quinta-feira, 21 de julho de 2022

Enquanto Agonizo (trecho inicial)

Darl

Jewel e eu saímos da plantação, pela vereda, um atrás do outro. Embora eu esteja uns quinze passos à sua frente, quem nos observasse do depósito de algodão veria o chapéu de palha de Jewel, roto e esfiapado, ultrapassando o meu por uma cabeça.
A vereda, suavizada pelos pés e endurecida, qual tijolo, pelas quenturas de julho, estende-se, reta, entre os renques verdes de algodão capinado, até o depósito no meio do campo, onde ela se torce e contorna o depósito, em quatro ângulos retos de vértices imprecisos, e depois avança novamente pelo algodoal, batida por pés de efêmera precisão.
O depósito é feito de troncos grosseiros, de entre os quais o enchimento caiu há muito tempo. Quadrado, com um telhado esburacado, que se inclina, ele pende, semelhante a uma ruína desolada e fulgurante, à luz do sol; duas amplas janelas, em paredes opostas, abrem para as imediações da vereda. Ao chegarmos ao depósito, eu viro e sigo o caminho que rodeia a casa. Jewel, uns quinze passos atrás, olha em frente e, com uma só pernada, entra pela janela. Ainda com os olhos fitos à sua frente — olhos pálidos, de madeira, incrustados no rosto de madeira —, atravessa o chão do depósito em quatro passadas, com a rígida gravidade de um Índio de tabacaria* vestido com um poncho remendado e dotado de vida dos quadris para baixo, apenas; e sai, com uma só pernada, pela janela fronteira do depósito e entra novamente na vereda, no justo instante em que eu dobro a esquina. Um atrás do outro, a uma distância de cinco passos, e Jewel agora na minha frente, continuamos a subir a vereda rumo ao pé da encosta.
A carroça de Tull está ao lado da nascente, atada ao moirão, as rédeas enroladas atrás do banco. A carroça tem dois assentos. Jewel para na nascente, apanha a cabaça que pende de um ramo do salgueiro e bebe. Tomo sua dianteira e subo pela vereda, começando a escutar a serra de Cash.
Quando chego em cima ele já parou de serrar. De pé sobre uma porção de aparas, ajusta duas tábuas. Entre os espaços de sombra, elas brilham amarelas, como ouro, como ouro pálido, ostentando nos flancos, em ondulações suaves, as marcas da lâmina da enxó: bom carpinteiro, este Cash. Mantém as duas tábuas no cavalete, ajustando as bordas para que formem a quarta parte do caixão. Ajoelha-se e calcula com o olhar as arestas, depois baixa as tábuas e empunha a enxó. Um bom carpinteiro. Addie Bundren não podia desejar um melhor que ele, nem um caixão melhor em que descansar. O caixão lhe dará confiança e conforto. Dirijo-me para a casa, acompanhado pelo chaque chaque chaque da enxó.

* No original, a cigar store Indian: boneco usado como cartaz à porta de tabacarias e estabelecimentos semelhantes (N. do T. )

