segunda-feira, 4 de julho de 2022

Estória nº 3

Conta-se, comprova-se e confere que, na hora, Joãoquerque assistia à Mira frigir bolinhos para o jantar, conversando os dois pequenidades, amenidades, certezas. Sim, senhor, senhora, o amor. Cercavam-nos anjos-da-guarda, aos infinilhões.
E estrondeou aí foi então do pacato do ar o: — Ô de casa! — varando-a até à cozinha onde sobreditamente se fitavam Joãoquerque e Mira, que tremeram tomando rebate.
Ô! Renovou-se abrupto o brado, esmurrada a porta, ouvida também correria na rua, após estampido de arma, provável à boca do beco. Mira deixando cair a escumadeira trouxe ante rosto as mãos, por ímpeto de ato, pois já as retorcia e apertava-as contra os seios; sozinha ela residia ali, viúva recém, sem penhor de estado nem valedio pronto. Joãoquerque encostou o peito à barriga, no brusco do fato, mesmo seu nariz se crispou meticuloso.
Porque a voz era a do vilão Ipanemão, cruel como brasa mandada, matador de homens, violador de mulheres, incontido e impune como o rol dos flagelos. De que assim lhes sobreviesse, mediante o medonho, era para não se aceitar, na ilusão, nesses brios. Mas o destino pulava para outra estrada. Mira e Joãoquerque e Ipanemão cada qual em seu eixo giravam, que nem como movidos por tiras de alguma roda-mestra.
Deus meu, maior mal à maior detença ou a subiteza, a, a, a, o Ipanemão! dele era o que se passava, dono das variedades da vida, mandava no arraial inteiro. Mira via o instante e adiante, desenhos do horror: até hoje por isso não pode deixar de querer ainda mais, com históricos carinhos, o seu hoje mais que ex-amante, Joãoquerque, avergado homenzarrinho, que ora se gelava em azul angústia, retornados os beiços, mas branco de laranja descascada, pálido de a ela lembrar os mortos.
Ele — o nada a se fazer — pegado pelos entremeios, seus órgãos se movendo dentro do corpo, amarga grossa em fel e losna a língua, o coração a se estourar feito uma muita boiada ou cachoeira. — Pai do Céu! — e o Ipanemão era do tamanho do mundo — repetia, falto de mais alma, no descer do suor. Ia-se o dia em última luz. Onde estava sua cabeça?
Agora, porém, portintim, ele a quem queira ouvir inesquecivelmente narra, retintim, igual ao do que os livros falam, e três tantos. Joãoquerque diz tudo.
De que primeiro nada pensou, nulo, sem ensejo de ser e de tempo, nem vergonha, nem ciúme, condenado, mocho, empurrado, pois. Mira mesma mandou-o ir-se, com fechado cochicho, salvava-o; em finto tinha-se apagado o fogo, reinava só no borralho o ronrom do gato. Ela se ajoelhara, rezava, com numa mão a faca, pontuda, amolada, na outra o espeto, de comprimento de metro.
Teria ele de ganhar o nenhum rumo, para vastidão — Pai-do-Céu! — não se lhe dando de largada cá a Mira, sem porto e paz, podia nem com o vozeiro do Ipanemão, rompedor da harmonia, demoniático. E se debatia já à porta dos fundos, custou-lhe rodar a tramela, no triz de escape. Pôs-se para fora.
Pelo escuro quintal corre Joãoquerque, com árvores diversamente e moitas em incuido, nelas topava ou relava, às tortas de labirinto, traspassoso o quintal que nunca se terminava, se é que só lá em baixo, tão além, na cerca, onde houvesse depois o valezinho de um riacho, Joãoquerque corria e, quase no fim — já desabalado milagre era ele vencer o terreno, não conhecido — derrubou-se: no tentar estacar, entrevendo acolá injustos vultos, decerto de uns dos duros do Ipanemão, mas explicados mais tarde como sendo apenas o touro e vacas, atrasados noturnos ainda pastando, de Nhô Bertoldo.
Joãoquerque, caído, um pouco se ajuntou, devia de ter quebrado osso, não aventurando apalpar-se, teimava em se esconder mais que as minhocas, deu-lhe voltas a cabeça, os dentes como rato em trapos ou um tremer maleitas, pelo frio, pelo quente, ofegava num esbafo de vertido esforço sob os desapiedados pensamentos. Pior, errava o pensar, que nem uma colher de pau erra o tacho; diz que se esquecera de tudo nesta vida.
Isto é, isso foi depois.
