terça-feira, 5 de julho de 2022

O Lobo do Mar | Capítulo 4


O que aconteceu comigo na escuna de caça à foca Ghost a partir daquele momento, à medida que eu tentava me adaptar ao ambiente, é uma história de dores e humilhações. O cozinheiro, que era chamado de “doutor” pela tripulação, “Tommy” pelos caçadores e “Mestre-Cuca” por Wolf Larsen, se transformou em outra pessoa. Minha mudança de posição no grupo correspondeu a uma mudança de seu tratamento. Antes servil e bajulador, agora se revelava tirânico e belicoso. Em suma, eu já não era mais o belo cavalheiro com uma pele “de moça”, mas apenas um camaroteiro ordinário e totalmente imprestável.
Ele insistia, absurdamente, que eu me dirigisse a ele como sr. Mugridge, e enquanto me explicava os meus deveres assumiu uma postura e um comportamento insuportáveis. Além de trabalhar na cabine, com seus quatro pequenos camarotes, eu deveria servir de assistente na cozinha, e minha colossal ignorância no que dizia respeito a coisas como descascar batatas ou lavar panelas engorduradas dava pano para intermináveis alfinetadas. Ele se recusava a levar em consideração quem eu era, ou antes o tipo de vida e as coisas às quais eu estava acostumado. Essa foi em parte a atitude que ele decidiu adotar com relação a mim, e confesso que antes de o dia acabar eu já o odiava como nunca odiei alguém na vida.
O primeiro dia foi ainda mais difícil para mim porque o Ghost, com as velas enrizadas (tipo de termo que só fui aprender mais tarde), arfava através do que o sr. Mugridge chamou de “um sudoeste cortante”. Às cinco e meia, seguindo suas orientações, botei a mesa na cabine, distribuindo as bandejas de segurança apropriadas ao mau tempo, e trouxe o chá e a comida pronta da cozinha. Não posso deixar de relatar aqui a minha primeira experiência com um mar que invadia o navio.
Preste atenção ou vai tomar um banho — foi a injunção proferida por Mugridge quando saí da cozinha trazendo um grande bule de chá em uma das mãos e vários pães recém-saídos do forno embaixo do outro braço. Naquele momento um dos caçadores, um sujeito alto e desengonçado chamado Henderson, estava vindo da baiuca (como os caçadores denominavam jocosamente seus aposentos situados a meia-nau) em direção à cabine na parte traseira do navio. Wolf Larsen estava fumando seu charuto eterno na popa.
Lá vem ela! Saiam da frente! — gritou o cozinheiro.
Estaquei na mesma hora, ignorando o que se passava, e vi a porta da cozinha fechar com estrondo. Depois vi Henderson pular como louco até o mastro maior e trepar nele até ficar um metro acima da minha cabeça. Também vi uma onda enorme e espumante se erguendo bem acima do nível da amurada, prestes a quebrar. Eu estava bem embaixo dela. Minha mente não reagiu a tempo, tudo era ainda muito estranho e novo. Compreendi que corria perigo, e só. Fiquei ali parado, tremendo. Finalmente, Wolf Larsen gritou na popa:
Segure-se em alguma coisa, Hump!
Mas era tarde demais. Me precipitei em direção aos mastros, aos quais poderia ter me agarrado, mas antes disso a parede d’água despencou em cima de mim. O que aconteceu depois foi bastante confuso. Eu estava submerso, sem ar, me afogando. Tinha sido derrubado e estava sendo revirado e arrastado não sei em direção a quê. Me choquei contra diversas coisas duras e sofri uma pancada terrível no joelho direito. De repente, a inundação foi embora e voltei a respirar o bendito ar. Tinha sido jogado contra a cozinha e arrastado ao redor da escada da baiuca, de barlavento até o embornal a sotavento. A dor no joelho ferido era atroz. Não podia mais apoiar meu peso nele, ou pelo menos foi o que pensei; tive certeza de que minha perna estava quebrada. Mas o cozinheiro já vinha atrás de mim, gritando da porta da cozinha que abria a sotavento:
Ei, você! Vai ficar aí ganindo a noite toda? Onde está a panela? Deixou cair no mar? Teria sido melhor ter quebrado o pescoço!
Levantei com dificuldade. Ainda estava com a chaleira grande na mão. Voltei mancando até a cozinha e a entreguei para ele. Mas ele estava tomado de indignação, real ou fingida.
Que Deus me cegue se você não é o maior palerma que já nasceu. Me diga, você serve pra alguma coisa? Hein? Você serve pra alguma coisa? Não consegue nem levar um pouco de chá até a popa sem derrubar tudo. Agora preciso ferver mais. E por que está choramingando? — ele continuou com fúria renovada. — É porque machucou a patinha, não é, queridinho da mamãe?
