sexta-feira, 1 de julho de 2022

Santiago El Campeón


[...]
É um grande peixe, e tenho de o convencer, pensou. Não devo deixá-lo nunca tomar conhecimento da sua própria força, nem do que poderia fazer se corresse. Se eu estivesse no lugar dele, jogava o tudo por tudo, até que alguma coisa rebentasse. Mas, graças a Deus, não são tão inteligentes como nós, que os matamos, embora sejam mais nobres e mais capazes”.
O velho vira muito peixe graúdo. Vira muitos que pesavam mais de quinhentos quilos, e pescara já dois dessa envergadura, mas nunca só. E agora, só, sem terra à vista, estava amarrado ao maior peixe que jamais vira, maior do que jamais ouvira, e a mão esquerda continuava enclavinhada como as garras de uma águia.
Há-de abrir-se, pensou. Não há-de deixar de se abrir, para ajudar a mão direita. Há três coisas que são irmãs: o peixe e as minhas duas mãos. Tem de abrir-se. É indecente estar assim”. O peixe abrandara o andamento, voltara à velocidade habitual.
Porque terá ele saltado?, pensou o velho. Saltou quase que para me mostrar como era grande. Seja como for, já sei. Quem me dera poder mostrar-lhe que homem eu sou. Mas era capaz de ver a mão dormente. É melhor ele julgar que sou mais homem do que sou, e assim serei. Quem me dera ser o peixe, com tudo o que ele tem, só contra a minha vontade e a minha inteligência”.
Instalou-se confortavelmente contra a madeira, e aceitou o sofrimento tal qual vinha, e o peixe nadava firmemente, e o barco ia devagar na água escura. Estava a levantar-se um pouco de mar, trazido pelo vento leste, e ao meio-dia a mão esquerda do velho voltara a si.
Más notícias, peixe – disse, e acomodou a linha no saco que lhe cobria os ombros.
Sentia-se bem, mas sofria, embora não admitisse que sofria.
Não sou religioso. Mas vou dizer dez Padre-Nossos e dez Ave-Marias, para que apanhe este peixe, e prometo ir em peregrinação à Virgem de Cobre, se o apanhar. Isto é promessa.
Começou a dizer mecanicamente as orações.
Às vezes estava tão cansado que não se lembrava da oração, e tinha de as dizer depressa, para que saíssem automaticamente.
E pensou: as ave-marias são mais fáceis de dizer que os padre-nossos.
Avé Maria, cheia de Graça, o Senhor é convosco. Bendita sois Vós entre as mulheres, bendito é o fruto do Vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém.  E, depois, acrescentou:  Santa Virgem, roga pela morte deste peixe. Apesar de ele ser maravilhoso.
Ditas as orações, sentindo-se muito melhor, mas sofrendo exatamente na mesma, ou talvez um pouco mais, recostou-se na madeira da proa e começou, mecanicamente, a mexer os dedos da mão esquerda.
O sol estava quente, embora estivesse a levantar-se levemente uma brisa.


