domingo, 17 de julho de 2022

O diamante do tamanho do Ritz (1922) / F. Scott Fitzgerald


Tecnicamente, uma novela. Mas novela é algo difícil de definir mesmo. Porém, caso se encontre entre pessoas que fazem questão de tais distinções — e eu costumava ser esse tipo de pessoa —, é melhor saber a diferença. (Se por acaso for parar numa universidade da Ivy League*, provavelmente vai encontrar tais pessoas. Arme-se com conhecimento contra esse grupinho arrogante. Mas estou divagando.) Edgar Allan Poe define conto como legível em uma sentada. Suponho que “uma sentada” fosse algo mais longo no seu tempo. Mas divago outra vez.
Conto excêntrico e inovador sobre as dificuldades em ser dono de uma cidade feita de diamantes e os esforços que os ricos fazem para proteger seu estilo de vida. Fitzgerald em sua melhor forma. O Grande Gatsby é deslumbrante, mas esse romance às vezes me parece enfeitado de mais, como um jardim topiário. O formato de conto é um negócio mais confortável e bagunçado para ele. Diamante respira como um gnomo de jardim encantado.
Em referência a esta inclusão: preciso mesmo fazer o óbvio e contar que pouco antes de conhecer você eu também tinha perdido algo de valor imenso, embora fosse mera especulação?

A.J.F.

* Eu tenho minhas opiniões sobre isso. Lembre que uma boa educação pode ser encontrada em lugares não usuais.

