sábado, 16 de julho de 2022

Jogar botão


Por que jogávamos botão? Porque somos loucos por futebol. Porque se joga com a turma. Porque se joga com primos, pais, irmãos, tios, avós, amigos. Porque se joga sozinho. Se joga na mesa da sala, onde a família se reúne. Ou no chão do quarto, quando a família se reúne. Se o chão estiver sendo lustrado, se joga na garagem, no hall do elevador, na calçada.
Alguns amigos têm mesas próprias. Cada casa tem a sua regra. Muitas vezes, as discussões sobre elas demandam mais tempo do que o próprio jogo. Mas há uma ética: a regra do visitante não vale na casa do outro.
Há jogos em que cada jogador só pode tocar uma vez na bola. Há aqueles em que se pode tocar no máximo três vezes. E há o jogador, como Maradona, que pode sair da própria intermediária, driblar todo o time adversário e entrar com bola e tudo. Uma regra é a mesma em todos os lares: é preciso avisar “vai pro gol”, para o goleiro do outro time ser posicionado.
Cada cidade tem o seu jeito de jogar. No Rio, jogava-se com um dadinho, comprado em qualquer papelaria. Parece coisa de maluco, jogar com uma bola quadrada. Mas ela dá efeito, é rápida, voa, como se estivéssemos no estádio de La Paz (Bolívia). No Rio, o galalite era o material do jogador. Cada um de uma cor, brilhante como madrepérola, devia ser lixado antes, para correr como um recordista de 100 metros. Os atacantes eram menores. Os beques, altos.
O goleiro? Chumbo derretido, enfiado em caixa de fósforo.
Em Santos, jogava-se com tampas de relógio. As de despertador viravam beques. As de pulso, atacantes hábeis. Toda molecada fazia incursões pelos relojoeiros do Centro, em busca de grandes craques. Mas a bola era quase redonda: a peça do jogo War.
Já em São Paulo, se jogava com bolas de feltro, esféricas, mas lentas, que corriam desengonçadas, e por vezes eram amassadas, vítimas de um pisão involuntário.
Sozinhos, treinávamos. Jogávamos nós contra nós. Fazíamos campeonatos com tabela e torcida. E, claro, narrávamos, como um locutor de rádio esbaforido. O som da torcida era confundido com a asma do avô.
Alguns tinham a manha de manufaturar arquibancadas com caixas de sapatos, desenhar torcedores, bandeiras e faixas.
Como qualquer técnico, tínhamos os jogadores favoritos, o artilheiro, o Bola de Ouro, guardados em caixas separadas e tratados com cuidado, como se fossem nosso maior bem. Na dureza, poderíamos até vender o craque para um amigo.
Amadurecemos e nos esquecemos deles. Mas pode checar: em cada casa, em cada fundo de armário, está lá, o time intacto, hibernando pacientemente, esperando enlouquecermos, para voltarmos a jogar com eles.

Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na Escola

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