Tecnicamente,
uma novela. Mas novela é algo difícil de definir mesmo. Porém,
caso se encontre entre pessoas que fazem questão de tais distinções
— e eu costumava ser esse tipo de pessoa —, é melhor saber a
diferença. (Se por acaso for parar numa universidade da Ivy League*,
provavelmente vai encontrar tais pessoas. Arme-se com conhecimento
contra esse grupinho arrogante. Mas estou divagando.) Edgar Allan Poe
define conto como legível em uma sentada. Suponho que “uma
sentada” fosse algo mais longo no seu tempo. Mas divago outra vez.
Conto
excêntrico e inovador sobre as dificuldades em ser dono de uma
cidade feita de diamantes e os esforços que os ricos fazem para
proteger seu estilo de vida. Fitzgerald em sua melhor forma. O Grande
Gatsby é deslumbrante, mas esse romance às vezes me parece
enfeitado de mais, como um jardim topiário. O formato de conto é um
negócio mais confortável e bagunçado para ele. Diamante respira
como um gnomo de jardim encantado.
Em
referência a esta inclusão: preciso mesmo fazer o óbvio e contar
que pouco antes de conhecer você eu também tinha perdido algo de
valor imenso, embora fosse mera especulação?
—A.J.F.
*
Eu tenho minhas opiniões sobre isso. Lembre que uma boa educação
pode ser encontrada em lugares não usuais.
Embora
não se lembre de como chegou ali e de ter tirado a roupa, A.J.
acorda na cama apenas de cueca. Lembra que Harvey Rhodes está morto;
lembra que foi um babaca com a representante bonitinha da
Pterodactyl; lembra que jogou o curry; lembra que tomou uma taça de
vinho e brindou ao Tamerlane. Depois disso, nada. Sob o seu ponto de
vista, a noite tinha sido um triunfo.
Sua
cabeça lateja. Ele sai do quarto esperando encontrar os detritos de
curry. O chão e as paredes estão limpos. A.J. procura uma aspirina
no armário enquanto silenciosamente se parabeniza por ter tido a
previdência de limpar a comida. Senta-se à mesa e nota que a
garrafa de vinho também foi para o lixo. Estranho ter sido tão
meticuloso, mas não foi a primeira vez também. Ele é um bêbado
limpinho. Olha para o outro lado da mesa, onde tinha deixado o
Tamerlane. O livro não está mais lá. Talvez tenha apenas
imaginado tirá-lo da redoma.
Ao
caminhar para a sala, o coração de A.J. compete com a cabeça. No
meio do caminho, vê que a caixa de vidro com fechadura de combinação
e controle de temperatura, que protege o Tamerlane do mundo,
está escancarada e vazia.
Ele
veste um roupão e o tênis de corrida, que não teve muito uso nos
últimos tempos.
A.J.
corre rua Captain Wiggins abaixo com seu roupão xadrez encardido
esvoaçando atrás de si. Ele parece um super-herói deprimido e
subnutrido. Vira na Main e corre na direção da sonolenta delegacia
de polícia de Alice Island. “Fui roubado!”, anuncia. Foi uma
corrida curta, mas A.J. respira com dificuldade. “Por favor, alguém
me ajude!” Ele tenta não se sentir como uma senhora cuja bolsa foi
roubada.
Lambiase
pousa sua xícara de café sobre a mesa e observa o homem perturbado
de roupão. Reconhece o dono da livraria e o homem cuja bela e jovem
esposa dirigiu para dentro do lago um ano e meio atrás. A.J. parece
muito mais velho que da última vez, embora Lambiase entenda que isso
é o esperado.
“Certo,
sr. Fikry”, diz Lambiase, “me conte o que aconteceu.”
“Alguém
roubou o Tamerlane.”
“O
que é o Tamerlane?”
“É
um livro. Um livro muito valioso.”
“Só
pra esclarecer: você quer dizer que alguém furtou um livro da
loja.”
“Não.
Era meu livro, da minha coleção pessoal. É uma seleção de
poemas do Edgar Allan Poe, muito rara.”
“Então,
é, tipo, seu livro preferido?”, pergunta Lambiase.
“Não.
Eu nem gosto. É uma porcaria. Porcaria de primeira. É só…”
A.J. hiperventila. “Merda.”
“Fique
calmo, sr. Fikry. Estou só tentando entender. Você não gosta do
livro, mas tem valor sentimental?”
“Não!
Porra de valor sentimental nenhum. Tem muito valor financeiro. O
Tamerlane é tipo o Honus Wagner dos livros raros! Sabe do que
eu tô falando?”