Embora não se lembre de como chegou ali e de ter tirado a roupa, A.J. acorda na cama apenas de cueca. Lembra que Harvey Rhodes está morto; lembra que foi um babaca com a representante bonitinha da Pterodactyl; lembra que jogou o curry; lembra que tomou uma taça de vinho e brindou ao Tamerlane. Depois disso, nada. Sob o seu ponto de vista, a noite tinha sido um triunfo.
Sua cabeça lateja. Ele sai do quarto esperando encontrar os detritos de curry. O chão e as paredes estão limpos. A.J. procura uma aspirina no armário enquanto silenciosamente se parabeniza por ter tido a previdência de limpar a comida. Senta-se à mesa e nota que a garrafa de vinho também foi para o lixo. Estranho ter sido tão meticuloso, mas não foi a primeira vez também. Ele é um bêbado limpinho. Olha para o outro lado da mesa, onde tinha deixado o Tamerlane. O livro não está mais lá. Talvez tenha apenas imaginado tirá-lo da redoma.
Ao caminhar para a sala, o coração de A.J. compete com a cabeça. No meio do caminho, vê que a caixa de vidro com fechadura de combinação e controle de temperatura, que protege o Tamerlane do mundo, está escancarada e vazia.
Ele veste um roupão e o tênis de corrida, que não teve muito uso nos últimos tempos.
A.J. corre rua Captain Wiggins abaixo com seu roupão xadrez encardido esvoaçando atrás de si. Ele parece um super-herói deprimido e subnutrido. Vira na Main e corre na direção da sonolenta delegacia de polícia de Alice Island. “Fui roubado!”, anuncia. Foi uma corrida curta, mas A.J. respira com dificuldade. “Por favor, alguém me ajude!” Ele tenta não se sentir como uma senhora cuja bolsa foi roubada.
Lambiase pousa sua xícara de café sobre a mesa e observa o homem perturbado de roupão. Reconhece o dono da livraria e o homem cuja bela e jovem esposa dirigiu para dentro do lago um ano e meio atrás. A.J. parece muito mais velho que da última vez, embora Lambiase entenda que isso é o esperado.
Certo, sr. Fikry”, diz Lambiase, “me conte o que aconteceu.”
Alguém roubou o Tamerlane.”
O que é o Tamerlane?”
É um livro. Um livro muito valioso.”
Só pra esclarecer: você quer dizer que alguém furtou um livro da loja.”
Não. Era meu livro, da minha coleção pessoal. É uma seleção de poemas do Edgar Allan Poe, muito rara.”
Então, é, tipo, seu livro preferido?”, pergunta Lambiase.
Não. Eu nem gosto. É uma porcaria. Porcaria de primeira. É só…” A.J. hiperventila. “Merda.”
Fique calmo, sr. Fikry. Estou só tentando entender. Você não gosta do livro, mas tem valor sentimental?”
Não! Porra de valor sentimental nenhum. Tem muito valor financeiro. O Tamerlane é tipo o Honus Wagner dos livros raros! Sabe do que eu tô falando?”
Claro, meu vovô era colecionador de cartões de beisebol”, Lambiase assente. “Valioso assim?”
A.J. não consegue falar rápido o suficiente. “Foi a primeira coisa que o Edgar Allan Poe escreveu, quando ele tinha dezoito anos. Exemplares são muito raros porque a tiragem foi de cinquenta cópias, e publicado no anonimato. Em vez de ‘Edgar Allan Poe’, está ‘por um bostoniano’ na capa. Os exemplares são vendidos por mais de quatrocentos mil dólares, dependendo das condições e do humor do mercado de livros raros. Eu planejava leiloar daqui a uns dois anos, quando a economia melhorasse um pouco. Meu plano era fechar a loja e me aposentar com a renda.”
Desculpa a pergunta, mas por que guardou algo tão valioso em casa e não num cofre de banco?”
A.J. balança a cabeça. “Não sei. Burrice. Acho que gostava dele por perto. Gostava de olhar pra ele e lembrar que eu podia parar a hora que quisesse. Eu guardava numa redoma com segredo. Achei que já era seguro o suficiente.” Em sua defesa, há muito pouco roubo em Alice Island, exceto na alta temporada. Estamos em outubro.
Então, alguém arrombou a redoma ou sabia a combinação?”
Nenhuma das duas coisas. Eu fiquei bêbado ontem à noite. Idiotice da porra, mas tirei o livro pra olhar. Companhia ridícula, eu sei.”
Sr. Fikry, o Tamerlane estava segurado?”
A.J. enfia a cabeça entre as mãos. Lambiase entende que não. “Eu achei o livro faz um ano, uns dois meses depois que minha esposa morreu. Eu não queria gastar mais dinheiro. Não fui atrás. Sei lá. Um milhão de razões idiotas, mas a principal é que eu sou idiota, policial Lambiase.”
Lambiase não se dá ao trabalho de corrigir para Delegado Lambiase. “Eu vou fazer o seguinte. Primeiro, nós vamos abrir uma queixa. Depois, quando a investigadora chegar — ela só faz meio período durante a baixa temporada —, eu vou enviá-la para sua casa para procurar por digitais e outras provas. Talvez ela ache algo. A outra coisa que podemos fazer é ligar para casas de leilão e pessoas que lidam com esse tipo de coisa. Se é tão raro quanto está dizendo, vão notar se um exemplar desconhecido surgir no mercado. Coisas assim não têm um tipo de registro de quem era o dono… como é que fala mesmo?”
Procedência.”
Isso, exato! Minha esposa assistia a Antiques Roadshow. Já viu esse programa?”
A.J. não responde.
E por último: alguém mais sabia sobre o livro?”
A.J. bufa. “Todo mundo. A irmã da minha esposa, Ismay, dá aula pro colegial. Ela anda preocupada comigo desde que a Nic… Sempre me importuna pra sair da loja, sair da ilha. Mais ou menos um ano atrás, ela me arrastou pra um ‘família vende tudo’ deprimente em Milton. Ele estava numa caixa junto com outros cinquenta livros, todos sem valor nenhum, exceto o Tamerlane. Paguei cinco dólares. As pessoas não tinham ideia do que possuíam em mãos. Me senti um merda por tirar deles, se quer saber a verdade. Não que isso importe agora. Enfim, Ismay achou que seria bom para os negócios e educacional e a porra toda se eu exibisse na loja. Então eu deixei a redoma na loja o verão passado. Acho que você nunca vai à livraria.”
Lambiase olha para os próprios sapatos, uma vergonha oriunda de centenas de aulas de literatura no colegial, nas quais reprovava por não ler os textos básicos. “Não leio muito.”
Você lê romance policial, certo?”
Boa memória”, diz Lambiase. Na verdade, A.J. se recorda perfeitamente dos gostos literários das pessoas.
Deaver, né? Se gosta dele, tem um escritor novo de…”
Claro, vou passar lá qualquer hora. Tem alguém pra quem eu possa telefonar? A irmã de sua esposa é a Ismay Evans-Parish, certo?”
A Ismay tá…” Nesse instante, A.J. congela, como se alguém tivesse apertado seu botão de pause. Seus olhos ficam sem expressão e seu queixo cai.
Sr. Fikry?”
Por quase trinta segundos, A.J. fica congelado e depois volta a falar como se nada tivesse acontecido. “A Ismay está trabalhando, e eu tô bem. Não precisa telefonar.”
Você ficou fora do ar um minutinho agora”, disse Lambiase.
Quê?”
Você apagou.”
Nossa. É só uma crise de ausência. Eu costumava ter muitas quando era criança. Agora é raro, só quando estou estressado.”
Devia ver um médico.”
Não, tá tudo bem. De verdade. Só quero achar meu livro.”
É melhor”, insiste Lambiase. “Sua manhã foi muito traumática, e eu sei que mora sozinho. Vou levar você ao hospital e ligo para os seus sogros te encontrarem lá. Enquanto isso, vou ver se o pessoal aqui consegue descobrir alguma coisa sobre o livro.”

