segunda-feira, 18 de julho de 2022

De como Licosa perdeu uma pata e o mais que sucedeu

... e eu perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões, se Buffon tivesse nascido gavião...
Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Quando o sol desaparece e a luz prolonga um dia vermelho apenas flamejante nos troncos do céu, Licosa deixa gravemente o solar e faz ato de presença aos olhos dos outros seres circunvizinhos.
Seus sete centímetros avantajam-se na elevação das oito patas desiguais terminada a sério pelas quelíceras frementes. Negra, com o listrão dourado no cefalotórax, ostenta no abdome fusco o desenho heráldico de um lírio fechado, lírio negro, como que pintado, esquematicamente, por um Hokusaï. Vem andando com impulsos irregulares para que todos a vejam bem de qualquer ângulo.
Quando um dia tivermos a visão em profundidade, o “paideuma” de Licosa, com as entrerrelações receptivas e irradiantes de sua pessoa e a aurora orientadora de sua mentalidade, modo de conceber, decidir e realizar, veremos que não haverá na superfície da terra coisa organizada e viva que tenha tido uma tão deslumbrante certeza dos seus valores individuais. Nenhum proprietário de povos, guia-rei de multidões, sacerdote-chefe de fanáticos, oficial de gabinete de ministro de Estado, e outras sideralizações da glória humana, alcançaram a plenitude serena de uma convicção talqualmente Licosa, Lycosa raptoria, Walckenser, com seus sete centímetros eminentes como o metro e sessenta de Napoleão Bonaparte. Este aparecimento da aranha ilustre pressupõe uma irradiação constante de infrassonoridade proclamadora: – Eu sou Licosa!... Eu sou Licosa!... Só nos resta o movimento incontido da prosternação: – Licosa vai passar! Licosa passou! Ó profundeza!
Boileau mandou que os ventos se calassem porque ia falar de Luís XIV. Mando eu que silenciem os três. Boileau, ventos e Luís XIV. Quem era, francamente, o Rei sol? Filho de um ramo colateral dos Valois, Bourbons pobres de glórias velhas. Licosa já existia nos terrenos do Eoceno e Mioceno do Terciário. Milhões de anos antes de qualquer Luís XIV. Se antiguidade é posto no fraseado genealógico, Licosa é legitimamente anterior a todos os almanaques de Gota. O altitudo!
Acresce que Licosa representa uma atualização contemporânea de ação divina de Minerva, deusa da Sabedoria por ter ficado solteira. Aracne, filha de um tintureiro de púrpura em Colofon, era tão famosa na arte de tecer tapeçarias que desafiou Minerva para uma competição. A deusa, em vez de aceitar e derrotar a mortal atrevida, irou-se e despedaçou a obra da moça, quadro em que estavam fixados os amores dos deuses. Aracne suicidou-se. Minerva, num castigo que era consagração, transformou-a na primeira aranha que houve no mundo.
Licosa vem, modestamente, desta fonte. É verdade que, esquecida da avó Aracne de Colofon, não tece teia na plenitude do vocábulo e sim sacos confortáveis para conduzir gotas de esperma. A teia supõe armadilha imóvel para prender as incautas ou ousadas. Licosa prefere buscá-las, combatendo frente a frente, arriscando-se às represálias funestas.
É verdade também que Licosa possui na extremidade das quelíceras os seus condutos inoculadores de veneno paralisador ou mortal. A caça é atordoada, bondosamente aturdida, para não compreender sua súbita promoção a comestível de Licosa, castigada ancestralmente por uma filha de Júpiter, acastelador das nuvens.
Para as aranhas robustas, armadas de peçonha, sabendo pelejar, a tarefa de rendeiras não é motivo de orgulho no cômputo das exibições profissionais. Onde Licosa fixar o dente, a cicatriz é indelével. Os dois ferrões perfurados são fontes inesgotáveis do curare animal com que abate sua caça habitual.
Lembro ainda um elemento notável. Uma sua tia-avó do século XVII, residente em Nápoles, determinou ciclo de literatura, medicina e coreografia. Dava uma picada, e o mordido, para combater o estado letárgico que o veneno produziria, punha-se a dançar. Tantas foram as dentadas, que a dança compensadora e sublimadora no plano terapêutico tornou-se quase nacional, num agitado seis por oito bamboleado ao som do surdo tambor basco. Era a tarantela a inspiradora e dava-lhe nome: Lycosa tarentula. A desgraça foi quando evidenciaram que o dente desta licosa bailarina dava apenas intoxicação leve e leve edema. O tarentulismo prestigioso passou a ser uma banal coreia histérica. Veio daí um dos piores fermentos de mau humor para as licosas sul-americanas. Ciumentas da heráldica dos avós europeus.
