quinta-feira, 28 de julho de 2022

O tintureiro mascarado Hákim de Merv

para Angélica Ocampo

Se não me engano, as fontes originais de informação acerca de Al Moqanna, o Profeta Velado (ou, mais estritamente, Mascarado) do Jorasán, reduzem-se a quatro: a) os excertos da História dos califas conservados por Baladhuri; b) o Manual do gigante ou Livro da precisão e da revisão, do historiador oficial dos abássidas, Ibn abi Tair Tarfur; c) o códice árabe intitulado A aniquilação da rosa, no qual se refutam as heresias abomináveis da Rosa escura ou Rosa escondida, que era o livro canônico do Profeta; d) moedas sem efígie desenterradas pelo engenheiro Andrusov numa demolição da Estrada de Ferro Transcaspiana. Essas moedas foram depositadas no Gabinete Numismático de Teerã e contêm dísticos persas que resumem ou corrigem passagens da Aniquilação. A Rosa original se perdeu, já que o manuscrito encontrado em 1899, publicado não sem leviandade pelo Morgenländisches Archiv, foi declarado apócrifo por Horn e depois por Sir Percy Sykes.
A fama ocidental do Profeta deve-se a um palavroso poema de Moore, carregado de suspiros e saudades de conspirador irlandês.

A PÚRPURA ESCARLATE

Aos 120 anos da Hégira e 736 da Cruz, o homem Hákim, que os homens daquele tempo e daquele espaço apelidariam logo de O Velado, nasceu no Turquestão. Sua pátria foi a antiga cidade de Merv, cujos jardins e vinhedos e campinas olham tristemente para o deserto. O meio-dia é branco e deslumbrante, quando não obscurecido pelas nuvens de pó que sufocam os homens e deixam uma lâmina esbranquiçada nos cachos negros.
Hákim foi criado nessa cidade cansada. Sabemos que um irmão de seu pai o adestrou no ofício de tintureiro: arte de ímpios, de falsários e de inconstantes que inspirou os primeiros anátemas de sua pródiga carreira.

Meu rosto é de ouro”, declara numa página da Aniquilação, “mas macerei a púrpura e mergulhei na segunda noite a lã não cardada e embebi na terceira noite a lã preparada, e os imperadores das ilhas disputam entre si ainda aquela roupa sangrenta. Assim pequei nos anos de juventude e transtornei as verdadeiras cores das criaturas. O Anjo dizia-me que os carneiros não eram da cor dos tigres; Satã dizia-me que o Poderoso queria que o fossem e se valia de minha astúcia e minha púrpura. Agora sei que o Anjo e Satã se desviavam da verdade e que toda cor é abominável.”

No ano 146 da Hégira, Hákim desapareceu de sua pátria. Encontraram destruídas as caldeiras e cubas de imersão, assim como um alfanje de Chiraz e um espelho de bronze.

O TOURO

No fim da lua de xabã do ano de 158, o ar do deserto estava muito claro e os homens olhavam para o poente em busca da lua de ramadã, que promove a mortificação e o jejum. Eram escravos, esmoleres, negociantes de cavalos, ladrões de camelos e magarefes. Gravemente sentados na terra, junto do portão de uma pousada de caravanas da rota de Merv, aguardavam o sinal. Olhavam para o ocaso, e a cor do ocaso era a da areia.
Do fundo do deserto vertiginoso (cujo sol dá febre, assim como a lua, o estupor) viram se adiantar três figuras, que lhes pareceram altíssimas. As três eram humanas e a do meio tinha cabeça de touro. Quando se aproximaram, viram que esta usava uma máscara e que os outros dois eram cegos.
Alguém (como nos contos d’As mil e uma noites) indagou a razão daquela maravilha. “São cegos”, o homem da máscara declarou, “porque viram meu rosto.”

O LEOPARDO

O cronista dos abássidas relata que o homem do deserto (cuja voz era singularmente doce, ou assim pareceu por diferir da brutalidade de sua máscara) lhes disse que eles aguardavam o sinal de um mês de penitência, mas que ele pregava um sinal melhor: o de toda uma vida de penitência e de uma morte infamante. Disse-lhes que era Hákim filho de Osman, e que, no ano 146 da Hégira, entrara um homem em sua casa e, após se purificar e rezar, tinha lhe cortado a cabeça com um alfanje e levara-a para o céu. Sobre a mão direita do homem (que era o anjo Gabriel) sua cabeça estivera perante o Senhor, que lhe deu a missão de profetizar e inculcou nele palavras tão antigas que sua repetição queimava as bocas e lhe infundiu um glorioso resplendor que os olhos mortais não toleravam. Tal era a justificação da Máscara. Quando todos os homens da Terra professassem a nova lei, o Rosto seria descoberto e eles poderiam adorá-lo sem risco — como já os anjos o adoravam. Proclamada sua mensagem, Hákim exortou-os a uma guerra santa — um jihad — e a seu conveniente martírio.
Os escravos, esmoleres, negociantes de cavalos, ladrões de camelos e magarefes negaram-lhe sua fé: uma voz gritou bruxo, e outra, impostor.
Alguém havia trazido um leopardo — talvez um exemplar daquela raça esbelta e sangrenta que os monteiros persas educam. A verdade é que rompeu sua prisão. Excetuando-se o profeta mascarado e os dois acólitos, o povo se atropelou para fugir. Quando voltou, a fera tinha ficado cega. Diante dos olhos luminosos e mortos, os homens adoraram Hákim e admitiram sua virtude sobrenatural.

