...
e eu perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões, se
Buffon tivesse nascido gavião...
Machado
de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Quando
o sol desaparece e a luz prolonga um dia vermelho apenas flamejante
nos troncos do céu, Licosa deixa gravemente o solar e faz ato de
presença aos olhos dos outros seres circunvizinhos.
Seus
sete centímetros avantajam-se na elevação das oito patas desiguais
terminada a sério pelas quelíceras frementes. Negra, com o listrão
dourado no cefalotórax, ostenta no abdome fusco o desenho heráldico
de um lírio fechado, lírio negro, como que pintado,
esquematicamente, por um Hokusaï. Vem andando com impulsos
irregulares para que todos a vejam bem de qualquer ângulo.
Quando
um dia tivermos a visão em profundidade, o “paideuma” de Licosa,
com as entrerrelações receptivas e irradiantes de sua pessoa e a
aurora orientadora de sua mentalidade, modo de conceber, decidir e
realizar, veremos que não haverá na superfície da terra coisa
organizada e viva que tenha tido uma tão deslumbrante certeza dos
seus valores individuais. Nenhum proprietário de povos, guia-rei de
multidões, sacerdote-chefe de fanáticos, oficial de gabinete de
ministro de Estado, e outras sideralizações da glória humana,
alcançaram a plenitude serena de uma convicção talqualmente
Licosa, Lycosa raptoria, Walckenser, com seus sete centímetros
eminentes como o metro e sessenta de Napoleão Bonaparte. Este
aparecimento da aranha ilustre pressupõe uma irradiação constante
de infrassonoridade proclamadora: – Eu sou Licosa!... Eu sou
Licosa!... Só nos resta o movimento incontido da prosternação: –
Licosa vai passar! Licosa passou! Ó profundeza!
Boileau
mandou que os ventos se calassem porque ia falar de Luís XIV. Mando
eu que silenciem os três. Boileau, ventos e Luís XIV. Quem era,
francamente, o Rei sol? Filho de um ramo colateral dos Valois,
Bourbons pobres de glórias velhas. Licosa já existia nos terrenos
do Eoceno e Mioceno do Terciário. Milhões de anos antes de qualquer
Luís XIV. Se antiguidade é posto no fraseado genealógico, Licosa é
legitimamente anterior a todos os almanaques de Gota. O altitudo!
Acresce
que Licosa representa uma atualização contemporânea de ação
divina de Minerva, deusa da Sabedoria por ter ficado solteira.
Aracne, filha de um tintureiro de púrpura em Colofon, era tão
famosa na arte de tecer tapeçarias que desafiou Minerva para uma
competição. A deusa, em vez de aceitar e derrotar a mortal
atrevida, irou-se e despedaçou a obra da moça, quadro em que
estavam fixados os amores dos deuses. Aracne suicidou-se. Minerva,
num castigo que era consagração, transformou-a na primeira aranha
que houve no mundo.
Licosa
vem, modestamente, desta fonte. É verdade que, esquecida da avó
Aracne de Colofon, não tece teia na plenitude do vocábulo e sim
sacos confortáveis para conduzir gotas de esperma. A teia supõe
armadilha imóvel para prender as incautas ou ousadas. Licosa prefere
buscá-las, combatendo frente a frente, arriscando-se às represálias
funestas.
É
verdade também que Licosa possui na extremidade das quelíceras os
seus condutos inoculadores de veneno paralisador ou mortal. A caça é
atordoada, bondosamente aturdida, para não compreender sua súbita
promoção a comestível de Licosa, castigada ancestralmente por uma
filha de Júpiter, acastelador das nuvens.
Para
as aranhas robustas, armadas de peçonha, sabendo pelejar, a tarefa
de rendeiras não é motivo de orgulho no cômputo das exibições
profissionais. Onde Licosa fixar o dente, a cicatriz é indelével.
Os dois ferrões perfurados são fontes inesgotáveis do curare
animal com que abate sua caça habitual.