Pensara eu em sistematizar uma doutrina sobre a origem das danças como presenças simbólicas de totens animais. A valsa vinha das libélulas, o tango dos escorpiões, o samba dos tangarás, o frevo das centopeias, a quadrilha das saúvas e o bolero dos golfinhos. A desmoralização da anciã Licosa tarântula desarrumou-me a mística pessoal pela invenção.
Licosa tem mais outra glória, baseada nas estatísticas. É a aranha que morde o maior número de criaturas humanas no território nacional. Ganha, folgada, de todas as demais espécies. É, decorrentemente, a aranha mais social, pois centenas e centenas de pessoas entram em contato com ela, casual, intencional, lírica ou odientamente. Licosa deixa sua lembrança nas mãos e pernas de todos os convivas, obrigando a fabricação de um sérum dedicado exclusivamente à anulação de sua atividade desportiva. Nunca Licosa pensou, mordendo o rei da Criação, em nivelá-lo na classe de suas predileções gustativas. Juridicamente age em legítima defesa. Foi sempre inicialmente molestada ou perturbada no livre gozo dos seus direitos democráticos de ir e vir. Os feridos obstinada e cavilosamente ocultam este pormenor, elucidador decisivo para a boa sentença processual. Estudam, presentemente, uma campanha científica para a devastação biológica na descendência licosiana. Tal é a justiça dos homens mordidos!
Titius é um orgulhoso solitário. Licosa é a conviva desdenhosa, suspicaz, superior. Despreza e procura a sociedade. Fica, minutos e minutos, parada, batendo as mandíbulas, esperando o invisível. Nada justifica a posição imóvel da aranha em hora exata de movimento. Ao deslocar-se não toma direção esperada pela continuação fixa da atenção. Vai para outro horizonte, desnorteando o observador.
Não pode enfrentar camundongo ou mesmo aves pequenas como as caranguejeiras possantes e peludas. Contenta-se com baratas, besouros, grilos, minhocas em várias dimensões. Faz aproximação vagarosa e em linhas oblíquas e mudadas constantemente, de través. Salta, já perto, sobre a vítima, agarrando-a com as quelíceras por onde injeta o veneno adormecedor ou fatal. Ergue-a e nunca come no local do encontro. Tenho-a visto devorar e também sugar demoradamente as baratas amarelo-queimadas, arrancando-lhes as asas de pergaminho seco. Lagartas são saboreadas totalmente, sorvendo aquele corpo de geleia branca. As mariposas crepusculares são presas naturais, apanhadas de súbito, pelo dorso, numa imprevista investida feliz. A mariposa fica tempos pousada, num abanar preguiçoso das asas amplas e vagarosas. Parece estar contemplando a paisagem noturna sem outro encargo. Licosa faz curvas alongadas, avanços hábeis, paradas justas com um ar de desinteresse total pelas coisas que podem ser mastigadas. Imperceptivelmente, as patas adiantam-se milímetros. Um recuo e reta paralela à posição anterior. Vinda macia numa perpendicular apressada. Um “alto”, obedecendo a sinal misterioso. Avizinha-se cautelosa. Não vemos movimento em suas patas. Dá alguns passos vagos.
Mais dois. Arranca para o salto vitorioso, agarrando a mariposa, verrumando-lhe o dorso reluzente com os dois ferrões inoculadores. As mandíbulas são mãos carinhosas para o embalo da presa que fica na linha da boca e a refeição começa, numa degustação delicada de apreciador consumado.
Asas e cabeça são quase sempre rejeitadas, mas nada restará dentro desta quando Licosa a deixar, inútil, no barro do quintal.
Não faz reserva como certas aranhas sedentárias que possuem farnel guardado em bolsas de fios finos e resistentes, moscas, besourinhos, lagartas. O trabalho é noturno, iniciado ao escurecer e cada 24 horas. O ventre de Licosa não tem a vastidão dos reservatórios de certas caranguejeiras que podem passar dois e mais dias digerindo presas de vulto, pequenas cobras, pintos novos, ratazanas etc. Sua dimensão responde pelo consumo de um dia justo. Licosa deverá caçar cada anoitecer.
