quarta-feira, 13 de julho de 2022

Island Book


Na balsa de Hyannis para Alice Island, Amelia Loman pinta as unhas de amarelo e, enquanto espera que sequem, dá uma lida nas anotações de seu predecessor. “Island Books, aproximadamente 350 000 dólares per annum em vendas, a maior parte para os veranistas nas férias”, reportou Harvey Rhodes. “Cento e oitenta metros quadrados de área de vendas. Sem funcionários em tempo integral exceto o dono. Seção infantil muito pequena. Presença na internet incipiente. Pouca influência na comunidade. O inventário dá ênfase à literatura, o que é bom para nós, mas o gosto de Fikry é muito específico e, sem a Nic, não dá para experimentar coisas diferentes por ali. Pra sorte dele, a Island é a única livraria da cidade.” Amelia boceja — está com uma ressaquinha leve — e pensa se uma única livraria esnobe vai valer a pena uma viagem tão longa. Quando o esmalte secou, seu incansável lado otimista já tinha dominado: Claro que vai valer a pena! Sua especialidade são livrariazinhas esnobes e os tipos que cuidam delas. Seus talentos também incluem ser multitarefas, selecionar o vinho ideal para o jantar (e a habilidade adjunta: cuidar dos amigos que beberam demais), plantas caseiras, vira-latas e outras causas perdidas.
Ao descer da balsa, seu telefone toca. Ela não reconhece o número — nenhum dos seus amigos usa o celular como telefone. Mas ela fica feliz com a distração e não quer se tornar o tipo de pessoa que pensa que boas notícias só chegam em ligações esperadas e de conhecidos. O autor da chamada é Boyd Flanagan, sua terceira tentativa fracassada de namoro on-line. Ele a levara ao circo seis meses antes.
Eu mandei uma mensagem pra você, umas semanas atrás”, ele diz. “Recebeu?”
Ela conta que mudou de emprego recentemente, e por isso seus celulares estão zoados. “E também andei pensando nessa história de namoro on-line. Se eu nasci pra isso mesmo.”
Boyd parece não ter ouvido a última parte. “Você quer sair comigo de novo?”, ele pergunta.
Recapitulando esse encontro. Por um tempinho, o circo a distraiu do fato de que não tinham nada em comum. Ao fim do jantar, a verdade sobre a incompatibilidade já tinha vindo à tona. Talvez tivesse sido óbvio a começar pela inabilidade em chegar a um consenso sobre o que pedir de aperitivo ou pela admissão durante o prato principal de que ele não gostava de “coisas velhas” — antiguidades, casas, cachorros, pessoas. E mesmo assim, Amelia não se permitiu ter certeza até chegar a sobremesa, quando perguntou que livro o tinha mais influenciado, e ele respondeu Princípios de contabilidade, Parte II.
Educadamente, disse que não, que não queria sair com ele outra vez.
Ela consegue ouvir a respiração de Boyd, rápida e irregular. Fica assustada com a possibilidade de ele estar chorando. “Tá tudo bem?”, pergunta.
Não seja condescendente.”
Amelia sabe que deveria desligar, mas não desliga. Uma parte dela quer a história. Qual o sentido de ir a encontros ruins a não ser ter histórias divertidas para contar aos amigos? “Como é?”
Notou que eu não liguei pra você de cara, Amelia? É que eu encontrei alguém melhor, mas não deu certo, então resolvi te dar uma segunda chance. Então não vai se achando a superior. Você tem um sorriso razoável, admito, mas seus dentes são grandes demais, que nem sua bunda. E você não tem mais vinte e cinco anos, apesar de beber como se tivesse. A cavalo dado não se olha o dente.” O cavalo dado começa a chorar. “Desculpa. Me desculpa.”
Tá tudo bem, Boyd.”
Qual é o meu problema? O circo foi legal, né? E eu não sou tão ruim.”
Você é ótimo. E o circo foi muito criativo.”
Mas deve ter um motivo pra você não gostar de mim. Fala a verdade.”
A essa altura, há muitos motivos para não gostar dele. Ela escolhe um. “Lembra quando eu disse que trabalhava com livros e você falou que não gostava de ler?”
Você é esnobe”, ele conclui.
Com relação a algumas coisas, suponho que sim. Escuta, Boyd, estou trabalhando. Preciso ir”, Amelia desliga. Ela não é orgulhosa da aparência e certamente não dá valor à opinião de Boyd Flanagan, que nem estava falando com ela de qualquer maneira. Ela só é a mais recente decepção dele. Também já teve sua cota de decepções.
Tem trinta e um anos e pensa que já deveria ter conhecido alguém a essa altura.
No entanto…
Amelia, a otimista, acredita que é melhor ficar só do que com alguém que não compartilha de suas sensibilidades e interesses. (É, não é?)
Sua mãe gosta de falar que os romances arruinaram Amelia para homens reais. O comentário insulta Amelia porque insinua que ela só lê livros com heróis românticos clássicos. De vez em quando até que curte, mas seu gosto literário é muito mais variado. Além disso, adora Humbert Humbert como personagem, mas aceita o fato de que não iria querê-lo como parceiro, namorado ou até como um casinho. Sente o mesmo por Holden Caulfield, sr. Rochester e Darcy.
A placa sobre a varanda da casa roxa da era vitoriana está desbotada, e Amelia quase passa reto.

