[...]
“É
um grande peixe, e tenho de o convencer, pensou. Não devo deixá-lo
nunca tomar conhecimento da sua própria força, nem do que poderia
fazer se corresse. Se eu estivesse no lugar dele, jogava o tudo por
tudo, até que alguma coisa rebentasse. Mas, graças a Deus, não são
tão inteligentes como nós, que os matamos, embora sejam mais nobres
e mais capazes”.
O
velho vira muito peixe graúdo. Vira muitos que pesavam mais de
quinhentos quilos, e pescara já dois dessa envergadura, mas nunca
só. E agora, só, sem terra à vista, estava amarrado ao maior peixe
que jamais vira, maior do que jamais ouvira, e a mão esquerda
continuava enclavinhada como as garras de uma águia.
“Há-de
abrir-se, pensou. Não há-de deixar de se abrir, para ajudar a mão
direita. Há três coisas que são irmãs: o peixe e as minhas duas
mãos. Tem de abrir-se. É indecente estar assim”. O peixe
abrandara o andamento, voltara à velocidade habitual.
“Porque
terá ele saltado?, pensou o velho. Saltou quase que para me mostrar
como era grande. Seja como for, já sei. Quem me dera poder
mostrar-lhe que homem eu sou. Mas era capaz de ver a mão dormente. É
melhor ele julgar que sou mais homem do que sou, e assim serei. Quem
me dera ser o peixe, com tudo o que ele tem, só contra a minha
vontade e a minha inteligência”.
Instalou-se
confortavelmente contra a madeira, e aceitou o sofrimento tal qual
vinha, e o peixe nadava firmemente, e o barco ia devagar na água
escura. Estava a levantar-se um pouco de mar, trazido pelo vento
leste, e ao meio-dia a mão esquerda do velho voltara a si.
– Más
notícias, peixe – disse, e acomodou a linha no saco que lhe cobria
os ombros.
Sentia-se
bem, mas sofria, embora não admitisse que sofria.
– Não
sou religioso. Mas vou dizer dez Padre-Nossos e dez Ave-Marias, para
que apanhe este peixe, e prometo ir em peregrinação à Virgem de
Cobre, se o apanhar. Isto é promessa.
Começou
a dizer mecanicamente as orações.
Às
vezes estava tão cansado que não se lembrava da oração, e tinha
de as dizer depressa, para que saíssem automaticamente.
E
pensou: as ave-marias são mais fáceis de dizer que os padre-nossos.
– Avé
Maria, cheia de Graça, o Senhor é convosco. Bendita sois Vós entre
as mulheres, bendito é o fruto do Vosso ventre, Jesus. Santa Maria,
Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa
morte. Amém. – E, depois, acrescentou: – Santa Virgem, roga pela
morte deste peixe. Apesar de ele ser maravilhoso.
Ditas
as orações, sentindo-se muito melhor, mas sofrendo exatamente na
mesma, ou talvez um pouco mais, recostou-se na madeira da proa e
começou, mecanicamente, a mexer os dedos da mão esquerda.
O
sol estava quente, embora estivesse a levantar-se levemente uma
brisa.
•
O
melhor é eu iscar essa linhazinha pendurada à popa.
Se
o peixe decide passar mais outra noite, hei-de precisar de comer, e a
água é pouca na garrafa. Não me parece que apanhe por aqui mais
que um peixinho. Mas, se o comer bem fresco, não cairá mal. Quem me
dera que, esta noite, me saltasse para bordo um peixe-voador. Mas não
tenho luz para os atrair. Um peixe-voador cru é excelente, e não
tinha de o arranjar, pois preciso poupar as forças. Deus meu, não
supunha que ele fosse tão grande!
– Mas
hei-de matá-lo. Em toda a sua magnificência e glória.
“Embora
seja injusto, pensou. Mas hei-de mostrar-lhe do que um homem é capaz
e o que pode aguentar”.
– Eu
disse ao rapaz que era um velho estranho. Agora, cumpre-me prová-lo.
O
milhar de vezes em que o provara nada valia. Estava a prová-lo mais
uma vez. De cada vez era a primeira, e, ao fazê-lo, nunca pensava no
passado.
“Quem
me dera que ele dormisse, para eu poder dormir e sonhar com os leões,
pensou. Porque é que só me restam os leões? Não penses, velhote.
Descansa, encostado agradavelmente à madeira, e em nada penses. Ele
está a trabalhar. Trabalha tu o menos que puderes”.
A
tarde ia avançando, e o barco continuava a mover-se devagar e com
firmeza. Mas havia um esforço a mais para o peixe, que era a brisa
de leste, e o velho cavalgava suavemente a breve ondulação, e a dor
da corda nas costas vinha aceitável, suportável.
Certa
vez, à tarde, a linha principiou de novo a subir. Mas o peixe apenas
continuou a nadar a um nível ligeiramente mais alto. O sol batia no
ombro e no braço esquerdo do velho, e nas suas costas. E assim soube
que o peixe virara de rumo a nordeste.
Agora
que já o vira uma vez, era capaz de imaginar o peixe a nadar nas
águas, com as purpúreas barbatanas peitorais abertas como asas, e a
grande cauda ereta cortando a treva.
