quinta-feira, 21 de julho de 2022

João Valentão | Dorival Caymmi, 1953


Cronista de seu povo e de seu tempo, mistura perfeita de africanos e italianos, Dorival Caymmi imortalizou muitos personagens que encontrou ao longo da vida em suas canções. “João Valentão” foi um deles, um pescador que conheceu na juventude, na praia de Itapuã, e serviu de inspiração para o samba-canção que se tornou um de seus maiores sucessos. Lançada num compacto simples em 1953 (como o lado B de “Tão só”, escrita com seu parceiro de copo e boêmia Carlos Guinle), a composição tinha começado a nascer em 1936, dois anos antes de Caymmi trocar Salvador pelo Rio de Janeiro, e, com a falta de pressa que o caracterizava, só foi terminada em 1945.
Meticuloso artesão da palavra cantada, Caymmi só dava uma canção por terminada após esgotar todas as possibilidades de rima, métrica, melodia e ritmo e encontrar a forma ideal. E isso podia levar anos. Entre os primeiros versos, escritos aos 22 anos quando estava se iniciando na arte de compor, e a forma final, foram nove. Seu amálgama de música e palavras é um exemplo de força e concisão, com pinceladas psicológicas do pescador, ao mesmo tempo durão e lírico, “que nunca precisa dormir pra sonhar”, perfeitamente integrado ao cenário paradisíaco que habita, à beira-mar, deitado na areia da praia, entre o fim da tarde (“quando o sol vai quebrando / lá pro fim do mundo pra noite chegar”) e a noite, que, “se é de lua”, estimula a contar mentiras e se espreguiçar.
Em entrevista à neta e biógrafa Stella, Caymmi contou que ele e seus amigos idolatravam um pescador de Itapuã, um cara forte e corajoso, cheio de histórias, e que inspirou o personagem da música depois de reclamar com Caymmi por trocar o seu convite para embarcar numa pescaria para ficar no banho de mar em Itapuã. Com a cobrança na cabeça e botando no personagem também algo de si, o jovem Caymmi fez os primeiros versos da então “João Carapeba” – também o nome de um peixe, que era o apelido de seu personagem. Ao longo dos nove anos seguintes ele foi avançando lentamente na história, até que, a bordo de um bonde da linha Grajaú, lhe ocorreram os quatro versos finais.
Enquanto grandes compositores como Tom Jobim, Ary Barroso ou Chico Buarque têm 300, 400 músicas, Caymmi, que viveu 94 anos, tem pouco mais do que 80. Mas todas ótimas. Muitas levaram mais de dez anos para serem concluídas, no feliz encontro da poesia com o rigor e a preguiça.
Em 1965, Elis Regina regravou “João Valentão” com o Zimbo Trio e soberbo arranjo jazzístico de Paulo Moura no LP Samba eu canto assim.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

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