O melhor é eu iscar essa linhazinha pendurada à popa.
Se o peixe decide passar mais outra noite, hei-de precisar de comer, e a água é pouca na garrafa. Não me parece que apanhe por aqui mais que um peixinho. Mas, se o comer bem fresco, não cairá mal. Quem me dera que, esta noite, me saltasse para bordo um peixe-voador. Mas não tenho luz para os atrair. Um peixe-voador cru é excelente, e não tinha de o arranjar, pois preciso poupar as forças. Deus meu, não supunha que ele fosse tão grande!
Mas hei-de matá-lo. Em toda a sua magnificência e glória.
Embora seja injusto, pensou. Mas hei-de mostrar-lhe do que um homem é capaz e o que pode aguentar”.
Eu disse ao rapaz que era um velho estranho. Agora, cumpre-me prová-lo.
O milhar de vezes em que o provara nada valia. Estava a prová-lo mais uma vez. De cada vez era a primeira, e, ao fazê-lo, nunca pensava no passado.
Quem me dera que ele dormisse, para eu poder dormir e sonhar com os leões, pensou. Porque é que só me restam os leões? Não penses, velhote. Descansa, encostado agradavelmente à madeira, e em nada penses. Ele está a trabalhar. Trabalha tu o menos que puderes”.
A tarde ia avançando, e o barco continuava a mover-se devagar e com firmeza. Mas havia um esforço a mais para o peixe, que era a brisa de leste, e o velho cavalgava suavemente a breve ondulação, e a dor da corda nas costas vinha aceitável, suportável.
Certa vez, à tarde, a linha principiou de novo a subir. Mas o peixe apenas continuou a nadar a um nível ligeiramente mais alto. O sol batia no ombro e no braço esquerdo do velho, e nas suas costas. E assim soube que o peixe virara de rumo a nordeste.
Agora que já o vira uma vez, era capaz de imaginar o peixe a nadar nas águas, com as purpúreas barbatanas peitorais abertas como asas, e a grande cauda ereta cortando a treva.
Verá ele muito a essa profundidade?, pensou o velho. Os olhos dele são enormes, e um cavalo, com muito menos olho, é capaz de ver no escuro. Em tempos, era eu capaz de ver bem no escuro. Não na treva absoluta. Mas quase como um gato vê”.
O sol e o movimento firme dos dedos haviam despertado agora por completo a mão esquerda; começou a transferir parte do esforço para ela, e contraiu os músculos das costas para mudar um pouco a dor da corda.
Se não estás cansado, peixe – disse alto –, deves ser muito estranho.
Sentia-se ele muito cansado, e sabia que a noite já não tardava, e procurou pensar noutras coisas. Pensou no campeonato – para ele as Gran Ligas – e sabia que os Yankees de Nova York estavam a jogar com os Tigres de Detroit.
É o segundo dia de que não sei o resultado dos juegos, pensou. Mas preciso de ter confiança e devo ser digno do grande DiMaggio que tudo faz perfeitamente, mesmo com a dor da espora de osso no calcanhar. O que será espora de osso? Una espuela de hueso. Nós não temos disso. Será tão doloroso como a espora de um galo de combate no calcanhar? Acho que eu não era capaz de suportar isso, ou a perda de um olho, ou dos dois olhos, e continuar a lutar como os galos de combate. O homem não vale muito ao pé dos grandes pássaros e animais. Mais me valia ser esse bicho na treva do mar”.
A menos que apareçam tubarões – disse alto. – Se os tubarões aparecem, Deus se compadeça dele e de mim.
Julgas que o grande DiMaggio seria capaz de ficar com um peixe tanto tempo como eu com este? Tenho a certeza de que seria, e mais, pois que é jovem e forte. O pai dele era pescador. Mas a espora doer-lhe-ia muito?”
Não sei – concluiu em voz alta. – Foi coisa que nunca tive.
Ao pôr-se o sol recordou, para ganhar mais confiança, a vez em que, na taberna de Casablanca, jogara forças com o negralhão de Cienfuegos, que era o homem mais forte das docas. Tinham passado um dia e uma noite, com os cotovelos na linha traçada a giz na mesa, os antebraços erguidos e as mãos apertadas uma na outra. Cada qual tentava forçar a mão do outro a chegar à mesa. Houvera muitas apostas, e a gente entrava e saía da sala, à luz do petróleo, e ele fitava o braço e a mão e a cara do negro. Mudavam os juízes de quatro em quatro horas, passadas as primeiras oito, para os juízes poderem dormir. O sangue rebentou das unhas das mãos do negro e das suas, e ambos se fitavam nos olhos e às mãos e aos antebraços, e os que apostavam entravam e saíam da sala, sentavam-se a ver, em cadeiras encostadas à parede. As paredes estavam pintadas de azul claro e eram de madeira, e os candeeiros projetavam nelas as sombras. A sombra do negro era imensa, e movia-se na parede, ao sopro da brisa nas chamas.
As apostas mudavam pela noite adiante; e ao negro davam “rum” e a ele acendiam cigarros. O negro, depois do “rum”, tentava um esforço tremendo, e uma vez ia levando o velho, que não era então um velho mas Santiago El Campeón, quase três polegadas para fora do equilíbrio. Mas o velho levantara outra vez a mão. E tinha a certeza de que o negro, que era um belo homem, grande atleta, estava vencido. Ao romper do dia, quando os espectadores reclamavam que o desafio fosse anulado e o juiz abanava a cabeça, desencadeara um esforço que forçara a mão do negro, mais e mais, e mais, até pousar na madeira. O desafio começara num domingo de manhã e acabara na manhã de segunda-feira. Muitos dos que apostavam reclamavam a suspensão, porque tinham de ir para o trabalho nas docas, na estiva de sacos de açúcar ou na Havana Coal Company. De outro modo, todos teriam querido que fosse até ao fim. Mas ele tinha acabado, e antes de todos irem para o trabalho.
Por muito tempo depois disso todos lhe chamavam O Campeão, e houvera uma desforra na Primavera. Mas não tinha sido apostado muito dinheiro, e ele ganhara sem dificuldade, uma vez que, no primeiro encontro, destruíra a confiança do negro de Cienfuegos. Depois, ainda tivera uns desafios; e depois, mais nenhum. Decidira que podia vencer a qualquer, se tal desejasse muito; e decidira que aquilo lhe avariava a mão direita para a pesca. Ainda tentara uns jogos de treino com a mão esquerda. Mas a mão esquerda tinha sido sempre traiçoeira e não fazia nunca o que ele lhe exigia, e não confiava nela.
O sol há-de agora pô-la boa, pensou. Não há-de tornar a ficar assim, a menos que de noite faça muito frio. Sempre quero ver o que acontecerá esta noite”.
Um aeroplano passou sobre ele, rumo a Miami, e o velho seguiu-lhe com os olhos a sombra, que assustava cardumes de peixes-voadores.

Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar

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