Cronista
de seu povo e de seu tempo, mistura perfeita de africanos e
italianos, Dorival Caymmi imortalizou muitos personagens que
encontrou ao longo da vida em suas canções. “João Valentão”
foi um deles, um pescador que conheceu na juventude, na praia de
Itapuã, e serviu de inspiração para o samba-canção que se tornou
um de seus maiores sucessos. Lançada num compacto simples em 1953
(como o lado B de “Tão só”, escrita com seu parceiro de copo e
boêmia Carlos Guinle), a composição tinha começado a nascer em
1936, dois anos antes de Caymmi trocar Salvador pelo Rio de Janeiro,
e, com a falta de pressa que o caracterizava, só foi terminada em
1945.
Meticuloso
artesão da palavra cantada, Caymmi só dava uma canção por
terminada após esgotar todas as possibilidades de rima, métrica,
melodia e ritmo e encontrar a forma ideal. E isso podia levar anos.
Entre os primeiros versos, escritos aos 22 anos quando estava se
iniciando na arte de compor, e a forma final, foram nove. Seu
amálgama de música e palavras é um exemplo de força e concisão,
com pinceladas psicológicas do pescador, ao mesmo tempo durão e
lírico, “que nunca precisa dormir pra sonhar”, perfeitamente
integrado ao cenário paradisíaco que habita, à beira-mar, deitado
na areia da praia, entre o fim da tarde (“quando o sol vai
quebrando / lá pro fim do mundo pra noite chegar”) e a noite, que,
“se é de lua”, estimula a contar mentiras e se espreguiçar.
Em
entrevista à neta e biógrafa Stella, Caymmi contou que ele e seus
amigos idolatravam um pescador de Itapuã, um cara forte e corajoso,
cheio de histórias, e que inspirou o personagem da música depois de
reclamar com Caymmi por trocar o seu convite para embarcar numa
pescaria para ficar no banho de mar em Itapuã. Com a cobrança na
cabeça e botando no personagem também algo de si, o jovem Caymmi
fez os primeiros versos da então “João Carapeba” – também o
nome de um peixe, que era o apelido de seu personagem. Ao longo dos
nove anos seguintes ele foi avançando lentamente na história, até
que, a bordo de um bonde da linha Grajaú, lhe ocorreram os quatro
versos finais.
Enquanto
grandes compositores como Tom Jobim, Ary Barroso ou Chico Buarque têm
300, 400 músicas, Caymmi, que viveu 94 anos, tem pouco mais do que
80. Mas todas ótimas. Muitas levaram mais de dez anos para serem
concluídas, no feliz encontro da poesia com o rigor e a preguiça.
Em
1965, Elis Regina regravou “João Valentão” com o Zimbo Trio e
soberbo arranjo jazzístico de Paulo Moura no LP Samba eu canto
assim.
Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil
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