Lembro
ainda um elemento notável. Uma sua tia-avó do século XVII,
residente em Nápoles, determinou ciclo de literatura, medicina e
coreografia. Dava uma picada, e o mordido, para combater o estado
letárgico que o veneno produziria, punha-se a dançar. Tantas foram
as dentadas, que a dança compensadora e sublimadora no plano
terapêutico tornou-se quase nacional, num agitado seis por oito
bamboleado ao som do surdo tambor basco. Era a tarantela a
inspiradora e dava-lhe nome: Lycosa tarentula. A desgraça foi
quando evidenciaram que o dente desta licosa bailarina dava apenas
intoxicação leve e leve edema. O tarentulismo prestigioso passou a
ser uma banal coreia histérica. Veio daí um dos piores fermentos de
mau humor para as licosas sul-americanas. Ciumentas da heráldica dos
avós europeus.
Pensara
eu em sistematizar uma doutrina sobre a origem das danças como
presenças simbólicas de totens animais. A valsa vinha das
libélulas, o tango dos escorpiões, o samba dos tangarás, o frevo
das centopeias, a quadrilha das saúvas e o bolero dos golfinhos. A
desmoralização da anciã Licosa tarântula desarrumou-me a mística
pessoal pela invenção.
Licosa
tem mais outra glória, baseada nas estatísticas. É a aranha que
morde o maior número de criaturas humanas no território nacional.
Ganha, folgada, de todas as demais espécies. É, decorrentemente, a
aranha mais social, pois centenas e centenas de pessoas entram em
contato com ela, casual, intencional, lírica ou odientamente. Licosa
deixa sua lembrança nas mãos e pernas de todos os convivas,
obrigando a fabricação de um sérum dedicado exclusivamente à
anulação de sua atividade desportiva. Nunca Licosa pensou, mordendo
o rei da Criação, em nivelá-lo na classe de suas predileções
gustativas. Juridicamente age em legítima defesa. Foi sempre
inicialmente molestada ou perturbada no livre gozo dos seus direitos
democráticos de ir e vir. Os feridos obstinada e cavilosamente
ocultam este pormenor, elucidador decisivo para a boa sentença
processual. Estudam, presentemente, uma campanha científica para a
devastação biológica na descendência licosiana. Tal é a justiça
dos homens mordidos!
Titius
é um orgulhoso solitário. Licosa é a conviva desdenhosa, suspicaz,
superior. Despreza e procura a sociedade. Fica, minutos e minutos,
parada, batendo as mandíbulas, esperando o invisível. Nada
justifica a posição imóvel da aranha em hora exata de movimento.
Ao deslocar-se não toma direção esperada pela continuação fixa
da atenção. Vai para outro horizonte, desnorteando o observador.
Não
pode enfrentar camundongo ou mesmo aves pequenas como as
caranguejeiras possantes e peludas. Contenta-se com baratas,
besouros, grilos, minhocas em várias dimensões. Faz aproximação
vagarosa e em linhas oblíquas e mudadas constantemente, de través.
Salta, já perto, sobre a vítima, agarrando-a com as quelíceras por
onde injeta o veneno adormecedor ou fatal. Ergue-a e nunca come no
local do encontro. Tenho-a visto devorar e também sugar
demoradamente as baratas amarelo-queimadas, arrancando-lhes as asas
de pergaminho seco. Lagartas são saboreadas totalmente, sorvendo
aquele corpo de geleia branca. As mariposas crepusculares são presas
naturais, apanhadas de súbito, pelo dorso, numa imprevista investida
feliz. A mariposa fica tempos pousada, num abanar preguiçoso das
asas amplas e vagarosas. Parece estar contemplando a paisagem noturna
sem outro encargo. Licosa faz curvas alongadas, avanços hábeis,
paradas justas com um ar de desinteresse total pelas coisas que podem
ser mastigadas. Imperceptivelmente, as patas adiantam-se milímetros.