“Verá
ele muito a essa profundidade?, pensou o velho. Os olhos dele são
enormes, e um cavalo, com muito menos olho, é capaz de ver no
escuro. Em tempos, era eu capaz de ver bem no escuro. Não na treva
absoluta. Mas quase como um gato vê”.
O
sol e o movimento firme dos dedos haviam despertado agora por
completo a mão esquerda; começou a transferir parte do esforço
para ela, e contraiu os músculos das costas para mudar um pouco a
dor da corda.
– Se
não estás cansado, peixe – disse alto –, deves ser muito
estranho.
Sentia-se
ele muito cansado, e sabia que a noite já não tardava, e procurou
pensar noutras coisas. Pensou no campeonato – para ele as Gran
Ligas – e sabia que os Yankees de Nova York estavam a jogar com os
Tigres de Detroit.
“É
o segundo dia de que não sei o resultado dos juegos, pensou. Mas
preciso de ter confiança e devo ser digno do grande DiMaggio que
tudo faz perfeitamente, mesmo com a dor da espora de osso no
calcanhar. O que será espora de osso? Una espuela de hueso.
Nós não temos disso. Será tão doloroso como a espora de um galo
de combate no calcanhar? Acho que eu não era capaz de suportar isso,
ou a perda de um olho, ou dos dois olhos, e continuar a lutar como os
galos de combate. O homem não vale muito ao pé dos grandes pássaros
e animais. Mais me valia ser esse bicho na treva do mar”.
– A
menos que apareçam tubarões – disse alto. – Se os tubarões
aparecem, Deus se compadeça dele e de mim.
“Julgas
que o grande DiMaggio seria capaz de ficar com um peixe tanto tempo
como eu com este? Tenho a certeza de que seria, e mais, pois que é
jovem e forte. O pai dele era pescador. Mas a espora doer-lhe-ia
muito?”
– Não
sei – concluiu em voz alta. – Foi coisa que nunca tive.
Ao
pôr-se o sol recordou, para ganhar mais confiança, a vez em que, na
taberna de Casablanca, jogara forças com o negralhão de Cienfuegos,
que era o homem mais forte das docas. Tinham passado um dia e uma
noite, com os cotovelos na linha traçada a giz na mesa, os
antebraços erguidos e as mãos apertadas uma na outra. Cada qual
tentava forçar a mão do outro a chegar à mesa. Houvera muitas
apostas, e a gente entrava e saía da sala, à luz do petróleo, e
ele fitava o braço e a mão e a cara do negro. Mudavam os juízes de
quatro em quatro horas, passadas as primeiras oito, para os juízes
poderem dormir. O sangue rebentou das unhas das mãos do negro e das
suas, e ambos se fitavam nos olhos e às mãos e aos antebraços, e
os que apostavam entravam e saíam da sala, sentavam-se a ver, em
cadeiras encostadas à parede. As paredes estavam pintadas de azul
claro e eram de madeira, e os candeeiros projetavam nelas as
sombras. A sombra do negro era imensa, e movia-se na parede, ao sopro
da brisa nas chamas.
As
apostas mudavam pela noite adiante; e ao negro davam “rum” e a
ele acendiam cigarros. O negro, depois do “rum”, tentava um
esforço tremendo, e uma vez ia levando o velho, que não era então
um velho mas Santiago El Campeón, quase três polegadas para
fora do equilíbrio. Mas o velho levantara outra vez a mão. E tinha
a certeza de que o negro, que era um belo homem, grande atleta,
estava vencido. Ao romper do dia, quando os espectadores reclamavam
que o desafio fosse anulado e o juiz abanava a cabeça, desencadeara
um esforço que forçara a mão do negro, mais e mais, e mais, até
pousar na madeira. O desafio começara num domingo de manhã e
acabara na manhã de segunda-feira. Muitos dos que apostavam
reclamavam a suspensão, porque tinham de ir para o trabalho nas
docas, na estiva de sacos de açúcar ou na Havana Coal Company. De
outro modo, todos teriam querido que fosse até ao fim. Mas ele tinha
acabado, e antes de todos irem para o trabalho.
Por
muito tempo depois disso todos lhe chamavam O Campeão,
e houvera uma desforra na Primavera. Mas não tinha sido apostado
muito dinheiro, e ele ganhara sem dificuldade, uma vez que, no
primeiro encontro, destruíra a confiança do negro de Cienfuegos.
Depois, ainda tivera uns desafios; e depois, mais nenhum. Decidira
que podia vencer a qualquer, se tal desejasse muito; e decidira que
aquilo lhe avariava a mão direita para a pesca. Ainda tentara uns
jogos de treino com a mão esquerda. Mas a mão esquerda tinha sido
sempre traiçoeira e não fazia nunca o que ele lhe exigia, e não
confiava nela.
“O
sol há-de agora pô-la boa, pensou. Não há-de tornar a ficar
assim, a menos que de noite faça muito frio. Sempre quero ver o que
acontecerá esta noite”.
Um
aeroplano passou sobre ele, rumo a Miami, e o velho seguiu-lhe com os
olhos a sombra, que assustava cardumes de peixes-voadores.
Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar
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