Vive só, caça e luta sozinha. É índice de antiguidade porque o gregarismo não é sinal de velhice mas uma compreensão social de força pelo número. Todos os antigos foram solitários. Não creio que dois homens pré-históricos ocupassem a mesma caverna. Estariam próximos para o auxílio mútuo em face de perigo comum, interessando a todos. A mulher não duplica o homem porque é a mesma pessoa no plano da ação social. Se é possível falar-se em social junto dos dentes do homem de Cro-Magnon...
O sentido do útil explica a curiosidade “desinteressada” da ciência humana. Foi possível a desintegração atômica mas ninguém explica senão como hipóteses pessoais, na variedade das conclusões observadas nos terrariuns, porque Licosa, morando sozinha, vai procurar, ansiosa e determinadamente, outra aranha e a encontrará com toda a certeza.
Como pode ele saber o paradeiro da fêmea e quais os sinais recebidos para a compreensão desta jornada irrecusável, não se sabe claramente. Nem por que uma determinada fase do ano é a época da maturidade sexual, como da frutificação vegetal, complexa e rítmica. Examinando-se o animal nesta época, não encontramos modificação específica nem secreção denunciadora. Mas deve, incontestavelmente, haver um aroma especial, típico, característico de cada espécie e que será captado pelos machos, guiando-os como por um caminho invisível mas sensível e certo ao passo, galope, coleio e voo masculinos.
O olfato para Licosa como a visão para Titius são assuntos de discussão no plano das intuições. Eles não querem dizer o segredo, e há tantos anos passados, o Professor Georges Dumas ensinava que certos mistérios só seriam desvendados quando os animais fizessem confidências...
Também não se sabe quais os órgãos receptores destes sinais de excitação. Correspondentemente haverá emanação masculina para desassossegar a fêmea, sacudindo-lhe o metabolismo basal...
Pode tudo isto reduzir-se a uma simples irradiação sonora, uma espécie de canto nupcial, atravessando o espaço e alertando a vítima que ignorava o amor dos sentidos. E este som ir e voltar, impressionando ambos os elementos interessados, na mesma técnica do radar. Talvez na volta seja reforçado por uma partícula vibrátil que, em levíssima modificação, denuncie o entendimento de uma parte à mensagem emitida. Como e por onde nasce e se propaga não sei e ninguém quer ensinar-me a saber.
Esta sonoridade de apelo sentimental, preliminar indispensável para o encontro dos sexos que vivem separados, como Licosa na sua pirâmide de tijolos quebrados num fundo de muro triste, pode não ser audível à percepção humana sem o auxílio mecânico de receptores sensibilíssimos. Talvez se trate de irradiação infrassonora, com número de vibrações abaixo da cota que permite a assimilação ao ouvido do homem. Será como o banal apito para cachorro, que soprado ninguém ouve, mas o cão, bem distante, entende e obedece imediatamente.
Negar-se o odor ou o som porque passam acima ou abaixo de nosso olfato e audição humanos não é opinião. É orgulho do Homo sapiens decidindo que somente existe o que ele toma conhecimento com os sentidos ou entende dentro do seu complexo cultural.
Licosa recebeu a mensagem e vibra nos preparativos das núpcias raras. Seus orifícios segregam os fios de uma teia para o mais alto e nobre fim. Dispôs os fios como uma bolsa hemiesferoidal. Pô-la no chão e sobre ela ejaculou as gotas de esperma da fecundação. Apanhou a bolinha e meteu-a, num movimento de aspiração, na extremidade de sua última articulação, nos ocos palpos inquietos. Repetiu a operação como quem carrega uma arma de repetição. Duas, três vezes. Está materialmente armada para o encontro. Nenhuma ligação entre os órgãos espermáticos e o veículo da introdução fecundante.
Quando a noite escureceu mais forte, partiu. Atravessou o quintal, orçou o caixote que Dondon ocupara, beirou o resto da calçada exterior onde desce o túnel que leva à casa de Gô, varou rente à brecha que conduz ao mundo e adiante, perto do grupo de arbustos enfezados e sempre murchos na terra arenosa e coberta de pedras miúdas e soltas, avistou a noiva. Era bem maior que ele, airosa no erguer-se sobre os quatro pares de patas elegantes e desiguais. Licosa parou numa distância respeitosa por desconhecer inteiramente os sentimentos femininos a seu respeito. As mandíbulas da prometida tinham um movimento contínuo que significaria impaciência de amor ou de jantar. Licosa deteve-se e, fiel às praxes de sua raça ilustre, satisfez o protocolo milenar. Saudou-a com as quelíceras vibrantes, rodando o corpo na graça de um pequenino tanque de guerra. As duas patas-mandíbulas agitavam-se como braços festivos. Intumescia-os não o veneno mas a carga amorosa dos espermatozoides embebidos na tela que fiara na intenção propagadora.