Um recuo e reta paralela à posição anterior. Vinda macia numa
perpendicular apressada. Um “alto”, obedecendo a sinal
misterioso. Avizinha-se cautelosa. Não vemos movimento em suas
patas. Dá alguns passos vagos.
Mais
dois. Arranca para o salto vitorioso, agarrando a mariposa,
verrumando-lhe o dorso reluzente com os dois ferrões inoculadores.
As mandíbulas são mãos carinhosas para o embalo da presa que fica
na linha da boca e a refeição começa, numa degustação delicada
de apreciador consumado.
Asas
e cabeça são quase sempre rejeitadas, mas nada restará dentro
desta quando Licosa a deixar, inútil, no barro do quintal.
Não
faz reserva como certas aranhas sedentárias que possuem farnel
guardado em bolsas de fios finos e resistentes, moscas, besourinhos,
lagartas. O trabalho é noturno, iniciado ao escurecer e cada 24
horas. O ventre de Licosa não tem a vastidão dos reservatórios de
certas caranguejeiras que podem passar dois e mais dias digerindo
presas de vulto, pequenas cobras, pintos novos, ratazanas etc. Sua
dimensão responde pelo consumo de um dia justo. Licosa deverá caçar
cada anoitecer.
Vive
só, caça e luta sozinha. É índice de antiguidade porque o
gregarismo não é sinal de velhice mas uma compreensão social de
força pelo número. Todos os antigos foram solitários. Não creio
que dois homens pré-históricos ocupassem a mesma caverna. Estariam
próximos para o auxílio mútuo em face de perigo comum,
interessando a todos. A mulher não duplica o homem porque é a mesma
pessoa no plano da ação social. Se é possível falar-se em social
junto dos dentes do homem de Cro-Magnon...
O
sentido do útil explica a curiosidade “desinteressada” da
ciência humana. Foi possível a desintegração atômica mas ninguém
explica senão como hipóteses pessoais, na variedade das conclusões
observadas nos terrariuns, porque Licosa, morando sozinha, vai
procurar, ansiosa e determinadamente, outra aranha e a encontrará
com toda a certeza.
Como
pode ele saber o paradeiro da fêmea e quais os sinais recebidos para
a compreensão desta jornada irrecusável, não se sabe claramente.
Nem por que uma determinada fase do ano é a época da maturidade
sexual, como da frutificação vegetal, complexa e rítmica.
Examinando-se o animal nesta época, não encontramos modificação
específica nem secreção denunciadora. Mas deve,
incontestavelmente, haver um aroma especial, típico, característico
de cada espécie e que será captado pelos machos, guiando-os como
por um caminho invisível mas sensível e certo ao passo, galope,
coleio e voo masculinos.
O
olfato para Licosa como a visão para Titius são assuntos de
discussão no plano das intuições. Eles não querem dizer o
segredo, e há tantos anos passados, o Professor Georges Dumas
ensinava que certos mistérios só seriam desvendados quando os
animais fizessem confidências...
Também
não se sabe quais os órgãos receptores destes sinais de excitação.
Correspondentemente haverá emanação masculina para desassossegar a
fêmea, sacudindo-lhe o metabolismo basal...
Pode
tudo isto reduzir-se a uma simples irradiação sonora, uma espécie
de canto nupcial, atravessando o espaço e alertando a vítima que
ignorava o amor dos sentidos. E este som ir e voltar, impressionando
ambos os elementos interessados, na mesma técnica do radar. Talvez
na volta seja reforçado por uma partícula vibrátil que, em
levíssima modificação, denuncie o entendimento de uma parte à
mensagem emitida. Como e por onde nasce e se propaga não sei e
ninguém quer ensinar-me a saber.