ISLAND BOOKS
A única fonte de boa literatura em Alice Island desde 1999
Nenhum homem é uma ilha; Cada livro é um mundo

Lá dentro, uma adolescente cuida do caixa enquanto lê a nova seleção de contos de Alice Munro. “Ah, está gostando?”, Amelia pergunta. Adora Munro, mas quase não tem tempo de ler livros fora da sua lista, a não ser nas férias.
É pra escola”, a menina responde, como se isso resolvesse a dúvida.
Amelia se apresenta como a representante de vendas da editora Pterodactyl Press, e a adolescente, sem tirar os olhos da página, aponta pra qualquer lugar nos fundos. “O A.J. tá no escritório.”
Pilhas instáveis de exemplares para divulgação e provas emolduram o corredor, e Amelia sente uma desesperança incomum. A sacola ecológica que traz no ombro contém muitos acréscimos às pilhas de A.J. e um catálogo repleto de outros livros para sugerir. Ela nunca mente sobre os livros em sua lista. Nunca diz que amou um livro se não é verdade. Normalmente consegue achar algo positivo pra dizer sobre o livro, e quando não, sobre a capa, e quando não, sobre o autor, e quando não, sobre o site do autor. E é por isso que eles me pagam tão bem, de vez em quando brinca consigo mesma. Ganha 37 mil dólares por ano mais os bônus possíveis, embora ninguém no seu cargo tenha ganhado um bônus há muito tempo.
A porta para o escritório de A.J. Fikry está fechada. Amelia está quase lá quando a manga de seu suéter fica presa a uma das pilhas e centenas de livros, talvez mais, caem ao chão, fazendo um barulhão embaraçoso. A porta é aberta, e A.J. Fikry olha da destruição para aquela gigante loira, que está tentando freneticamente arrumar os livros. “Quem é você, porra?”
Amelia Loman.” Ela empilha mais dez volumes e metade cai.
Deixa quieto”, A.J. ordena. “Tem uma ordem certa. Você não está ajudando. Por favor, vai embora.”
Amelia fica de pé. É pelo menos dez centímetros mais alta que ele. “Mas temos uma reunião.”
Não temos reunião nenhuma”, A.J. responde.
Temos, sim”, insiste Amelia. “Mandei um e-mail semana passada sobre os lançamentos de inverno. Você disse que eu podia vir na quinta ou na sexta à tarde. Eu disse que viria na quinta.” A troca de e-mails tinha sido rápida, mas real.
Você é representante?”
Amelia assente, aliviada.
Qual é a editora mesmo?”
Pterodactyl.”
A Pterodactyl Press é do Harvey Rhodes”, A.J. retruca. “Quando você mandou e-mail semana passada, pensei que fosse assistente dele ou coisa do tipo.”
Sou a substituta do Harvey.”
A.J. suspira pesadamente. “Pra qual empresa o Harvey foi?”
O Harvey morreu, e por um segundo Amelia considera fazer uma piada ruim, como se o além fosse um tipo de empresa e Harvey estivesse trabalhando lá. “Ele morreu”, ela diz secamente. “Pensei que soubesse.” A maior parte dos seus contatos já tinha ficado sabendo. Harvey tinha sido uma lenda, pelo menos dentro do mundo dos representantes de vendas. “Publicaram um obituário na newsletter da ABA e talvez na Publishers Weekly também”, ela diz para se redimir.
Eu não sigo notícias do mercado editorial”, diz A.J. Ele tira os óculos de aros grossos e pretos e fica um tempão limpando as lentes.
Sinto muito.” Amelia coloca a mão sobre o braço de A.J., e ele se desvencilha dela.
Que me importa? Eu mal conhecia o homem. A gente se via três vezes por ano. Não é o suficiente pra fazer amizade. E todas as vezes que ele vinha, era pra me vender algo. Isso não é amizade.”
Amelia percebe que A.J. não está no clima de saber sobre o catálogo de inverno. Ela devia se oferecer pra voltar outro dia. Mas depois pensa na viagem de duas horas até Hyannis e na balsa de uma hora e vinte até Alice, e nos horários da balsa, que ficam cada vez mais irregulares depois de outubro. “Já que estou aqui”, diz Amelia, “se importa em olharmos os lançamentos de inverno da Pterodactyl?”
O escritório de A.J. é um armário. Sem janelas, sem quadros, sem fotos da família sobre a mesa, sem bibelôs, sem saída. Tem livros, prateleiras baratas de metal, tipo as de garagem, um armário e um computador antigo, provavelmente do século XX. A.J. não oferece algo pra beber, e, embora Amelia esteja com sede, não pede. Tira uns livros de cima da cadeira e se senta.