Eu não estava choramingando, embora fosse provável que meu rosto estivesse enrugado e retorcido de dor. Mas fiz das tripas coração, cerrei os dentes e continuei cambaleando de um lado a outro, entre a cozinha e a cabine, sem mais surpresas. O acidente teve dois resultados: uma rótula contundida, que ficou sem cuidados e continuou doendo por meses, e o apelido de Hump, por causa da maneira como Wolf Larsen havia se dirigido a mim no tombadilho. Este passou a ser meu nome de uma ponta à outra do navio. Com o tempo, a alcunha fincou raízes em meu pensamento e passei a me identificar com ela, me vendo como Hump, como se Hump eu fosse e sempre houvesse sido.
Não era tarefa fácil servir a mesa da cabine, onde estavam sentados Wolf Larsen, Johansen e os seis caçadores. Para começo de conversa, a cabine era pequena, e para se movimentar ali dentro, como eu me via obrigado a fazer, era necessário enfrentar o balanço violento da escuna. O que mais me espantava, porém, era a total falta de empatia dos homens a que eu servia. Sentia o joelho inchando cada vez mais por baixo da roupa e a dor chegava a me dar náuseas. Às vezes olhava para o espelho da cabine e tinha um rápido vislumbre do meu rosto branco e exangue, distorcido pela dor. Todos devem ter reparado no meu estado, mas ninguém dizia nada ou sequer parecia notar minha presença, tanto que me senti quase grato a Wolf Larsen quando, mais tarde, enquanto eu lavava os pratos, ele me disse:
Não se deixe perturbar por coisas à-toa. Vai se acostumar a tudo isso com o tempo. Você vai mancar um pouco, mas ao mesmo tempo vai aprender a andar. — E depois acrescentou: — É o que se pode chamar de um paradoxo, não é?
Ele pareceu satisfeito quando sacudi a cabeça e dei a resposta devida:
Sim, senhor.
Presumo que tenha algum domínio dos assuntos literários. Hein? Ótimo. Vamos conversar em algum momento.
E com isso me deixou de lado, virou as costas e voltou para o convés.
Aquela noite, depois de dar conta de uma quantidade imensa de trabalho, me mandaram dormir na baiuca, onde arrumei um beliche vago. Foi bom me livrar da presença detestável do cozinheiro e recolher um pouco as pernas. Para minha surpresa, minhas roupas tinham secado no corpo e não parecia haver indícios de um resfriado em consequência do banho recente ou do banho mais prolongado que tomei após o afundamento do Martinez. Em circunstâncias normais, levando em conta tudo que eu tinha passado, estaria pronto para ficar de cama aos cuidados de uma enfermeira.
Mas o joelho me incomodava demais. Eu tinha a impressão de que a rótula estava queimando por baixo do inchaço. Quando sentei no leito e comecei a examiná-la (os seis caçadores estavam todos na baiuca, fumando e falando alto), Henderson passou e espichou o olho.
Tá feio isso aí — comentou. — Amarre um pano em volta, vai melhorar.
E isso foi tudo. Em terra eu estaria deitado de costas, sendo atendido por um cirurgião, recebendo ordens de descansar e não fazer nada. Mas é preciso fazer justiça a esses homens. Eram insensíveis ao meu sofrimento, mas também a seu próprio penar quando a má sorte lhes cabia. Acredito que isso se dava em primeiro lugar ao hábito, e em segundo ao fato de que tinham índoles menos sensíveis. Não tenho dúvida de que, comparados a esses marujos, homens de índole mais delicada e suscetível sofreriam o dobro ou o triplo por causa do mesmo ferimento.
Por mais cansado que estivesse, e estava realmente exausto, não consegui dormir por causa da dor no joelho. Mal conseguia me segurar para não gemer alto. Em casa, com certeza teria dado vazão a meu suplício, mas este ambiente novo e primário parecia exigir a mais selvagem repressão. Como é dado aos selvagens, esses homens tinham um comportamento estoico em relação às coisas grandes e infantil em relação às pequenas. Lembro que, mais adiante na viagem, vi Kerfoot, um outro caçador, ter um dedo esmagado como uma pasta; apesar disso, ele nem sequer gemeu, e a expressão em seu rosto permaneceu a mesma. Por outro lado, vi o mesmo homem se exaltar diversas vezes por causa de trivialidades, até perder o controle.
Era o que ele estava fazendo neste exato momento, vociferando, berrando, agitando os braços e praguejando como um demônio, tudo por causa de uma discussão sobre filhotes de foca. Kerfoot alegava que o filhote já nascia sabendo nadar por instinto, ao passo que outro caçador, Latimer, um sujeito esguio com olhos estreitos e astutos e uma aparência de ianque, defendia o contrário, que o filhote de foca era parido em terra firme justamente porque não sabia nadar, e que a mãe era programada para ensiná-lo da mesma forma que os pássaros são programados para ensinar os pequenos a voar.