Esta
sonoridade de apelo sentimental, preliminar indispensável para o
encontro dos sexos que vivem separados, como Licosa na sua pirâmide
de tijolos quebrados num fundo de muro triste, pode não ser audível
à percepção humana sem o auxílio mecânico de receptores
sensibilíssimos. Talvez se trate de irradiação infrassonora, com
número de vibrações abaixo da cota que permite a assimilação ao
ouvido do homem. Será como o banal apito para cachorro, que soprado
ninguém ouve, mas o cão, bem distante, entende e obedece
imediatamente.
Negar-se
o odor ou o som porque passam acima ou abaixo de nosso olfato e
audição humanos não é opinião. É orgulho do Homo sapiens
decidindo que somente existe o que ele toma conhecimento com os
sentidos ou entende dentro do seu complexo cultural.
Licosa
recebeu a mensagem e vibra nos preparativos das núpcias raras. Seus
orifícios segregam os fios de uma teia para o mais alto e nobre fim.
Dispôs os fios como uma bolsa hemiesferoidal. Pô-la no chão e
sobre ela ejaculou as gotas de esperma da fecundação. Apanhou a
bolinha e meteu-a, num movimento de aspiração, na extremidade de
sua última articulação, nos ocos palpos inquietos. Repetiu a
operação como quem carrega uma arma de repetição. Duas, três
vezes. Está materialmente armada para o encontro. Nenhuma ligação
entre os órgãos espermáticos e o veículo da introdução
fecundante.
Quando
a noite escureceu mais forte, partiu. Atravessou o quintal, orçou o
caixote que Dondon ocupara, beirou o resto da calçada exterior onde
desce o túnel que leva à casa de Gô, varou rente à brecha que
conduz ao mundo e adiante, perto do grupo de arbustos enfezados e
sempre murchos na terra arenosa e coberta de pedras miúdas e soltas,
avistou a noiva. Era bem maior que ele, airosa no erguer-se sobre os
quatro pares de patas elegantes e desiguais. Licosa parou numa
distância respeitosa por desconhecer inteiramente os sentimentos
femininos a seu respeito. As mandíbulas da prometida tinham um
movimento contínuo que significaria impaciência de amor ou de
jantar. Licosa deteve-se e, fiel às praxes de sua raça ilustre,
satisfez o protocolo milenar. Saudou-a com as quelíceras vibrantes,
rodando o corpo na graça de um pequenino tanque de guerra. As duas
patas-mandíbulas agitavam-se como braços festivos. Intumescia-os
não o veneno mas a carga amorosa dos espermatozoides embebidos na
tela que fiara na intenção propagadora.
Seguiu
o bailado vagaroso. As patas copuladoras se agitavam no ar e tinham
engrossado e alargado, contendo o material sagrado da espécie. Foi
se aproximando, meneando sem parar as patas, sentindo-se conhecido e
desejado talvez pela comunicabilidade odorante do sêmen pressentido
pela aranha fêmea. Pôde então, preciso e rápido, introduzir os
dois tubos no orifício vulvar, descarregando-os, mercê da
complacente posição tomada pela desposada gentil.
Leve,
finda a missão, Licosa cometeu o erro de um retardamento de segundos
ao alcance da quelícera feminina. Rápida, a fêmea baixou a
mandíbula cortante e decepou, de um golpe reto, uma pata do marido
de dez minutos anteriores. Licosa fugiu a sete patas velozes. A dama,
fecundada, não o perseguiu. Levantou o membro mutilado que cortara e
levou-o, meigamente, à boca, comendo-o com vagar e sabor.
Tivesse
o enamorado Licosa demorado mais e o devorado seria ele e não a pata
faltante. Retomando sua normalidade temperamental, a noiva reassume a
ferocidade legítima. Para ela o companheiro cumpriria a missão e
não mais importaria que vivesse. Os filhos o substituiriam com
abundância e proveito. Licosa, fugindo, discordara da sensata
argumentação.