No hospital, A.J. espera, preenche formulários, espera, tira a roupa, espera, faz exames, espera, veste-se novamente, espera, faz mais exames, espera, tira a roupa de novo, e, por fim, é examinado por uma clínica-geral de meia-idade. Não está preocupada com a crise. Os testes, porém, revelaram que a pressão sanguínea e o colesterol estão no limite entre aceitável e alto para um homem de trinta e nove anos. Pergunta a A.J. sobre seu estilo de vida. Ele responde com sinceridade: “Eu não sou um alcoólatra, mas gosto de beber até desmaiar uma vez por semana, no mínimo. Fumo de vez em quando e sobrevivo com uma dieta composta por comida pronta congelada. Quase nunca passo fio dental. Costumava correr longas distâncias, mas agora não faço exercício nenhum. Moro sozinho e não tenho nenhum relacionamento importante. Desde que minha esposa morreu, também odeio meu trabalho.”
Só isso?!”, a médica pergunta. “Você ainda é jovem, sr. Fikry, mas o corpo tem um limite. Se está tentando se matar, eu conheço métodos mais fáceis e rápidos. Você quer morrer?”
Ele não tem uma resposta imediata.
Porque, se quer mesmo morrer, posso colocá-lo sob observação psiquiátrica.”
Eu não quero morrer”, diz A.J. um tempinho depois. “Só acho difícil estar aqui o tempo todo. Acha que sou louco?”
Não. Eu entendo por que se sente assim. Está enfrentando uma barra. Comece com exercícios”, ela recomenda. “Vai se sentir melhor.”
O.k.”
Sua mulher era uma graça”, diz a médica. “Eu costumava frequentar o clube do livro para mães e filhas que ela organizava na livraria. Minha filha trabalha meio período pra você.”
Molly Klock?”
Klock é o nome do meu marido. Eu sou a dra. Rosen.” Ela toca no crachá.
No lobby, A.J. se depara com uma cena familiar. “Você poderia me dar um autógrafo?”, uma enfermeira com roupa cirúrgica rosa pergunta, entregando um livro velho para um homem com paletó de veludo cotelê e cotovelos reforçados.
Com prazer”, responde Daniel Parish. “Como se chama?”
Jill, como na canção de ninar Jack and Jill. E Macy, como a loja. Li todos os seus livros, mas este é meu preferido. Tipo, de longe.”
Essa é a opinião popular, Jill da canção.” Daniel não está brincando. Nenhum de seus outros livros vendeu tanto, nem de longe, quanto o primeiro.
Nem sei dizer quanto ele significa pra mim. Tipo, eu fico emocionada só de pensar.” Ela baixa a cabeça e os olhos, em deferência, como uma gueixa. “Foi o que me fez querer ser enfermeira! Eu comecei aqui faz pouco tempo. Quando descobri que você morava na cidade, ficava torcendo para que aparecesse aqui um dia.”
Quer dizer que torcia para eu adoecer?”, pergunta Daniel, sorrindo.
Não, claro que não!” Ela fica vermelha, depois bate no braço dele. “Seu…! Seu malvado!”
Sim”, responde Daniel. “Eu sou, de fato, malvado.”
A primeira vez que Nic vira Daniel Parish comentara que ele tinha a aparência de um apresentador de telejornal regional. Na volta para casa, já tinha revisto sua opinião. “Olhos muito pequenos para um âncora. Seria o homem do tempo.”
Ele tem uma voz poderosa”, A.J. dissera.
Se aquele homem dissesse que a tempestade tinha passado, você acreditaria. Provavelmente até mesmo se estivesse debaixo dela”, ela comentara.
A.J. interrompe o flerte. “Dan”, chama, “pensei que tinham chamado sua esposa.” A.J. não quer ser sutil.
Daniel pigarreia. “Ela não está se sentindo muito bem, por isso eu vim. Como você tá, velhinho?” Daniel chama A.J. de “velhinho” apesar de ser cinco anos mais velho.
Perdi minha fortuna e a médica falou que vou morrer, tirando isso, fantástico.” O sedativo lhe deu perspectiva.
Maravilha. Vamos beber.” Daniel vira-se para a enfermeira Jill e sussurra algo em seu ouvido. Quando devolve o livro para ela, A.J. nota que ele escreveu seu telefone. “Venha, rei do vinho!”, chama Daniel, indo na direção da saída.
Apesar de amar livros e ser dono de uma livraria, A.J. não gosta muito de escritores. Acha-os desleixados, narcisistas, bobos e, em geral, desagradáveis. Tenta evitar conhecer quem escreveu os livros que ama por temer parar de amá-los. Por sorte, não ama os livros de Daniel, nem o primeiro e popular. Quanto ao homem? Bem, ele diverte A.J., até certo ponto. Tudo isso pra dizer que Daniel Parish é um dos melhores amigos dele.