Os outros quatro caçadores passaram a maior parte do tempo debruçados sobre a mesa ou deitados em seus beliches e deixaram a discussão para os dois antagonistas. Apesar disso, estavam muito interessados e não paravam de defender um lado ou outro, e às vezes todos falavam ao mesmo tempo até que suas vozes formassem grandes ondas sonoras que trovejavam dentro do espaço exíguo. O assunto era infantil e irrelevante, mas seus argumentos eram ainda mais infantis e irrelevantes. Na verdade, não havia muito que se pudesse chamar de argumento. Eles se valiam de um método baseado em afirmações, suposições e acusações. Provavam que o filhote de foca era capaz ou incapaz de nadar tão logo nascia enunciando a proposição com extrema agressividade, para em seguida iniciar um ataque às opiniões, à sensatez, à nacionalidade e ao passado do oponente. As réplicas se davam exatamente da mesma forma. Relato isso para expor o calibre mental dos homens com os quais me via forçado a interagir. Intelectualmente, não passavam de crianças habitando a forma física de homens adultos.
E fumavam, fumavam sem parar um tabaco rústico, ordinário e de cheiro odioso. A fumaça deixava o ar grosso e pegajoso; isso, somado ao balanço violento do barco abrindo caminho na tempestade, teria me provocado um enjoo marítimo caso eu tivesse tal propensão. Mesmo assim, fiquei um pouco nauseado, embora isso também pudesse ser creditado à dor na perna e à exaustão.
Enquanto estava ali deitado, naturalmente acabei refletindo sobre a situação em que me encontrava. Era inédito e inimaginável que eu, Humphrey van Weyden, um estudioso e diletante, se me permitem, no mundo das artes e da literatura, estivesse ali deitado numa escuna de caça à foca com destino ao mar de Bering. Camaroteiro! Eu nunca tinha feito trabalhos manuais pesados ou sido ajudante de cozinha em toda a minha vida. Passara todos os meus dias vivendo uma existência pacata, monótona e sedentária, a vida de um estudioso recluso, sustentado por uma renda garantida e confortável. A vida violenta e os esportes atléticos nunca tinham me atraído. Sempre fui um rato de biblioteca, como minhas irmãs e meu pai se referiam a mim na infância. Tinha ido acampar uma vez, mas abandonei o grupo logo no começo e voltei para os confortos e conveniências de um abrigo com telhado. E aqui estava eu agora, contemplando uma paisagem sombria e infinita de mesas a servir, batatas a descascar e pratos a lavar. E eu não era forte. Os médicos sempre diziam que eu tinha excelente constituição, mas nunca a desenvolvi com exercícios. Meus músculos eram pequenos e moles como os de uma mulher, ou pelo menos era o que os médicos me diziam quando tentavam me fazer aderir à moda de culto da forma física. Mas eu preferia usar a cabeça em vez do corpo. E aqui estava eu, totalmente despreparado para a vida dura que me aguardava.
Estas são apenas algumas das várias coisas que me passaram pela cabeça, e eu as relatei para que já possa ir me defendendo do papel fraco e impotente que estava destinado a representar. Mas também pensei em minha mãe e em minhas irmãs, imaginando sua aflição. Eu estava entre os mortos e desaparecidos da tragédia do Martinez, um corpo que não havia sido recuperado. Podia imaginar as manchetes nos jornais; os companheiros do Clube Universitário e do Bibelot balançando as cabeças e dizendo “Pobre sujeito!”. Também podia imaginar Charles Furuseth enrolado num roupão na manhã de nossa despedida, reclinado sobre as almofadas do sofá em frente à janela, proferindo seus epigramas oraculares e pessimistas.
Nesse tempo todo, balançando e arfando, galgando as montanhas cambiantes e descendo ao fundo dos vales espumosos, a escuna Ghost ia desbravando o caminho do coração do Pacífico, e eu estava a bordo dela. Podia ouvir o vento acima; alcançava meus ouvidos como um rugido abafado. De vez em quando soavam passos sobre a minha cabeça. Rangidos sem fim me rodeavam. Madeiras e armações gemendo, guinchando e reclamando em tons que não acabavam mais. Os caçadores seguiam discutindo e urrando como uma raça semi-humana de anfíbios. O ar estava empestado de xingamentos e indecências. Eu via seus rostos vermelhos e irados, a brutalidade distorcida e acentuada pelo amarelo baço das lamparinas de bordo que balançavam para a frente e para trás junto com a embarcação. Em meio à atmosfera enfumaçada, os beliches lembravam as tocas dos animais em um zoológico. Capas impermeáveis e botas navais pendiam das paredes e alguns rifles e escopetas descansavam em segurança nos seus suportes. Era uma decoração náutica apropriada aos bucaneiros e piratas de outrora. Perdi as rédeas da imaginação e não consegui dormir. E foi uma noite muito, muito longa. Horrível, pesada e longa.

Jack London, in O Lobo do Mar

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