Deduzo
que poderá recarregar sua arma sexual e apontá-la para o mesmo ou
outro alvo. A conquista não é fácil e inexplicavelmente não
encontrara os rivais numerosos que jamais disputam, na hora da
escolha feminina, o doce e arriscado posto. Muitos são integrados
totalmente na fisiologia interna da esposa, dando substância aos
futuros descendentes e reforçando os hormônios. A percentagem dos
fugitivos é pequena mas prova que a regra se excepciona num membro
mais ágil e mais pronto para a evasão salvadora. O processo é
idêntico com as enormes e majestosas caranguejeiras, senhoras do
mesmo temperamento sedutor e ávido de assimilar o esposo à sua
economia interior.
Falando
com precisão, Licosa não sentia muita saudade da pata e
arranjar-se-ia perfeitamente sem ela. Era uma das dianteiras, base de
sustentação e fixadora nos saltos, elemento precípuo no
equilíbrio. Pior é se a noiva lhe tivesse arrancado uma quelícera,
reduzindo-lhe a faculdade preensora e inoculadora pela metade. E, de
mais a mais, a mandíbula leva à boca o alimento. Já havia ocorrido
esta catástrofe a muitas aranhas românticas que sonhavam idílio
posterior aos tiros genesíacos.
Por
que não se inflama e corrompe o coto da pata de Licosa, amputado sem
atenções assépticas e entregue ao contato dos germes patogênicos
como provocando-lhes o assanhamento maléfico? Que estranha e
poderosa defesa possuem os aracnídeos contra o adversário que o
homem enfrenta com a complicada aparelhagem imunizadora?...
Voltou
a aranha à casa de tijolos no quintal, lépida e fagueira. O caminho
era o mesmo e a fome voltara, evaporada a ânsia perturbadora que a
dominava. Dispensou-se de lutar com uma louva-a-deus que lhe fornecia
pasto minguado depois de uma batalha. Não valia o esforço. Mas as
duas baratas que confabulavam no degrau não podiam escapar e não
escaparam. Nunca lhe parecera tão confortável o desvão penumbroso
em que se meteu para não lutar mais, sinônimo de descanso, de quase
sono.
A
esposa distante não mais será vista. Missão cumprida, objetivo
afastado. Deporá os ovos num pequenino saco de tela branca e
delicada, de fios de uma espessura que nenhuma mão de mulher
conseguirá fiar. Nascidas andantes e moventes, as aranhinhas serão
conduzidas no amável dorso maternal como faz a mamãe-escorpião –
a senhora Titius – num cuidado minucioso para que nada lhes falte.
Evitará duelos e caçará peças brandas e saborosas. É de
enternecer vê-la deter-se e espalhar a filharada que agita as patas
trôpegas, derramada em giros de experiência andeja e curiosa.
As
aranhinhas farão aprendizagem com aplicação imediata e com três
semanas estão iniciando manhas para capturas de vítimas
proporcionais às suas forças e manejos. As glândulas secretoras da
peçonha funcionarão ao aproximar-se o primeiro aniversário
natalício.
Antes
deste tempo, bem antes, quatro meses de criancice, as aranhinhas
estão com maioridade relativa aos direitos de passeio e caça. Um
semestre já as emancipa da tutela doméstica e há o dever do
domicílio próprio. Così va il mondo...
Por
este meio há o duro pagamento de sacrifício às fomes de outras
aranhas, lagartos, aves que encontraram sabores transcendentes na
breve carne das aranhas novas. E a própria Licosa não deverá
gabar-se de haver respeitado a vida dos seus filhos, desconhecidos e
apetitosos. Talvez dois terços da produção tenham este guloso e
feroz mercado consumidor. O derradeiro terço ou pouco mais garantirá
largamente a perpetuidade galante das licosas brasileiras. Há quem
diga que a própria mamãe-aranha não desdenha, por desfastio,
deleitar-se com a mastigação de alguns filhos. Pode, entretanto,
ser uma onda caluniosa de inveja pela sua constante solicitude
durante os meses na formação pedagógica da prole aranhal.
