Na
balsa de Hyannis para Alice Island, Amelia Loman pinta as unhas de
amarelo e, enquanto espera que sequem, dá uma lida nas anotações
de seu predecessor. “Island Books, aproximadamente 350 000 dólares
per annum em vendas, a maior parte para os veranistas nas
férias”, reportou Harvey Rhodes. “Cento e oitenta metros
quadrados de área de vendas. Sem funcionários em tempo integral
exceto o dono. Seção infantil muito pequena. Presença na internet
incipiente. Pouca influência na comunidade. O inventário dá ênfase
à literatura, o que é bom para nós, mas o gosto de Fikry é muito
específico e, sem a Nic, não dá para experimentar coisas
diferentes por ali. Pra sorte dele, a Island é a única livraria da
cidade.” Amelia boceja — está com uma ressaquinha leve — e
pensa se uma única livraria esnobe vai valer a pena uma viagem tão
longa. Quando o esmalte secou, seu incansável lado otimista já
tinha dominado: Claro que vai valer a pena! Sua especialidade
são livrariazinhas esnobes e os tipos que cuidam delas. Seus
talentos também incluem ser multitarefas, selecionar o vinho ideal
para o jantar (e a habilidade adjunta: cuidar dos amigos que beberam
demais), plantas caseiras, vira-latas e outras causas perdidas.
Ao
descer da balsa, seu telefone toca. Ela não reconhece o número —
nenhum dos seus amigos usa o celular como telefone. Mas ela fica
feliz com a distração e não quer se tornar o tipo de pessoa que
pensa que boas notícias só chegam em ligações esperadas e de
conhecidos. O autor da chamada é Boyd Flanagan, sua terceira
tentativa fracassada de namoro on-line. Ele a levara ao circo seis
meses antes.
“Eu
mandei uma mensagem pra você, umas semanas atrás”, ele diz.
“Recebeu?”
Ela
conta que mudou de emprego recentemente, e por isso seus celulares
estão zoados. “E também andei pensando nessa história de namoro
on-line. Se eu nasci pra isso mesmo.”
Boyd
parece não ter ouvido a última parte. “Você quer sair comigo de
novo?”, ele pergunta.
Recapitulando
esse encontro. Por um tempinho, o circo a distraiu do fato de que não
tinham nada em comum. Ao fim do jantar, a verdade sobre a
incompatibilidade já tinha vindo à tona. Talvez tivesse sido óbvio
a começar pela inabilidade em chegar a um consenso sobre o que pedir
de aperitivo ou pela admissão durante o prato principal de que ele
não gostava de “coisas velhas” — antiguidades, casas,
cachorros, pessoas. E mesmo assim, Amelia não se permitiu ter
certeza até chegar a sobremesa, quando perguntou que livro o tinha
mais influenciado, e ele respondeu Princípios de contabilidade,
Parte II.
Educadamente,
disse que não, que não queria sair com ele outra vez.
Ela
consegue ouvir a respiração de Boyd, rápida e irregular. Fica
assustada com a possibilidade de ele estar chorando. “Tá tudo
bem?”, pergunta.
“Não
seja condescendente.”
Amelia
sabe que deveria desligar, mas não desliga. Uma parte dela quer a
história. Qual o sentido de ir a encontros ruins a não ser ter
histórias divertidas para contar aos amigos? “Como é?”
“Notou
que eu não liguei pra você de cara, Amelia? É que eu encontrei
alguém melhor, mas não deu certo, então resolvi te dar uma segunda
chance. Então não vai se achando a superior. Você tem um sorriso
razoável, admito, mas seus dentes são grandes demais, que nem sua
bunda. E você não tem mais vinte e cinco anos, apesar de beber como
se tivesse. A cavalo dado não se olha o dente.” O cavalo dado
começa a chorar. “Desculpa. Me desculpa.”
“Tá
tudo bem, Boyd.”
“Qual
é o meu problema? O circo foi legal, né? E eu não sou tão ruim.”
“Você
é ótimo. E o circo foi muito criativo.”
“Mas
deve ter um motivo pra você não gostar de mim. Fala a verdade.”
A
essa altura, há muitos motivos para não gostar dele. Ela escolhe
um. “Lembra quando eu disse que trabalhava com livros e você falou
que não gostava de ler?”
“Você
é esnobe”, ele conclui.
“Com
relação a algumas coisas, suponho que sim. Escuta, Boyd, estou
trabalhando. Preciso ir”, Amelia desliga. Ela não é orgulhosa da
aparência e certamente não dá valor à opinião de Boyd Flanagan,
que nem estava falando com ela de qualquer maneira. Ela só é a mais
recente decepção dele. Também já teve sua cota de decepções.
Tem
trinta e um anos e pensa que já deveria ter conhecido alguém a essa
altura.
No
entanto…
Amelia,
a otimista, acredita que é melhor ficar só do que com alguém que
não compartilha de suas sensibilidades e interesses. (É, não é?)