“Claro,
meu vovô era colecionador de cartões de beisebol”, Lambiase
assente. “Valioso assim?”
A.J.
não consegue falar rápido o suficiente. “Foi a primeira coisa que
o Edgar Allan Poe escreveu, quando ele tinha dezoito anos. Exemplares
são muito raros porque a tiragem foi de cinquenta cópias, e
publicado no anonimato. Em vez de ‘Edgar Allan Poe’, está ‘por
um bostoniano’ na capa. Os exemplares são vendidos por mais de
quatrocentos mil dólares, dependendo das condições e do humor do
mercado de livros raros. Eu planejava leiloar daqui a uns dois anos,
quando a economia melhorasse um pouco. Meu plano era fechar a loja e
me aposentar com a renda.”
“Desculpa
a pergunta, mas por que guardou algo tão valioso em casa e não num
cofre de banco?”
A.J.
balança a cabeça. “Não sei. Burrice. Acho que gostava dele por
perto. Gostava de olhar pra ele e lembrar que eu podia parar a hora
que quisesse. Eu guardava numa redoma com segredo. Achei que já era
seguro o suficiente.” Em sua defesa, há muito pouco roubo em Alice
Island, exceto na alta temporada. Estamos em outubro.
“Então,
alguém arrombou a redoma ou sabia a combinação?”
“Nenhuma
das duas coisas. Eu fiquei bêbado ontem à noite. Idiotice da porra,
mas tirei o livro pra olhar. Companhia ridícula, eu sei.”
“Sr.
Fikry, o Tamerlane estava segurado?”
A.J.
enfia a cabeça entre as mãos. Lambiase entende que não. “Eu
achei o livro faz um ano, uns dois meses depois que minha esposa
morreu. Eu não queria gastar mais dinheiro. Não fui atrás. Sei lá.
Um milhão de razões idiotas, mas a principal é que eu sou idiota,
policial Lambiase.”
Lambiase
não se dá ao trabalho de corrigir para Delegado Lambiase. “Eu vou
fazer o seguinte. Primeiro, nós vamos abrir uma queixa. Depois,
quando a investigadora chegar — ela só faz meio período durante a
baixa temporada —, eu vou enviá-la para sua casa para procurar por
digitais e outras provas. Talvez ela ache algo. A outra coisa que
podemos fazer é ligar para casas de leilão e pessoas que lidam com
esse tipo de coisa. Se é tão raro quanto está dizendo, vão notar
se um exemplar desconhecido surgir no mercado. Coisas assim não têm
um tipo de registro de quem era o dono… como é que fala mesmo?”
“Procedência.”
“Isso,
exato! Minha esposa assistia a Antiques Roadshow. Já viu esse
programa?”
A.J.
não responde.
“E
por último: alguém mais sabia sobre o livro?”
A.J.
bufa. “Todo mundo. A irmã da minha esposa, Ismay, dá aula pro
colegial. Ela anda preocupada comigo desde que a Nic… Sempre me
importuna pra sair da loja, sair da ilha. Mais ou menos um ano atrás,
ela me arrastou pra um ‘família vende tudo’ deprimente em
Milton. Ele estava numa caixa junto com outros cinquenta livros,
todos sem valor nenhum, exceto o Tamerlane. Paguei cinco
dólares. As pessoas não tinham ideia do que possuíam em mãos. Me
senti um merda por tirar deles, se quer saber a verdade. Não que
isso importe agora. Enfim, Ismay achou que seria bom para os negócios
e educacional e a porra toda se eu exibisse na loja. Então eu deixei
a redoma na loja o verão passado. Acho que você nunca vai à
livraria.”
Lambiase
olha para os próprios sapatos, uma vergonha oriunda de centenas de
aulas de literatura no colegial, nas quais reprovava por não ler os
textos básicos. “Não leio muito.”
“Você
lê romance policial, certo?”
“Boa
memória”, diz Lambiase. Na verdade, A.J. se recorda perfeitamente
dos gostos literários das pessoas.
“Deaver,
né? Se gosta dele, tem um escritor novo de…”
“Claro,
vou passar lá qualquer hora. Tem alguém pra quem eu possa
telefonar? A irmã de sua esposa é a Ismay Evans-Parish, certo?”
“A
Ismay tá…” Nesse instante, A.J. congela, como se alguém tivesse
apertado seu botão de pause. Seus olhos ficam sem expressão e seu
queixo cai.
“Sr.
Fikry?”
Por
quase trinta segundos, A.J. fica congelado e depois volta a falar
como se nada tivesse acontecido. “A Ismay está trabalhando, e eu
tô bem. Não precisa telefonar.”
“Você
ficou fora do ar um minutinho agora”, disse Lambiase.