Seguiu o bailado vagaroso. As patas copuladoras se agitavam no ar e tinham engrossado e alargado, contendo o material sagrado da espécie. Foi se aproximando, meneando sem parar as patas, sentindo-se conhecido e desejado talvez pela comunicabilidade odorante do sêmen pressentido pela aranha fêmea. Pôde então, preciso e rápido, introduzir os dois tubos no orifício vulvar, descarregando-os, mercê da complacente posição tomada pela desposada gentil.
Leve, finda a missão, Licosa cometeu o erro de um retardamento de segundos ao alcance da quelícera feminina. Rápida, a fêmea baixou a mandíbula cortante e decepou, de um golpe reto, uma pata do marido de dez minutos anteriores. Licosa fugiu a sete patas velozes. A dama, fecundada, não o perseguiu. Levantou o membro mutilado que cortara e levou-o, meigamente, à boca, comendo-o com vagar e sabor.
Tivesse o enamorado Licosa demorado mais e o devorado seria ele e não a pata faltante. Retomando sua normalidade temperamental, a noiva reassume a ferocidade legítima. Para ela o companheiro cumpriria a missão e não mais importaria que vivesse. Os filhos o substituiriam com abundância e proveito. Licosa, fugindo, discordara da sensata argumentação.
Deduzo que poderá recarregar sua arma sexual e apontá-la para o mesmo ou outro alvo. A conquista não é fácil e inexplicavelmente não encontrara os rivais numerosos que jamais disputam, na hora da escolha feminina, o doce e arriscado posto. Muitos são integrados totalmente na fisiologia interna da esposa, dando substância aos futuros descendentes e reforçando os hormônios. A percentagem dos fugitivos é pequena mas prova que a regra se excepciona num membro mais ágil e mais pronto para a evasão salvadora. O processo é idêntico com as enormes e majestosas caranguejeiras, senhoras do mesmo temperamento sedutor e ávido de assimilar o esposo à sua economia interior.
Falando com precisão, Licosa não sentia muita saudade da pata e arranjar-se-ia perfeitamente sem ela. Era uma das dianteiras, base de sustentação e fixadora nos saltos, elemento precípuo no equilíbrio. Pior é se a noiva lhe tivesse arrancado uma quelícera, reduzindo-lhe a faculdade preensora e inoculadora pela metade. E, de mais a mais, a mandíbula leva à boca o alimento. Já havia ocorrido esta catástrofe a muitas aranhas românticas que sonhavam idílio posterior aos tiros genesíacos.
Por que não se inflama e corrompe o coto da pata de Licosa, amputado sem atenções assépticas e entregue ao contato dos germes patogênicos como provocando-lhes o assanhamento maléfico? Que estranha e poderosa defesa possuem os aracnídeos contra o adversário que o homem enfrenta com a complicada aparelhagem imunizadora?...
Voltou a aranha à casa de tijolos no quintal, lépida e fagueira. O caminho era o mesmo e a fome voltara, evaporada a ânsia perturbadora que a dominava. Dispensou-se de lutar com uma louva-a-deus que lhe fornecia pasto minguado depois de uma batalha. Não valia o esforço. Mas as duas baratas que confabulavam no degrau não podiam escapar e não escaparam. Nunca lhe parecera tão confortável o desvão penumbroso em que se meteu para não lutar mais, sinônimo de descanso, de quase sono.
A esposa distante não mais será vista. Missão cumprida, objetivo afastado. Deporá os ovos num pequenino saco de tela branca e delicada, de fios de uma espessura que nenhuma mão de mulher conseguirá fiar. Nascidas andantes e moventes, as aranhinhas serão conduzidas no amável dorso maternal como faz a mamãe-escorpião – a senhora Titius – num cuidado minucioso para que nada lhes falte. Evitará duelos e caçará peças brandas e saborosas. É de enternecer vê-la deter-se e espalhar a filharada que agita as patas trôpegas, derramada em giros de experiência andeja e curiosa.