Cora

Portanto, guardei os ovos e cozi, ontem, no forno. Os bolas ficaram muito bons. Dependemos um bocado de nossas galinhas. São boas poedeiras, as poucas que nos restaram das sarigueias e outros contratempos. Cobras também, no verão. Uma cobra devasta um galinheiro mais depressa que outra coisa qualquer. Assim, elas saíram bem mais caro do que Mr. Tull pensava, e como prometi pagar a diferença com ovos, tive de ser mais cuidadosa do que nunca, porque por minha causa foram compradas. Podíamos ter comprado galinhas mais baratas, mas eu já havia prometido, como disse Miss Lawington, que me aconselhou uma boa raça, e também porque o próprio Mr. Tull admite que uma boa raça de vacas ou porcos é que dá bons resultados a longo prazo. Portanto, quando começamos a perder tantas galinhas, tivemos de poupar ovos, pois eu não suportaria repreensões de Mr. Tull, ainda mais porque as galinhas foram adquiridas com a minha palavra. De maneira que, quando Miss Lawington me falou dos bolos, pensei em prepará-los e ganhar dinheiro equivalente a duas cabeças de galinhas. E guardando os ovos, um de cada vez, eles não me custariam nada. Esta semana elas puseram tantos que eu não somente juntei uma quantidade acima do que ia mos vender, como também usei-os nos bolos, e ainda me sobraram bastantes ovos para que a farinha e o açúcar e a lenha do fogão me saiam de graça. Por isso, fiz bolos ontem, com o maior zelo de minha vida, e os bolos saíram muito bons. Mas quando fomos à cidade esta manhã, Miss Lawington me disse que a senhora mudara de ideia e que não ia dar festa nenhuma.
Mesmo assim deve ficar com os belos”, diz Kate. “Bem”, digo eu, “acho que agora ela não precisa mais deles.” “Ela deve ficar, sim”, diz Kate. “Mas essas senhoras ricas da cidade mudam muito de ideia. Os pobres é que não podem.” Riquezas nada significam aos olhos do Senhor, pois Ele vê o fundo dos corações. “Talvez eu consiga vendê-los, sábado, no bazar”, digo. Eles ficaram realmente bons.
Você não arranjaria dois dólares por um”, diz Kate.
Bem, na verdade é como se eles nada me tivessem custado,” digo. Economizei ovos e troquei uma dúzia por açúcar e farinha. Não creio que os bolos custassem alguma coisa, pois o próprio Mr. Tull sabe que os ovos que guardei ultrapassavam em muito a quantidade que havíamos prometido vender, de forma que, para mim, é como se tivéssemos encontrado os ovos, ou recebido de presente. “Ela deve ficar com os bolos, pois ela mesma fez a encomenda”, diz Kate. O Senhor lê no fundo dos corações. Se é Seu desejo que os pobres tenham, da honestidade, ideias diferentes de outras pessoas, não sou eu quem vai contrariar Seus desígnios. “Aposto como ela não precisava dos bolos”, digo. Eles ficaram bons, de fato. A enferma tem o cobertor puxado até o queixo, embora faça calor, e mantém descobertos apenas as mãos e o rosto. Está recostada no travesseiro, com a cabeça alta, de forma que pode ver além da janela, e podemos ouvi-lo sempre que ele empunha a enxó ou a serra. Se fôssemos surdos, poderíamos, provavelmente, ouvi-lo e vê-lo, através do rosto da mulher deitada. Um rosto consumido, de forma que os ossos apontam logo embaixo da pele, em linhas brancas. Seus olhos são semelhantes a duas velas que a gente vê derreter-se e pingar o espermacete nas arandelas dos castiçais de ferro. Mas a salvação eterna e a graça imperecível não descem sobre ela.
Os bolos ficaram realmente bons”, digo. “Mas não iguais aos bolos que Addie costumava fazer.” Basta olhar a fronha para ver como essa criatura lavava e passava bem a ferro, pois a fronha parece engomada para sempre. Talvez isso lhe desse consciência de sua cegueira, ali deitada à mercê e aos cuidados dos quatro homens e de uma menina traquinas.
Nenhuma mulher por estas bandas fará bolos tão gostosas quanto os de Addie Bundren,” eu digo. “Quando a gente menos esperar, ela se levanta e volta ao forno, e assim não teremos de vender os nossos bolos.” Debaixo do cobertor, o volume que ela faz não é maior que o de uma barra de ferro, e a única maneira de se saber que está respirando é pelo som das molas do colchão. Até o cabelo em suas faces não se move, embora a menina, em pé ao seu lado direito, esteja a abaná-la com o leque. Enquanto nós a ob sorvamos, ela passa o leque para a outra mão, sem parar de abanar.
Ela está dormindo?”, sussurra Kate.
Está olhando Cash, lá embaixo”, diz a menina. Ouvimos a serra na tábua. Parece roncar. Eula vira-se e olha pela janela. Seu colar assenta bem com o chapéu vermelho. Difícil pensar que custou apenas vinte e cinco cêntimos.
Ela devia ficar com esses bolos”, diz Kate.
Eu bem que saberia aplicar o dinheiro. Mas, na verdade, é como se nada me tivessem custado, salvo o trabalho de assá-los. Posso dizer-lhe que ninguém está imune a erros, mas nem todo mundo pode escapar sem prejuízos; é o que pretendo dizer-lhe.
Alguém vem pelo corredor. É Darl. Não olha para dentro ao passar pela porta. Eula observa-o enquanto ele anda e desaparece novamente na direção dos fundos. Ela levanta a mão e toca, de leve, nas contas do colar, e depois no cabelo. Quando me descobre a observá-la, seus olhos perdem o brilho.