“Quê?”
“Você
apagou.”
“Nossa.
É só uma crise de ausência. Eu costumava ter muitas quando era
criança. Agora é raro, só quando estou estressado.”
“Devia
ver um médico.”
“Não,
tá tudo bem. De verdade. Só quero achar meu livro.”
“É
melhor”, insiste Lambiase. “Sua manhã foi muito traumática, e
eu sei que mora sozinho. Vou levar você ao hospital e ligo para os
seus sogros te encontrarem lá. Enquanto isso, vou ver se o pessoal
aqui consegue descobrir alguma coisa sobre o livro.”
No
hospital, A.J. espera, preenche formulários, espera, tira a roupa,
espera, faz exames, espera, veste-se novamente, espera, faz mais
exames, espera, tira a roupa de novo, e, por fim, é examinado por
uma clínica-geral de meia-idade. Não está preocupada com a crise.
Os testes, porém, revelaram que a pressão sanguínea e o colesterol
estão no limite entre aceitável e alto para um homem de trinta e
nove anos. Pergunta a A.J. sobre seu estilo de vida. Ele responde com
sinceridade: “Eu não sou um alcoólatra, mas gosto de beber até
desmaiar uma vez por semana, no mínimo. Fumo de vez em quando e
sobrevivo com uma dieta composta por comida pronta congelada. Quase
nunca passo fio dental. Costumava correr longas distâncias, mas
agora não faço exercício nenhum. Moro sozinho e não tenho nenhum
relacionamento importante. Desde que minha esposa morreu, também
odeio meu trabalho.”
“Só
isso?!”, a médica pergunta. “Você ainda é jovem, sr. Fikry,
mas o corpo tem um limite. Se está tentando se matar, eu conheço
métodos mais fáceis e rápidos. Você quer morrer?”
Ele
não tem uma resposta imediata.
“Porque,
se quer mesmo morrer, posso colocá-lo sob observação
psiquiátrica.”
“Eu
não quero morrer”, diz A.J. um tempinho depois. “Só acho
difícil estar aqui o tempo todo. Acha que sou louco?”
“Não.
Eu entendo por que se sente assim. Está enfrentando uma barra.
Comece com exercícios”, ela recomenda. “Vai se sentir melhor.”
“O.k.”
“Sua
mulher era uma graça”, diz a médica. “Eu costumava frequentar o
clube do livro para mães e filhas que ela organizava na livraria.
Minha filha trabalha meio período pra você.”
“Molly
Klock?”
“Klock
é o nome do meu marido. Eu sou a dra. Rosen.” Ela toca no crachá.
No
lobby, A.J. se depara com uma cena familiar. “Você poderia me dar
um autógrafo?”, uma enfermeira com roupa cirúrgica rosa pergunta,
entregando um livro velho para um homem com paletó de veludo cotelê
e cotovelos reforçados.
“Com
prazer”, responde Daniel Parish. “Como se chama?”
“Jill,
como na canção de ninar Jack and Jill. E Macy, como a loja.
Li todos os seus livros, mas este é meu preferido. Tipo, de longe.”
“Essa
é a opinião popular, Jill da canção.” Daniel não está
brincando. Nenhum de seus outros livros vendeu tanto, nem de longe,
quanto o primeiro.
“Nem
sei dizer quanto ele significa pra mim. Tipo, eu fico emocionada só
de pensar.” Ela baixa a cabeça e os olhos, em deferência, como
uma gueixa. “Foi o que me fez querer ser enfermeira! Eu comecei
aqui faz pouco tempo. Quando descobri que você morava na cidade,
ficava torcendo para que aparecesse aqui um dia.”
“Quer
dizer que torcia para eu adoecer?”, pergunta Daniel, sorrindo.
“Não,
claro que não!” Ela fica vermelha, depois bate no braço dele.
“Seu…! Seu malvado!”
“Sim”,
responde Daniel. “Eu sou, de fato, malvado.”
A
primeira vez que Nic vira Daniel Parish comentara que ele tinha a
aparência de um apresentador de telejornal regional. Na volta para
casa, já tinha revisto sua opinião. “Olhos muito pequenos para um
âncora. Seria o homem do tempo.”
“Ele
tem uma voz poderosa”, A.J. dissera.
“Se
aquele homem dissesse que a tempestade tinha passado, você
acreditaria. Provavelmente até mesmo se estivesse debaixo dela”,
ela comentara.
A.J.
interrompe o flerte. “Dan”, chama, “pensei que tinham chamado
sua esposa.” A.J. não quer ser sutil.
Daniel
pigarreia. “Ela não está se sentindo muito bem, por isso eu vim.