Por ora, seca a goela e amargume, o doer de respirar, como um bicho frechado. A vão querer escapulir, seguir derrota, imundo de vexame. O Ipanemão não consentia, parecia ter-lhe já pulado por cima, às distâncias — aonde que viesse, esse havia de o escafuar — nem lhe valesse o fraquejo. Valia era sossegado morrer... — foi o alívio que propôs-se, suando produzidamente. Ipanemão, cão, seguro em enredo de maldade da cobra grande, dele ninguém se livrava, nem por forte caso. O mais era com a noite — isto é, os abismos, os astros. Joãoquerque prostrou-se, como um pavio comprido.
Estava deitado de costas, conforme num buraco, analfabeto para as estrelinhas. Foi nesta altura que ele não caiu em si. Tenho tempo, se disse. Teve o esquecimento, máquinas nos ouvidos.
Veio-lhe a Mira à mente; embuçou a ideia. Via: quem vivia era o Ipanemão, perseguindo-o a ele mesmo, Joãoquerque, valentemente. Até os grilos silenciavam. O silêncio pipocava. As corujas incham os olhos. Diabo do inferno! — se representou, sem ser do jeito de vítima. Remedava de ele próprio se ser então o Ipanemão, profundo. Tudo era leviano, satisfeito desimportante. O medo depressa se gastava? — caíra nas garras do incompreensível. Então, se levantou, e virou volta.
Do mais, enquanto, muito não se sabe.
Joãoquerque remontava o quintal, desatento a tudo, mas de cauteloso modo: o sapo deu mais sete pulos: se arrastava com fiel desonra. Não à porta da cozinha, à casa, senão que à longa mão direita, renteava o outro quintal, para o beco. Frouxos latiam uns cachorros.
Diante, o galinheiro velho; e ele, ali, de palpa treva. Tirou risco o fino de alguma luz: em machado, encabado, encostado, talvez até enferrujado terrível. Ele não podia pegar em nada, pois com cerrados os punhos, diabo-do-inferno! E o pé que continuou no ar. O machado, tal, para tangimento, relatado em sua razão.
E, então, que então, o que nenhuma voz disse, o que lhe raiou pronto no ânimo. Mais já não parava assim, em al, alhures, alheio, absorto, entrado no raro estado pendente, exilando-se de si. Por modo de não hábito, pegou o machado. Diabo do Céu!... — queria dar um assovio. A noite repassava escuro sobre escuros. Caminhou, catou adiante.
Com firme indireção, para maior coragem, pés de lobo. Como se fosse, diabo-do-céu!, brincar de matar, de verdade, o chão na base do passo. Passou-lhe o nada pela cabeça. Na rua, à vista de Deus e de todo-o-mundo — cometeu-se. O resto, em parte, é contado pelos outros.
De que o Ipanemão lá dentro não se achava, mas, com mais dois, defronte da casa, acocorado, à beira de foguinho, bebia e assava carne, sanguinaz, talvez sem nem real ideia de bulir com a Mira. Ou se distraía como o gato do rato, d’ora-a-agora.
Desreconheceram o vindo Joãoquerque, por contra que tanto sabido e visto. Mais o viam desvirado convertido.
Foi aliás de modo imoderado, que ele se chegou, rodeando um perigo, com cara de cão que não rosna, em sua covarde coerência: no não querer contenda. Saudou, parou, pasmoso, como um gesto detém a orquestra inteira.
Diz-se que era o dia do valente não ser; ou que o poder, aos tombos dos dados, emana do inesperado; ou que, vezes, a gente em si faz feitiços fortes, sem nem saber, por dentro da mente.
Ipanemão pendeu o rosto, desditado, os instantes hesitosos; aí foi revirando, rodou-se, mesmo agachado, de moventes cócoras — pondo-se inteiro de costas para o outro, do qual a esquivar olhar e presença.
Joãoquerque, porém, o rodeou, também, lhe pediu — Olhe! — baixo, e, erguendo com as duas mãos o machado, braz!, rachou-lhe em duas boas partes os miolos da cabeça. Ipanemão, enfim, em paz. Até aquele dia ele tinha sido imortal; perdeu as cascas. Os outros, viu-se, nem de leve fugiram, gritaram somente por misericórdias, consoante não deviam proceder.
Joãoquerque se sentou, fez porção de caretas. Nunca aprendera a não cuspir, não podia mais com tantas causas. Quer que dizer: os pés no chão, a mão na massa, a cabeça em seu lugar, os olhos desempoeirados, o nariz no que era de sua conta.
O padre e Mira, dali a dois meses, o casaram. Conte-se que uma vez.

Guimarães Rosa, in Tutameia

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