O PROFETA VELADO

O historiador oficial dos abássidas narra sem maior entusiasmo os progressos de Hákim, o Velado, no Kurassan. Essa província — muito comovida pela desventura e pela crucificação de seu mais famoso caudilho — abraçou com desesperado fervor a doutrina do Rosto Resplandecente, e tributou-lhe seu sangue e seu ouro. (Hákim, naquele momento, descartou sua efígie brutal por um quádruplo véu de seda branca recamado de pedras. A cor emblemática dos Banu Abbas era o preto; Hákim escolheu a cor branca — a mais contraditória — para o Véu Resguardador, os pendões e os turbantes.) A campanha começou bem. É verdade que no Livro da precisão as bandeiras do califa são vitoriosas em todo lugar, mas, como o resultado mais frequente dessas vitórias é a destituição de generais e o abandono de castelos inexpugnáveis, o avisado leitor sabe a que se ater. No final da lua de rejeb do ano de 161, a famosa cidade de Nixapur abriu suas portas de metal para o Mascarado; em princípios de 162, a de Astarabad. A atuação militar de Hákim (como a de outro profeta mais afortunado) reduzia-se à oração em voz de tenor, mas elevada à Divindade a partir de um lombo de camelo avermelhado, no coração agitado das batalhas. A seu redor, silvavam as setas, sem nunca feri-lo. Parecia buscar o perigo: na noite em que alguns leprosos detestados rondaram seu palácio, ordenou que se apresentassem, beijou-os e ofertou-lhes prata e ouro.
Delegava as fadigas de governar a seis ou sete adeptos. Era dado à meditação e à paz: um harém de cento e catorze mulheres cegas tratava de aplacar as necessidades de seu corpo divino.

OS ESPELHOS ABOMINÁVEIS

Desde que suas palavras não invalidem a fé ortodoxa, o islã tolera a aparição de amigos confidenciais de Deus, por indiscretos ou ameaçadores que sejam. O profeta talvez não tivesse desdenhado os favores daquele desdém, mas seus partidários, suas vitórias e a cólera pública do califa — que era Mohamed Al Mahdi — forçaram-no à heresia. Essa dissensão arruinou-o, mas antes o obrigou a definir os artigos de uma religião pessoal, ainda que com evidentes infiltrações das pré-histórias gnósticas.
No princípio da cosmogonia de Hákim há um Deus espectral. Essa divindade carece majestosamente de origem, assim como de nome e de rosto. É um Deus imutável, mas sua imagem projetou nove sombras que, condescendendo à ação, dotaram e presidiram um primeiro céu. Dessa primeira coroa demiúrgica procedeu uma segunda, também com anjos, potestades e tronos, e estes fundaram outro céu mais abaixo, que era a duplicação simétrica do inicial. Esse segundo conclave se viu reproduzido num terceiro e esse, noutro inferior, e assim até novecentos e noventa e nove. O senhor do céu do fundo é quem rege — sombra de sombras de outras sombras — e sua fração de divindade tende a zero.
A Terra que habitamos é um erro, uma incompetente paródia. Os espelhos e a paternidade são abomináveis, porque a multiplicam e afirmam. O asco é a virtude fundamental. Duas disciplinas (cuja escolha o profeta deixava livre) podem nos conduzir a ela: a abstinência e o excesso, o exercício da carne ou a castidade.
O paraíso e o inferno de Hákim não eram menos desesperados. “Aos que negam a Palavra, aos que negam o Véu Adornado de Joias e o Rosto”, diz uma imprecação que se conserva da Rosa escondida, “prometo-lhes um inferno maravilhoso, porque cada um deles reinará sobre novecentos e noventa e nove impérios de fogo, e, em cada império, sobre novecentos e noventa e nove montes de fogo, e, em cada monte, sobre novecentos e noventa e nove torres de fogo, e, em cada torre, sobre novecentos e noventa e nove andares de fogo, e, em cada andar, sobre novecentos e noventa e nove leitos de fogo, e, em cada leito, estará ele, e novecentos e noventa e nove formas de fogo (que terão cara e voz) o torturarão para sempre.” Noutro lugar corrobora: “Aqui na vida padeceis num só corpo; na morte e na Retribuição, em inumeráveis”. O paraíso é menos concreto: “Sempre é noite e há piscinas de pedra, e a felicidade desse paraíso é a felicidade peculiar das despedidas, da renúncia e dos que sabem que dormem”.

O ROSTO

No ano 163 da Hégira e quinto do Rosto Resplandecente, Hákim foi cercado em Sanam pelo exército do califa. Provisões e mártires não faltavam, e aguardava-se o iminente socorro de uma coorte de anjos de luz. Assim estava quando um espantoso boato atravessou o castelo. Contava-se que uma mulher adúltera do harém, ao ser estrangulada pelos eunucos, tinha gritado que faltava o dedo anular na mão direita do profeta e que os demais careciam de unhas. O rumor grassou entre os fiéis. Em pleno sol, num terraço elevado, Hákim pedia uma vitória ou sinal à divindade familiar. Com a cabeça inclinada, servil — como se corressem contra a chuva —, dois capitães arrancaram-lhe o Véu recamado de pedras.
Primeiro, houve um tremor. O prometido rosto do Apóstolo, o rosto que havia estado nos céus, era de fato branco, mas com a brancura peculiar da lepra manchada. Era tão avantajado ou incrível que lhes pareceu uma máscara carnavalesca. Não tinha sobrancelhas; a pálpebra inferior do olho direito pendia sobre o pômulo senil; um pesado cacho de tubérculos comia seus lábios; o nariz inumano e achatado era como o de um leão.
A voz de Hákim ensaiou um engano final: “Vosso pecado abominável vos proíbe de perceber meu esplendor…”, começou a dizer.
Não o escutaram; transpassaram-no com lanças.

Jorge Luís Borges, in História universal da infâmia

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