Há
famas, provadas ou não, de que certos animais devoram os filhos não
por meio imperativo acidental e trágico, como ocorreu ao conde
Ugolino dei Gherardeschi, mas uma obediência a mandado irresistível
e obscuro. Excluem-se motivos da necessidade talqualmente sucedeu ao
mal-aventurado guelfo de Pisa. Lacraus, aranhas, cobras consomem
parte da prole não por falta de alimentos nem por acesso de loucura,
como houve em Hércules e Orlando, em tempos idos, mas por uma
autolimitação ao excesso de vidas prejudiciais à própria espécie
e decorrentemente aos meios de alimentação existentes. E fome de
proteínas. Também os jovens filhos serão candidatos in fieri às
fêmeas ou propagadoras abusivas na vida dos seres da mesma família,
conforme o sexo, ambos em breve atividade transbordante. Entre o
escuro mecanismo regulador do equilíbrio talvez exista, mesmo em
porção mínima, esta colaboração materna na diminuição da
descendência. Na possível seleção sexual o desaparecimento deste
lote será um contingente apreciável porque a escolha pertence, no
duplo ponto de vista biológico e alimentar, à própria progenitora,
respeitável pela intenção.
Não
nos parece absurdo criminoso quando a mais clara e linda civilização
do mundo possuía em seus fundamentos religiosos Urano, que prendia
os filhos vivos debaixo da terra, Saturno que os castrou e devorava
os descendentes e Zeus, que expulsou o pai para o exílio. Eram
apenas avô, pai e neto, numa sequência de evitações de problemas
futuros. Por isso os romanos conservaram no idioma a proximidade
moral entre mirabilia, maravilha, e monstrum, monstro.
Equivalem-se perfeitamente.
Tudo
quanto sabemos no assunto é opinião de cada professor que examina o
motivo. Pelo lado de dentro o mistério continua. Se a mamãe-aranha
consome os filhos não será, visivelmente, por uma depravação do
paladar como não seria a de Saturno, Cronos, engolindo pedras
vestidas de linho como sendo Júpiter. Há uma razão permanente
neste uso discreto da superioridade física e da voracidade maternal,
sacrifício que talvez se reduza em benefício da espécie,
indispensável ao mundo...
Não
podemos apreciar esta decisão porque pensamos individualmente e
somos personalidade concreta e sensível, articulada com poder e
firmeza aos nossos interesses, aos interesses do grupo que
governamos, a família. Já não existe na face da terra o sentimento
de família que vivia mais ou menos poderoso até o século XIII ou
XIV, o orgulho do nome, do brasão, da pureza tradicional, orgulho
muito mais pelos antepassados do que pelos descendentes que apenas
eram os portadores das dignidades conquistadas outrora. O essencial
era não deslustrar, não ultrajar, não enegrecer os arminhos do
pretérito, o renome avoengo. Um nome era espiritualmente um
potencial irradiador de vitaminas psicológicas, um estimulador
prodigioso de heroísmo, um compensador divino nos desequilíbrios
sociais. Mesmo pobre, esquecido, afastado da corte, da augusta
companhia do rei, o fidalgo estava sempre ambientado pela recordação,
sentimento físico da presença dos seus avós magníficos. Este
complexo foi sendo substituído, no ciclo das navegações que, bem
mais decisivas que as Cruzadas, valorizavam o fator econômico
imediato, a importação transformada em renda pronta, e
desaparecendo porque o fermento das finanças amoedadas ia mudando a
imagem do poder imóvel dos castelos. Antes não seria possível
compreender o júbilo delirante de quem descendesse de Carlos Magno
com sua barba florida. Era um elemento econômico porque valia
aquisição de utilidades.