Darl

Pai e Vernon estão sentados no alpendre dos fundos. Pai, inclinando a tampa da tabaqueira no lábio inferior, que ele estica com o polegar e o indicador, deixa cair tabaco. Olham em volta quando atravesso o alpendre, mergulho a cabaça no balde e bebo.
Onde está Jewel?”, pergunta Pai. Quando eu era menino, aprendi que a água fica mais saborosa quando recolhida, durante algum tempo, numa tina de cedro. Fresca, com um leve gosto semelhante ao cálido vento de julho tirando aroma das folhas de cedro. Tem de ficar guardada pelo menos seis horas e ser bebida em cabaça. Nunca se deve beber água em vasilhas metálicas.
E, à noite, é ainda melhor. Eu costumava deitar-me na esteira, no corredor, esperando ouvir que todos dormiam para levantar-me e voltar à tina. Estaria escura, a superfície quieta da água, brilhando qual redondo orifício no nada, e nela, antes de agitá-la com a cabaça, eu veria, talvez, uma estrela ou duas, e talvez, na cabaça, uma estrela ou duas antes de beber. Depois eu cresci, fiquei mais velho. Então, eu esperava até que eles todos fossem dormir, e deitava-me com a fralda da camisa levantada, ouvindo-os dormir, sentindo meu corpo sem tocar-me, sentindo o frio silêncio soprar sobre minhas partes e pensando se Cash estaria, lá embaixo, na escuridão, fazendo o mesmo, ou se ele já o faria há dois anos, antes que eu tivesse querido fazer ou pudesse fazer.
Os pés de Pai estão em péssimo estado, os dedos engelhados e torcidos e intumescidos, sem sinal de unha nos dois dedos menores, de tanto trabalhar duro, na umidade, com sapatos feitos em casa, quando era menino. Ao lado de sua cadeira estão os sapatões grosseiros. Dão a impressão de terem sido talhados, com um machado cheio de dentes, em lingote de ferro. Vernon acaba de chegar da cidade. Nunca o vi ir à cidade de poncho. Por causa de sua mulher, dizem. Ela ensinava, há tempos, na escola.
Atiro ao chão o resto da égua e enxugo a boca na manga. Vai chover antes do amanhecer. Talvez antes de escurecer. “Lá embaixo, na cavalariça”, digo. “Atrelando o cavalo.” Lá embaixo, divertindo-se com o cavalo. Passará pela baia e entrará no pasto. O cavalo não estará à vista: está mais em cima, gozando a fresca entre os pinheiros. Jewel assovia, um único e penetrante assovio. O cavalo relincha, então Jewel o vê brilhando, por um breve instante, entre as sombras azuis. Jewel assovia novamente; o cavalo aproxima-se, descendo a encosta, com as pernas rígidas, as orelhas erguidas e inquietas, rolando os olhos de grandes órbitas, e para a uns vinte passos, de lado, observando Jewel por sobre a crina, em atitude travessa e alerta.
Venha cá, senhor”, diz Jewel. O cavalo adianta-se. A pele move-se, estirada e tensa, percorrida por línguas retorcidas semelhantes a chamas. Agitando crina e cauda e revirando os olhos, o cavalo dá outra curta carreira corcoveante e para outra vez, de patas firmes, observando Jewel. Jewel caminha rapidamente para ele, com as mãos nos quadris. A exceção das pernas de Jewel, eles parecem duas figuras esculpidas ao sol para um grupo selvagem.
Quando Jewel está prestes a tocá-lo, o cavalo ergue-se sobre as ancas e cai com as patas dianteiras sobre Jewel. Agora Jewel está enclausurado em cintilante labirinto de cascos que imprimem à cena uma ilusão de asas; entre eles, debaixo do peito levantado do cavalo. Jewel escorrega com a instantânea flexibilidade de uma cobra. Por um instante, antes que o solavanco lhe chegue aos braços, ele vê seu corpo inteiro no ar, horizontal, mexendo-se como um chicote, até que encontra o focinho do cavalo e toca novamente a terra. Ficam, então, eretos, imóveis, aterradores, o cavalo sobre as patas traseiras, firmes e vibrantes, mas de cabeça baixa; Jewel, com os calcanhares fincados no chão, abafa o resfolegar do cavalo com uma mão e, com a outra, acaricia-lhe o pescoço, em inúmeros golpes de afetividade, enquanto pragueja contra o animal com uma ferocidade obscena.
Permanecem assim, nesse hiato rígido e terrível, o cavalo tremendo e fungando. Então, Jewel, de um pulo, cavalga-o. Corre para cima, em espantoso redemoinho, qual golpe de chicote, o corpo grudado ao cavalo e recortado no ar. Durante outro instante, o cavalo fica parado de cabeça baixa, antes de lançar-se em desabalada carreira. Descem a colina numa série de saltos corcoveantes, Jewel no lombo, qual sanguessuga, e chegam à cerca onde o cavalo para, de inopino, na trepidação dos cascos.
Bem”, diz Jewel, “agora fique quieto, se já está satisfeito.” Dentro da cavalariça, Jewel escorrega para o chão antes que o cavalo pare. O cavalo entra no Estábulo, seguido por Jewel. Sem olhar para trás, o cavalo o escoiceia, e a pata ecoa, na parede, qual tiro de pistola. Jewel dá-lhe um pontapé no ventre; o cavalo arqueia o pescoço e arreganha os beiços, descobrindo os dentes; Jewel atinge-o no focinho, com um murro, e, escapando para o depósito de feno, nele sobe. Pegando um monte de feno, baixa a cabeça e espia, através dos tabiques, em direção à porta. O caminho está deserto; dali, não pode ouvir sequer a serra de Cash. Ergue-se e, às braçadas, empilha feno na manjedoura.
Coma”, diz. “Encha a maldita pança enquanto puder, seu comilão estúpido, meu querido filho da puta.”