Como você tá, velhinho?” Daniel chama A.J. de “velhinho”
apesar de ser cinco anos mais velho.
“Perdi
minha fortuna e a médica falou que vou morrer, tirando isso,
fantástico.” O sedativo lhe deu perspectiva.
“Maravilha.
Vamos beber.” Daniel vira-se para a enfermeira Jill e sussurra algo
em seu ouvido. Quando devolve o livro para ela, A.J. nota que ele
escreveu seu telefone. “Venha, rei do vinho!”, chama Daniel, indo
na direção da saída.
Apesar
de amar livros e ser dono de uma livraria, A.J. não gosta muito de
escritores. Acha-os desleixados, narcisistas, bobos e, em geral,
desagradáveis. Tenta evitar conhecer quem escreveu os livros que ama
por temer parar de amá-los. Por sorte, não ama os livros de Daniel,
nem o primeiro e popular. Quanto ao homem? Bem, ele diverte A.J., até
certo ponto. Tudo isso pra dizer que Daniel Parish é um dos melhores
amigos dele.
“A
culpa é minha”, diz A.J. depois da segunda cerveja. “Devia ter
contratado seguro. Guardado num cofre. Não devia ter pegado, bêbado.
Não importa quem roubou, não posso dizer que minha conduta tenha
sido correta.” O álcool mais o sedativo está deixando A.J.
meloso, filosófico. Daniel lhe serve outro copo.
“Não
faça isso, A.J. Não se culpe.”
“É
um alerta, isso que é”, diz A.J. “Vou diminuir a bebida.”
“Depois
dessa cerveja”, Daniel brinca. Brindam. Uma garota com cara de
ainda estar no colegial entra no bar, usando shortinho jeans tão
curto que seu bumbum aparece. Daniel levanta a caneca para ela. “Bela
roupa!” A menina lhe mostra o dedo. “Você precisa parar de
beber. Eu preciso parar de trair a Ismay”, diz Daniel. “Mas
quando vejo um short desse, minha determinação é posta à prova.
Essa noite foi absurda. A enfermeira! Esses shorts!”
A.J.
bebe. “E o livro?”
Daniel
dá de ombros. “É um livro. Vai ter páginas e capa. Vai ter
trama, personagens, complicações. Vai refletir anos de estudo,
refinamento e prática da minha arte. Por isso tudo, será menos
popular que o primeiro que escrevi aos vinte e cinco.”
“Coitado”,
A.J. diz.
“Tenho
certeza de que você ganha o Prêmio de Coitado do Ano, velhinho.”
“Sorte
a minha.”
“O
Poe é um péssimo escritor, sabe? E ‘Tamerlane’ é o
pior. Cópia sem graça de Lorde Byron. Seria outra coisa se fosse a
primeira edição de uma porra que prestasse. Devia ficar feliz de
ter se livrado daquilo. Eu odeio livros de colecionador de qualquer
modo. As pessoas se derretendo por carcaças de papel. As ideias é
que importam, cara. As palavras”, diz Daniel Parish.
A.J.
termina a cerveja. “Você, meu caro, é um idiota.”
A
investigação dura um mês, o que, para a polícia de Alice Island,
é um ano. Lambiase e sua equipe não encontram evidência física
relevante na cena. Além de descartar a garrafa de vinho e limpar o
curry, o criminoso também apagou todas as impressões
digitais do apartamento. Os investigadores interrogam os funcionários
de A.J. e também seus amigos e conhecidos em Alice. Esses
interrogatórios não resultam em nada incriminatório. Nenhum
negociante de livros ou casa de leilão relata novos exemplares de
Tamerlane. (Claro, casas de leilão são notoriamente
discretas quanto a esses assuntos.) A investigação é considerada
não resolvida. O livro sumiu, e A.J. sabe que nunca mais o verá.
A
redoma de vidro é inútil agora, e A.J. não sabe o que fazer com
ela. Não tem outros livros raros. No entanto, foi cara, quase
quinhentos dólares. Um vestígio de esperança nele quer acreditar
que algo melhor aparecerá para ocupar o lugar. Quando comprou,
disseram que também serviria para armazenar charutos.
Não
há mais aposentadoria no horizonte, e A.J. lê provas, responde
e-mails, atende o telefone e até escreve uma ou outra chamada para
as prateleiras. À noite, depois de fechar a loja, volta a correr. Há
muitos desafios em corridas de longa distância. Um dos maiores é
onde colocar as chaves de casa. No fim, A.J. decide deixar a porta
aberta. Não há nada de valor.
Gabrielle Zevin, in A vida do livreiro A. J. Fikry
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