Sua
mãe gosta de falar que os romances arruinaram Amelia para homens
reais. O comentário insulta Amelia porque insinua que ela só lê
livros com heróis românticos clássicos. De vez em quando até que
curte, mas seu gosto literário é muito mais variado. Além disso,
adora Humbert Humbert como personagem, mas aceita o fato de que não
iria querê-lo como parceiro, namorado ou até como um casinho. Sente
o mesmo por Holden Caulfield, sr. Rochester e Darcy.
A
placa sobre a varanda da casa roxa da era vitoriana está desbotada,
e Amelia quase passa reto.
ISLAND
BOOKS
A
única fonte de boa literatura em Alice Island desde 1999
Nenhum
homem é uma ilha; Cada livro é um mundo
Lá
dentro, uma adolescente cuida do caixa enquanto lê a nova seleção
de contos de Alice Munro. “Ah, está gostando?”, Amelia pergunta.
Adora Munro, mas quase não tem tempo de ler livros fora da sua
lista, a não ser nas férias.
“É
pra escola”, a menina responde, como se isso resolvesse a dúvida.
Amelia
se apresenta como a representante de vendas da editora Pterodactyl
Press, e a adolescente, sem tirar os olhos da página, aponta pra
qualquer lugar nos fundos. “O A.J. tá no escritório.”
Pilhas
instáveis de exemplares para divulgação e provas emolduram o
corredor, e Amelia sente uma desesperança incomum. A sacola
ecológica que traz no ombro contém muitos acréscimos às pilhas de
A.J. e um catálogo repleto de outros livros para sugerir. Ela nunca
mente sobre os livros em sua lista. Nunca diz que amou um livro se
não é verdade. Normalmente consegue achar algo positivo pra dizer
sobre o livro, e quando não, sobre a capa, e quando não, sobre o
autor, e quando não, sobre o site do autor. E é por isso que
eles me pagam tão bem, de vez em quando brinca consigo mesma.
Ganha 37 mil dólares por ano mais os bônus possíveis, embora
ninguém no seu cargo tenha ganhado um bônus há muito tempo.
A
porta para o escritório de A.J. Fikry está fechada. Amelia está
quase lá quando a manga de seu suéter fica presa a uma das pilhas e
centenas de livros, talvez mais, caem ao chão, fazendo um barulhão
embaraçoso. A porta é aberta, e A.J. Fikry olha da destruição
para aquela gigante loira, que está tentando freneticamente arrumar
os livros. “Quem é você, porra?”
“Amelia
Loman.” Ela empilha mais dez volumes e metade cai.
“Deixa
quieto”, A.J. ordena. “Tem uma ordem certa. Você não está
ajudando. Por favor, vai embora.”
Amelia
fica de pé. É pelo menos dez centímetros mais alta que ele. “Mas
temos uma reunião.”
“Não
temos reunião nenhuma”, A.J. responde.
“Temos,
sim”, insiste Amelia. “Mandei um e-mail semana passada sobre
os lançamentos de inverno. Você disse que eu podia vir na quinta ou
na sexta à tarde. Eu disse que viria na quinta.” A troca de
e-mails tinha sido rápida, mas real.
“Você
é representante?”
Amelia
assente, aliviada.
“Qual
é a editora mesmo?”
“Pterodactyl.”
“A
Pterodactyl Press é do Harvey Rhodes”, A.J. retruca. “Quando
você mandou e-mail semana passada, pensei que fosse assistente dele
ou coisa do tipo.”
“Sou
a substituta do Harvey.”
A.J.
suspira pesadamente. “Pra qual empresa o Harvey foi?”
O
Harvey morreu, e por um segundo Amelia considera fazer uma piada
ruim, como se o além fosse um tipo de empresa e Harvey estivesse
trabalhando lá. “Ele morreu”, ela diz secamente. “Pensei que
soubesse.” A maior parte dos seus contatos já tinha ficado
sabendo. Harvey tinha sido uma lenda, pelo menos dentro do mundo dos
representantes de vendas. “Publicaram um obituário na newsletter
da ABA e talvez na Publishers Weekly também”, ela diz para se
redimir.
“Eu
não sigo notícias do mercado editorial”, diz A.J. Ele tira os
óculos de aros grossos e pretos e fica um tempão limpando as
lentes.
“Sinto
muito.” Amelia coloca a mão sobre o braço de A.J., e ele se
desvencilha dela.
“Que
me importa? Eu mal conhecia o homem. A gente se via três vezes por
ano. Não é o suficiente pra fazer amizade. E todas as vezes que ele
vinha, era pra me vender algo. Isso não é amizade.”
Amelia
percebe que A.J. não está no clima de saber sobre o catálogo de
inverno. Ela devia se oferecer pra voltar outro dia. Mas depois pensa
na viagem de duas horas até Hyannis e na balsa de uma hora e vinte
até Alice, e nos horários da balsa, que ficam cada vez mais
irregulares depois de outubro. “Já que estou aqui”, diz Amelia,
“se importa em olharmos os lançamentos de inverno da Pterodactyl?”