As aranhinhas farão aprendizagem com aplicação imediata e com três semanas estão iniciando manhas para capturas de vítimas proporcionais às suas forças e manejos. As glândulas secretoras da peçonha funcionarão ao aproximar-se o primeiro aniversário natalício.
Antes deste tempo, bem antes, quatro meses de criancice, as aranhinhas estão com maioridade relativa aos direitos de passeio e caça. Um semestre já as emancipa da tutela doméstica e há o dever do domicílio próprio. Così va il mondo...
Por este meio há o duro pagamento de sacrifício às fomes de outras aranhas, lagartos, aves que encontraram sabores transcendentes na breve carne das aranhas novas. E a própria Licosa não deverá gabar-se de haver respeitado a vida dos seus filhos, desconhecidos e apetitosos. Talvez dois terços da produção tenham este guloso e feroz mercado consumidor. O derradeiro terço ou pouco mais garantirá largamente a perpetuidade galante das licosas brasileiras. Há quem diga que a própria mamãe-aranha não desdenha, por desfastio, deleitar-se com a mastigação de alguns filhos. Pode, entretanto, ser uma onda caluniosa de inveja pela sua constante solicitude durante os meses na formação pedagógica da prole aranhal.
Há famas, provadas ou não, de que certos animais devoram os filhos não por meio imperativo acidental e trágico, como ocorreu ao conde Ugolino dei Gherardeschi, mas uma obediência a mandado irresistível e obscuro. Excluem-se motivos da necessidade talqualmente sucedeu ao mal-aventurado guelfo de Pisa. Lacraus, aranhas, cobras consomem parte da prole não por falta de alimentos nem por acesso de loucura, como houve em Hércules e Orlando, em tempos idos, mas por uma autolimitação ao excesso de vidas prejudiciais à própria espécie e decorrentemente aos meios de alimentação existentes. E fome de proteínas. Também os jovens filhos serão candidatos in fieri às fêmeas ou propagadoras abusivas na vida dos seres da mesma família, conforme o sexo, ambos em breve atividade transbordante. Entre o escuro mecanismo regulador do equilíbrio talvez exista, mesmo em porção mínima, esta colaboração materna na diminuição da descendência. Na possível seleção sexual o desaparecimento deste lote será um contingente apreciável porque a escolha pertence, no duplo ponto de vista biológico e alimentar, à própria progenitora, respeitável pela intenção.
Não nos parece absurdo criminoso quando a mais clara e linda civilização do mundo possuía em seus fundamentos religiosos Urano, que prendia os filhos vivos debaixo da terra, Saturno que os castrou e devorava os descendentes e Zeus, que expulsou o pai para o exílio. Eram apenas avô, pai e neto, numa sequência de evitações de problemas futuros. Por isso os romanos conservaram no idioma a proximidade moral entre mirabilia, maravilha, e monstrum, monstro. Equivalem-se perfeitamente.
Tudo quanto sabemos no assunto é opinião de cada professor que examina o motivo. Pelo lado de dentro o mistério continua. Se a mamãe-aranha consome os filhos não será, visivelmente, por uma depravação do paladar como não seria a de Saturno, Cronos, engolindo pedras vestidas de linho como sendo Júpiter. Há uma razão permanente neste uso discreto da superioridade física e da voracidade maternal, sacrifício que talvez se reduza em benefício da espécie, indispensável ao mundo...
Não podemos apreciar esta decisão porque pensamos individualmente e somos personalidade concreta e sensível, articulada com poder e firmeza aos nossos interesses, aos interesses do grupo que governamos, a família. Já não existe na face da terra o sentimento de família que vivia mais ou menos poderoso até o século XIII ou XIV, o orgulho do nome, do brasão, da pureza tradicional, orgulho muito mais pelos antepassados do que pelos descendentes que apenas eram os portadores das dignidades conquistadas outrora. O essencial era não deslustrar, não ultrajar, não enegrecer os arminhos do pretérito, o renome avoengo. Um nome era espiritualmente um potencial irradiador de vitaminas psicológicas, um estimulador prodigioso de heroísmo, um compensador divino nos desequilíbrios sociais. Mesmo pobre, esquecido, afastado da corte, da augusta companhia do rei, o fidalgo estava sempre ambientado pela recordação, sentimento físico da presença dos seus avós magníficos. Este complexo foi sendo substituído, no ciclo das navegações que, bem mais decisivas que as Cruzadas, valorizavam o fator econômico imediato, a importação transformada em renda pronta, e desaparecendo porque o fermento das finanças amoedadas ia mudando a imagem do poder imóvel dos castelos. Antes não seria possível compreender o júbilo delirante de quem descendesse de Carlos Magno com sua barba florida. Era um elemento econômico porque valia aquisição de utilidades.
