar mais liberdade à alma, a qual se recolhe em si mesma e recupera sua capacidade de surgir.

Joseph Addison, no The Spectator, n° 487, Londres — 18 de setembro de 1712 (apud Jorge Luís Borges, Livro de Sonhos)

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