Eu
era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia
contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na
pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e
depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o
que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi o meu
companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. Tinha os
pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía
palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve
até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro
encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os
dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até
o que o palito ia cavucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca
eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse
ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se
enroscando nas pernas da gente. E tinha a música do saxofone.
Não
que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é
charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou
dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar
qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o
jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou
ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.
— O
que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro
dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que
parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa.
Quem é que está tocando? — É o moço do saxofone.
Mastiguei
mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão
eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China. — E o quarto
dele fica aqui em cima?
James
meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a
boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo.
Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder. — Aqui em
cima.
Bom
camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já
estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de
bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo
meu garfo. — É uma música desgraçada de triste — fui dizendo.
— A
mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando
o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O
pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para
comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão
que aparece. — Deitou com você?
— É
meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então
entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com
mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete,
acho que ficam com medo de se cortar...
Tive
vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou
a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo
gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre
os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu
caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não aguentou e caiu
ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria
e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a
ideia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe.
No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona,
mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa
de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao
inimigo aquele quarto de hora.
— Parece
gente pedindo socorro — eu disse, enchendo meu copo de cerveja. —
Será que ele não tem uma música mais alegre?
James
encolheu o ombro.
— Chifre
dói.
Nesse
primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num
bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher. —
Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e
me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui
de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló
do James do que o saxofone.
— Uma
mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um
palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do
saxofone.
— E
os outros não reclamam?
— A
gente já se acostumou.
Perguntei
onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a
escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de
caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim
que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com
uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque
tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de
novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas
que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos?
Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de
anões louros e de cabelo repartidinho do lado.
— Pode
me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame, e ela riu.
— Todos
artistas, minha pensão é quase só de artistas...
Fiquei
vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas
cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone.
Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela
apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um
batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim. — Licença?
Não
precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do
saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando.
Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem
bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se
sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a
ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no
queixo. Pomba, que tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e
saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto. — A que horas é a
janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava.
— Vai
das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito —
avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado
para a dona de vermelho. — O senhor gostou da comida?
Voltei
às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia
ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica
e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um
pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis.
James começou a falar então de uma briga no parque de diversões,
mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando
baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois
gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou
a tocar.
— Sim
senhor — eu disse e James pensou que eu estivesse falando na tal
briga.
— O
pior é que eu estava de porre, mal pude me defender!
Mordi
um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei
os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio. —
Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca?
James
demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta.
Decerto
preferia o assunto do parque.
— Come
no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele,
tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva,
corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela!
Agora
a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De
novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não
sei mais para quem.
— Não
topo isso, pomba.
— Isso
o quê?
Cruzei
o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no
quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive
ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar
para longe de toda aquela chateação.
— O
café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado
da mesa com um pano encardido como a cara dele.
— Feito
agora.
Pela
cara vi que era mentira.
Não
é preciso, tomo na esquina.
A
música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para a porta,
porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo
com o arzinho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o
vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de
bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame,
fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua. — Sim
senhor! — Sim senhor o quê? — perguntou James.
— Quando
ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que
ela aparece, ele para. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já
começa.
James
pediu outra cerveja. Olhou para o teto.
— Mulher
é o diabo... Levantei-me e quando passei junto da mesa dela, atrasei
o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei,
agradeceu, de olhos baixos. — Ora, não precisava se incomodar...
Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu
perfume. — Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. —
às sete, está bem?
— É
a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe. Saí em
seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que
estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame
viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte
cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite
inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os
anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar
que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém
apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de
leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do
quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava sentado
numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra.
Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava. — Desculpe, me
enganei de quarto — eu disse, com uma voz que até hoje não sei
onde fui buscar. O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.
— É
na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça.
Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação,
pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida.
Ofereci-lhe cigarro. — Está servido?
— Obrigado,
não posso fumar.
Fui
recuando de costas. E de repente não aguentei. Se ele tivesse feito
qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela
bruta calma me fez perder as tramontanas.
— E
você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá
uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse
comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar
me metendo, mas quer dizer que você não faz nada? — Eu toco
saxofone.
Fiquei
olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão
branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos
pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar,
esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço
o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos.
Bati
a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a
ver a mão dela segurando a maçaneta para que o vento não abrisse
demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer,
juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito
besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem
devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci
a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num
impermeável, desviei de outro, que já vinha vindo atrás e me
enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o
saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha
vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado,
num arranco.
Lygia Fagundes Telles, in Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século
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