Amelia começa a falar da lista de inverno. É a menor do ano, tanto em tamanho quanto em importância. Alguns poucos estreantes de grande porte (ou ao menos de grandes expectativas), mas, exceto por esses, a lista é cheia de livros pelos quais a editora não tem a menor esperança comercial. Apesar disso, Amelia geralmente gosta mais dos “invernais”. São azarões, pobres coitados, as apostas arriscadas. (Não é exagero dizer que é assim que ela se vê também.) Deixa por último seu favorito, memórias escritas por um homem de oitenta anos, um solteirão convicto que se casou aos setenta e oito anos. Sua noiva morreu dois anos após o casamento, aos oitenta e três. Câncer. De acordo com a biografia, o autor trabalhou como repórter científico para vários jornais do meio-oeste dos Estados Unidos e sua prosa é precisa, engraçada e nem um pouco piegas. Amelia chorou incontrolavelmente no trem de Nova York para Providence. Sabe que Desabrochar tardio é um livro de pouca importância e que a descrição soa bastante clichê, mas tem certeza de que as pessoas vão amar se lhe derem uma chance. Pela experiência de Amelia, a maior parte dos problemas das pessoas seria resolvida se dessem mais chances às coisas.
Amelia está na metade da descrição de Desabrochar tardio quando A.J. coloca a testa na mesa.
O que foi?”, Amelia pergunta.
Não é pra mim”, A.J. responde.
Lê só o primeiro capítulo.” Amelia enfia a prova na mão dele. “Eu sei que o assunto parece brega, mas quando ler a escri…”
Ele interrompe: “Não é pra mim”.
O.k., então vou apresentar outra coisa.”
A.J. inspira profundamente. “Você parece uma jovem legal, mas seu antecessor… O negócio é: Harvey conhecia meus gostos. Eram os mesmos que os dele.”
Amelia coloca a prova sobre a mesa. “Eu gostaria de conhecer os seus gostos”, ela diz, se sentindo um pouco como num filme pornô.
Ele murmura algo entre os dentes. Ela acha que foi Pra quê?, mas não tem certeza.
Amelia fecha o catálogo da Pterodactyl. “Sr. Fikry, por favor, me fale do que gosta.”
Gosta”, ele repete com desgosto. “Que tal eu falar do que não gosto? Não gosto de pós-modernismo, ambientações pós-apocalípticas, narradores post mortem nem de realismo mágico. Não costumo gostar de artimanhas nos formatos, fontes múltiplas, imagens desnecessárias — basicamente, truques de qualquer tipo. Acho ficção sobre o Holocausto ou qualquer outra grande tragédia mundial de mau gosto: apenas não ficção, por favor. Não gosto de mistura de gêneros, tipo romance literário de detetive ou fantasia literária. Literatura é literatura, gênero é gênero, misturar as coisas não costuma dar muito certo. Não gosto de livros infantis, principalmente os com órfãos, e prefiro não entulhar minhas prateleiras com livros juvenis. Não gosto de nada com mais de quatrocentas páginas e menos de cento e cinquenta. Sinto repulsa por romances escritos por ghost-writers para estrelas de reality show, livros de imagens de celebridades, memórias de esportistas, edições pós-filme, livro-brinquedo e, suponho que nem preciso dizer, vampiros. Não costumo estocar lançamentos, chick lit, poesia e traduções. Preferiria não ter que estocar séries, mas minha conta bancária me obriga. Você não precisa me contar da ‘próxima grande série’ até que ela esteja abrigada na lista de best-sellers do New York Times. E, o mais importante, srta. Loman, não tolero memórias curtinhas de velhinhos cujas esposinhas morreram de câncer. Não importa quão bem escritas a representante de vendas diga que são. Não importa quantas cópias prometa vender no Dia das Mães.”
Amelia fica vermelha, embora seja mais por raiva e não tanto por vergonha. Ela concorda em parte com A.J., mas o modo de falar foi desnecessariamente mal-educado. A Pterodactyl Press nem vende metade daquelas coisas. Ela o estuda. É mais velho que ela, mas não muito, não mais que dez anos. É muito novo pra gostar de tão pouco. “Do que você gosta?”, pergunta.
Todo o resto”, ele responde. “Admito que de vez em quando tenho uma queda por compilações de contos. Mas os clientes nunca compram.”
[...]

Gabrielle Zevin, in A vida do livreiro A. J. Fikry

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