A culpa é minha”, diz A.J. depois da segunda cerveja. “Devia ter contratado seguro. Guardado num cofre. Não devia ter pegado, bêbado. Não importa quem roubou, não posso dizer que minha conduta tenha sido correta.” O álcool mais o sedativo está deixando A.J. meloso, filosófico. Daniel lhe serve outro copo.
Não faça isso, A.J. Não se culpe.”
É um alerta, isso que é”, diz A.J. “Vou diminuir a bebida.”
Depois dessa cerveja”, Daniel brinca. Brindam. Uma garota com cara de ainda estar no colegial entra no bar, usando shortinho jeans tão curto que seu bumbum aparece. Daniel levanta a caneca para ela. “Bela roupa!” A menina lhe mostra o dedo. “Você precisa parar de beber. Eu preciso parar de trair a Ismay”, diz Daniel. “Mas quando vejo um short desse, minha determinação é posta à prova. Essa noite foi absurda. A enfermeira! Esses shorts!”
A.J. bebe. “E o livro?”
Daniel dá de ombros. “É um livro. Vai ter páginas e capa. Vai ter trama, personagens, complicações. Vai refletir anos de estudo, refinamento e prática da minha arte. Por isso tudo, será menos popular que o primeiro que escrevi aos vinte e cinco.”
Coitado”, A.J. diz.
Tenho certeza de que você ganha o Prêmio de Coitado do Ano, velhinho.”
Sorte a minha.”
O Poe é um péssimo escritor, sabe? E ‘Tamerlane’ é o pior. Cópia sem graça de Lorde Byron. Seria outra coisa se fosse a primeira edição de uma porra que prestasse. Devia ficar feliz de ter se livrado daquilo. Eu odeio livros de colecionador de qualquer modo. As pessoas se derretendo por carcaças de papel. As ideias é que importam, cara. As palavras”, diz Daniel Parish.
A.J. termina a cerveja. “Você, meu caro, é um idiota.”
A investigação dura um mês, o que, para a polícia de Alice Island, é um ano. Lambiase e sua equipe não encontram evidência física relevante na cena. Além de descartar a garrafa de vinho e limpar o curry, o criminoso também apagou todas as impressões digitais do apartamento. Os investigadores interrogam os funcionários de A.J. e também seus amigos e conhecidos em Alice. Esses interrogatórios não resultam em nada incriminatório. Nenhum negociante de livros ou casa de leilão relata novos exemplares de Tamerlane. (Claro, casas de leilão são notoriamente discretas quanto a esses assuntos.) A investigação é considerada não resolvida. O livro sumiu, e A.J. sabe que nunca mais o verá.
A redoma de vidro é inútil agora, e A.J. não sabe o que fazer com ela. Não tem outros livros raros. No entanto, foi cara, quase quinhentos dólares. Um vestígio de esperança nele quer acreditar que algo melhor aparecerá para ocupar o lugar. Quando comprou, disseram que também serviria para armazenar charutos.
Não há mais aposentadoria no horizonte, e A.J. lê provas, responde e-mails, atende o telefone e até escreve uma ou outra chamada para as prateleiras. À noite, depois de fechar a loja, volta a correr. Há muitos desafios em corridas de longa distância. Um dos maiores é onde colocar as chaves de casa. No fim, A.J. decide deixar a porta aberta. Não há nada de valor.

Gabrielle Zevin, in A vida do livreiro A. J. Fikry

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