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cum prostrata sopore urguet membra quies et mens sine pondere ludit.
Petrônio
Muitos
autores que escreveram sobre sonhos, consideram-nos tão somente
revelações do que ocorreu em distantes regiões do mundo ou
presságios do que ainda vai ocorrer.
Consideremo-los
de outro ponto de vista. Os sonhos nos dão uma certa ideia das
excelências" da alma humana e uma noção de sua independência.
Em
primeiro lugar, nossos sonhos são demonstrações da grande
independência da alma, que o poder de dormir não logra abater nem
apaziguar. Quando o homem está cansado no fim do dia, esta parte
ativa de seu todo continua se movendo e sem fadiga. Quando os órgãos
dos sentidos aspiram seu lógico repouso e necessária reparação, e
o corpo já não pode acompanhar a substância espiritual a que está
unido, a alma aguça suas numerosas faculdades e continua em ação
até que seu companheiro possa acompanhá-la novamente. Desta
maneira, se veem os sonhos como relaxamentos e distrações da alma
quando esta está desobrigada de sua máquina, esportes e recreação
e deixou sua carga ir dormir.
Em
segundo lugar, os sonhos mostram a agilidade e perfeição que são
próprias das faculdades da mente quando estão desligadas de seu
corpo. A alma fica obstruída e lenta em suas operações quando atua
em conjunto com seu pesado e desajeitado companheiro. Porém nos
sonhos é maravilhoso observar como e com que loquacidade e
vivacidade se manifesta. A lentidão do discurso provoca arengas não
premeditadas ou ágeis diálogos em idiomas dos quais pouco ou nada
se sabe. A gravura abunda em prazeres, o atordoamento em réplicas
sutis ou pontos de comicidade. Não há ação mais penosa da mente
do que a invenção; não obstante, nos sonhos funciona com uma
facilidade e uma diligência que não ocorrem quando estamos
acordados. Por exemplo, creio que todos nós, em uma ocasião ou
noutra, sonhamos que líamos livros, diários ou cartas: a invenção
resulta tão vivida que a mente deve esforçar-se e superar-se para
formular suas próprias sugestões para pôr em ordem a composição.
Desejaria
insertar aqui um parágrafo de Religio medici, cujo engenhoso
autor 7 se dá conta de si mesmo em seus sonhos e em seus pensamentos
quando está acordado. “Em nossos sonhos estamos um pouco mais do
que em nós mesmos, e o repouso do corpo parece ajudar o despertar da
alma. Há uma ligação de sentido, porém a liberdade da razão e
nossas concepções de vigília não coincidem com a fantasia dos
nossos sonhos... Em um sonho pude compor toda uma comédia: sustentar
a ação, apreender os gestos e despertar rindo de minhas próprias
invenções. Quando minha memória é tão fiel como minha razão,
isto é frutífero; porém eu nunca estudaria em meus sonhos, ainda
que neles fizesse as minhas devoções; nossas espessas memórias têm
tão escasso sustento em nosso abstrato entendimento, que esquecem a
história e somente podem relatar as nossas almas acordadas uma
confusa e parcial narrativa do que ocorreu... Assim, observou-se que
o homem, no momento de sua partida, fala e racionaliza demasiadamente
sobre si mesmo: a alma começa sentir-se livre de suas amarras
físicas e a racionalizar sobre si mesma como deve ser feito: a
discutir imperiosamente sobre sua imortalidade”.
7
Religio medici: A religião de um médico (1643 — um ano antes
havia aparecido uma edição pirata repleta de erros), de Thomas
Browne (1605-1682). Trata-se de uma série de notas pessoais de
grande ponderação espiritual e religiosa, rica de temas, escrita em
1635. Antes de ser impressa, circulou em cópias manuscritas.
Alcançou grande êxito em inglês, latim, francês, flamengo e
alemão, e gozou da estima do dr. Johnson e após ele, de Lamb,
Coleridge, Carlyle, Browning, etc.
Em
terceiro lugar, as paixões afetam a mente com mais força quando
estamos adormecidos. Alegria e tristeza dão uma sensação mais
vigorosa de prazer e de pesar do que em qualquer outro momento. E o
mesmo acontece com a devoção — tal como dá a entender o citado
autor — toda a vez que a alma se eleva enquanto o corpo repousa. A
experiência de todo o homem informará a respeito, ainda que de
maneira diferente, conforme a constituição de cada um.
O
que desejo destacar é p divino poder da alma, capaz de produzir sua
própria companhia. Conversa com inumeráveis seres de sua própria
criação e se transporta a dez mil cenários de sua própria
imaginação. É o seu próprio teatro, seu ator e seu espectador.
Isto me faz recordar o que Plutarco atribui a Heráclito: todo homem
acordado habita um mundo comum; porém cada um pensa que habita seu
próprio mundo quando dorme (sonha); acordado, conversa com o mundo
da natureza; dormindo, com o seu mundo particular...
Tampouco
devo esquecer a observação de Tertuliano sobre o poder divinatório
dos sonhos. Nenhum crente nas Divinas Escrituras pode duvidar deste
poder; e inumeráveis exemplos nos dão também escritores antigos e
modernos, tanto sagrados quanto profanos. Se estes presságios
obscuros, se estas visões noturnas se originam de algum poder
latente da alma ou de alguma comunicação com o Ser Supremo, ou
acontecem por intervenção de espíritos dependentes, muito foi
elocubrado a respeito por mentes sábias. Sua existência, porém, é
incontestável, e foi destacada por autores alheios a toda suspeita
de superstição ou entusiasmo.
Não
creio que a alma se desligue inteiramente do corpo. Basta com que não
esteja excessivamente fundida com a matéria ou que não se encontre
enredada e perplexa pela máquina da vigília. A união com o corpo
se desliga o necessário para dar mais liberdade à alma, a qual se
recolhe em si mesma e recupera sua capacidade de surgir.
Joseph Addison, no The Spectator, n° 487, Londres — 18 de setembro de 1712 (apud Jorge Luís Borges, Livro de Sonhos)
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