Numa
aranha o sentimento é vago, escuro e poderoso, mas inteiramente
preso, unicamente voltado e funcional, para a espécie de que ela é
uma continuação. Naturalmente Licosa não leu genealogias nem
enxergou armoriais mas sente a urgência de realizar determinados
atos porque estes são formas indispensáveis para sua existência
coletiva, isto é, a vida dos seres de sua família no tempo. Talvez
os príncipes da dinastia dos Mings já não tinham este sentimento.
Nem a dos Júlios, em Roma. Licosa o tem, na plenitude do vocábulo.
Peço perdão de não fazer-me entender.
O
invencível impulso para o duelo mortal sempre que se encontram as
aranhas é outro índice desta misteriosa eliminação do possível
excesso. Lutam sem provocação e mesmo sem os excitantes motivos da
fêmea, da alimentação ou refúgio. Duelam sem que exista um
processo anterior de irritação, medo, fuga. Avistar outra aranha é
o motivo essencial e inadiável para um debate de morte. E nem sempre
há, após o morticínio, a refeição vitoriosa do corpo vencido. E
este ódio vive na mesma espécie. Não é obrigatório que duas
cobras se batam pelo mero encontro. Duas aranhas não podem dispensar
a medição de forças até o sacrifício. Por quê? Esperemos um dia
a confidência de Licosa, como sugeria o Professor Georges Dumas.
Foi
justamente o que sucedeu à Licosa num anoitecer de dezembro, luar
cedo, com uma luminosidade úmida, ensopando de leite impalpável o
quintal sossegado. Licosa devorara um cachorro-d’água, paquinha,
mastigando-lhe dificilmente as patinhas resistentes com que abre os
túneis de uma polegada. Na curva do tanque uma outra aranha
terminara seu diálogo com uma barata escurona e nédia. Marcharam as
duas com o mesmo ímpeto de dois carros de guerra, erguendo as patas,
suspendendo o corpo para assombrar o adversário com aquela
imprevista duplicação do volume normal. Mas não houve
imediatamente o esbarro iniciador e sim uma série de rodeios,
estudos, em semicírculos atentos como dois campeões de luta livre.
De súbito deram-se as mandíbulas numa dentada comum e furiosa,
torcendo-se mutuamente. Largaram-se, recuaram e volveram à carga,
numa precipitação de raiva incontida, empurrando-se como num choque
de automóveis num campo de experiências. Ora uma e ora outra cedia
um pouco e era arrastada, resistindo, firmada nos pares das patas
posteriores e voltando à ofensiva com denodo entusiástico. Nunca se
saberá por que se batiam com tamanha ferocidade. Um desses
ajustes-de-contas solitários e sem história pregressa. Nem mesmo
Fu, o sapo do tanque que tem vocacional e gratuitamente a mania de
ser espião, pôde vê-lo, na lonjura prudente em que se manteve,
porque Licosa ficou de flanco e a inimiga cortou-lhe, como numa
sabrada, o abdome rechonchudo e luzente. Assim que Licosa baixou as
sete patas, dobrando-as numa confissão de derrota notória, a outra
aranha abandonou a liça e desapareceu sem o menor aproveitamento e
humilhação maior à vencida de morte.
Licosa
ergue-se ainda num esforço lento que seria heroico se constasse de
qualquer história dos feitos de sua raça, e veio cambaleando,
tonta, caindo e reerguendo-se até perto da pirâmide de tijolos onde
ficou, valente, parada mas erecta, como se esperasse outro duelo ou a
visita da morte, a morte que deve possuir materializações típicas
no mundo das aranhas pelejadeiras e teimosas. Aí ficou. Morreu, mas
sua forma defendia-a do avanço dos adversários miúdos e
tripudiantes se a soubessem morta. Até que amanhecesse nenhum animal
dela se aproximou. Aquele vulto negro, imóvel nas patas firmes,
espalhava respeito no fundo do quintal. Assim o cadáver de Antar, na
boca do desfiladeiro, conservou à distância os Catâmidas
amedrontados.
Pela
manhã as formigas levaram-na…
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
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