O
escritório de A.J. é um armário. Sem janelas, sem quadros, sem
fotos da família sobre a mesa, sem bibelôs, sem saída. Tem livros,
prateleiras baratas de metal, tipo as de garagem, um armário e um
computador antigo, provavelmente do século XX. A.J. não oferece
algo pra beber, e, embora Amelia esteja com sede, não pede. Tira uns
livros de cima da cadeira e se senta.
Amelia
começa a falar da lista de inverno. É a menor do ano, tanto em
tamanho quanto em importância. Alguns poucos estreantes de grande
porte (ou ao menos de grandes expectativas), mas, exceto por esses, a
lista é cheia de livros pelos quais a editora não tem a menor
esperança comercial. Apesar disso, Amelia geralmente gosta mais dos
“invernais”. São azarões, pobres coitados, as apostas
arriscadas. (Não é exagero dizer que é assim que ela se vê
também.) Deixa por último seu favorito, memórias escritas por um
homem de oitenta anos, um solteirão convicto que se casou aos
setenta e oito anos. Sua noiva morreu dois anos após o casamento,
aos oitenta e três. Câncer. De acordo com a biografia, o autor
trabalhou como repórter científico para vários jornais do
meio-oeste dos Estados Unidos e sua prosa é precisa, engraçada e
nem um pouco piegas. Amelia chorou incontrolavelmente no trem de Nova
York para Providence. Sabe que Desabrochar tardio é um livro
de pouca importância e que a descrição soa bastante clichê, mas
tem certeza de que as pessoas vão amar se lhe derem uma chance. Pela
experiência de Amelia, a maior parte dos problemas das pessoas seria
resolvida se dessem mais chances às coisas.
Amelia
está na metade da descrição de Desabrochar tardio quando
A.J. coloca a testa na mesa.
“O
que foi?”, Amelia pergunta.
“Não
é pra mim”, A.J. responde.
“Lê
só o primeiro capítulo.” Amelia enfia a prova na mão dele. “Eu
sei que o assunto parece brega, mas quando ler a escri…”
Ele
interrompe: “Não é pra mim”.
“O.k.,
então vou apresentar outra coisa.”
A.J.
inspira profundamente. “Você parece uma jovem legal, mas seu
antecessor… O negócio é: Harvey conhecia meus gostos. Eram os
mesmos que os dele.”
Amelia
coloca a prova sobre a mesa. “Eu gostaria de conhecer os seus
gostos”, ela diz, se sentindo um pouco como num filme pornô.
Ele
murmura algo entre os dentes. Ela acha que foi Pra quê?, mas
não tem certeza.
Amelia
fecha o catálogo da Pterodactyl. “Sr. Fikry, por favor, me fale do
que gosta.”
“Gosta”,
ele repete com desgosto. “Que tal eu falar do que não gosto? Não
gosto de pós-modernismo, ambientações pós-apocalípticas,
narradores post mortem nem de realismo mágico. Não costumo gostar
de artimanhas nos formatos, fontes múltiplas, imagens desnecessárias
— basicamente, truques de qualquer tipo. Acho ficção sobre o
Holocausto ou qualquer outra grande tragédia mundial de mau gosto:
apenas não ficção, por favor. Não gosto de mistura de gêneros,
tipo romance literário de detetive ou fantasia literária.
Literatura é literatura, gênero é gênero, misturar as coisas não
costuma dar muito certo. Não gosto de livros infantis,
principalmente os com órfãos, e prefiro não entulhar minhas
prateleiras com livros juvenis. Não gosto de nada com mais de
quatrocentas páginas e menos de cento e cinquenta. Sinto repulsa por
romances escritos por ghost-writers para estrelas de reality show,
livros de imagens de celebridades, memórias de esportistas, edições
pós-filme, livro-brinquedo e, suponho que nem preciso dizer,
vampiros. Não costumo estocar lançamentos, chick lit, poesia
e traduções. Preferiria não ter que estocar séries, mas minha
conta bancária me obriga. Você não precisa me contar da ‘próxima
grande série’ até que ela esteja abrigada na lista de
best-sellers do New York Times. E, o mais importante, srta.
Loman, não tolero memórias curtinhas de velhinhos cujas esposinhas
morreram de câncer. Não importa quão bem escritas a representante
de vendas diga que são. Não importa quantas cópias prometa vender
no Dia das Mães.”
Amelia
fica vermelha, embora seja mais por raiva e não tanto por vergonha.
Ela concorda em parte com A.J., mas o modo de falar foi
desnecessariamente mal-educado. A Pterodactyl Press nem vende metade
daquelas coisas. Ela o estuda. É mais velho que ela, mas não muito,
não mais que dez anos. É muito novo pra gostar de tão pouco. “Do
que você gosta?”, pergunta.
“Todo
o resto”, ele responde. “Admito que de vez em quando tenho uma
queda por compilações de contos. Mas os clientes nunca compram.”
[...]
Gabrielle Zevin, in A vida do livreiro A. J. Fikry
Nenhum comentário:
Postar um comentário