Numa aranha o sentimento é vago, escuro e poderoso, mas inteiramente preso, unicamente voltado e funcional, para a espécie de que ela é uma continuação. Naturalmente Licosa não leu genealogias nem enxergou armoriais mas sente a urgência de realizar determinados atos porque estes são formas indispensáveis para sua existência coletiva, isto é, a vida dos seres de sua família no tempo. Talvez os príncipes da dinastia dos Mings já não tinham este sentimento. Nem a dos Júlios, em Roma. Licosa o tem, na plenitude do vocábulo. Peço perdão de não fazer-me entender.
O invencível impulso para o duelo mortal sempre que se encontram as aranhas é outro índice desta misteriosa eliminação do possível excesso. Lutam sem provocação e mesmo sem os excitantes motivos da fêmea, da alimentação ou refúgio. Duelam sem que exista um processo anterior de irritação, medo, fuga. Avistar outra aranha é o motivo essencial e inadiável para um debate de morte. E nem sempre há, após o morticínio, a refeição vitoriosa do corpo vencido. E este ódio vive na mesma espécie. Não é obrigatório que duas cobras se batam pelo mero encontro. Duas aranhas não podem dispensar a medição de forças até o sacrifício. Por quê? Esperemos um dia a confidência de Licosa, como sugeria o Professor Georges Dumas.
Foi justamente o que sucedeu à Licosa num anoitecer de dezembro, luar cedo, com uma luminosidade úmida, ensopando de leite impalpável o quintal sossegado. Licosa devorara um cachorro-d’água, paquinha, mastigando-lhe dificilmente as patinhas resistentes com que abre os túneis de uma polegada. Na curva do tanque uma outra aranha terminara seu diálogo com uma barata escurona e nédia. Marcharam as duas com o mesmo ímpeto de dois carros de guerra, erguendo as patas, suspendendo o corpo para assombrar o adversário com aquela imprevista duplicação do volume normal. Mas não houve imediatamente o esbarro iniciador e sim uma série de rodeios, estudos, em semicírculos atentos como dois campeões de luta livre. De súbito deram-se as mandíbulas numa dentada comum e furiosa, torcendo-se mutuamente. Largaram-se, recuaram e volveram à carga, numa precipitação de raiva incontida, empurrando-se como num choque de automóveis num campo de experiências. Ora uma e ora outra cedia um pouco e era arrastada, resistindo, firmada nos pares das patas posteriores e voltando à ofensiva com denodo entusiástico. Nunca se saberá por que se batiam com tamanha ferocidade. Um desses ajustes-de-contas solitários e sem história pregressa. Nem mesmo Fu, o sapo do tanque que tem vocacional e gratuitamente a mania de ser espião, pôde vê-lo, na lonjura prudente em que se manteve, porque Licosa ficou de flanco e a inimiga cortou-lhe, como numa sabrada, o abdome rechonchudo e luzente. Assim que Licosa baixou as sete patas, dobrando-as numa confissão de derrota notória, a outra aranha abandonou a liça e desapareceu sem o menor aproveitamento e humilhação maior à vencida de morte.
Licosa ergue-se ainda num esforço lento que seria heroico se constasse de qualquer história dos feitos de sua raça, e veio cambaleando, tonta, caindo e reerguendo-se até perto da pirâmide de tijolos onde ficou, valente, parada mas erecta, como se esperasse outro duelo ou a visita da morte, a morte que deve possuir materializações típicas no mundo das aranhas pelejadeiras e teimosas. Aí ficou. Morreu, mas sua forma defendia-a do avanço dos adversários miúdos e tripudiantes se a soubessem morta. Até que amanhecesse nenhum animal dela se aproximou. Aquele vulto negro, imóvel nas patas firmes, espalhava respeito no fundo do quintal. Assim o cadáver de Antar, na boca do desfiladeiro, conservou à distância os Catâmidas amedrontados.
Pela manhã as formigas levaram-na…

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

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