Jewel

Por isso fica aí fora, bem embaixo da janela, serrando e pregando o maldito caixão. Exatamente onde ela pode vê-lo. Onde todo o ar que ela aspira está cheio de suas marteladas e dos gemidos da serra, onde ela pode vê-lo dizendo “Veja. Veja que caixão bom estou fazendo para você.” Eu lhe disse para trabalhar em outro sítio. E lhe disse mesmo: “Meu Deus, você quer vê-la ai dentro?” igual ao tempo em que ele era pequeno e ela disse que, se tivesse adubo, tentaria cultivar algumas flores, e ele apanhou a cesta de pão e trouxe-a, da estrebaria, cheia de estrume.
E agora todos os outros lá estão sentados, como pessoas estúpidas. Esperando, abanando-se. Pois eu já lhe disse: “Será que você não para de pregar e de serrar até que alguém possa dormir?” E as mãos dela, pousadas no cobertor como raízes desenterradas, que a gente se esforça por lavar e nunca consegue limpar direito. Posso ver o leque e o braço de Dewey Deli: Eu disse: “Era bom que ela ficasse em paz.” Serrando e pregando sempre, e agitando o ar, tão depressa, contra seu rosto, que uma pessoa cansada não consegue respirar direito, e o diabo daquela enxó dizendo: “Falta pouco. Falta pouco. Falta pouco.” Até que todo mundo que passa pela estrada tenha de parar e ver o caixão e dizer: “Que excelente carpinteiro.” Se dependesse de mim, quando Cash despencou daquela igreja, e se dependesse de mim quando Pai caiu doente, por causa da carga de madeira que lhe desabou em cima, nenhum filho da mãe dessas redondezas viria olhar para ela, porque, se existe Deus, então para que diabo Ele existe? Ficaríamos sozinhos, eu e ela, no alto de uma colina, e eu rolaria pedras, pela colina, contra essas mesmas caras, e pegaria as caras, dentes e o resto e atiraria também pela colina, Deus me perdoe, até que ela estivesse tranquila e a maldita enxó parasse de dizer: “Falta pouco, falta pouco”, e nós ficássemos tranquilos. […]

William Faulkner, in Enquanto Agonizo

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