Há
um tempo para falar e outro para fazer. Faz muito tempo que essas
mulheres renunciaram ao segundo. A fofoca passeia como um fantasma
por cada uma de suas moradas interiores. Os tapetes estão fora de
moda, portanto no chão de porcelanato se refletem os relógios, os
enfeites das bolsas, as manicures francesas, os dentes que, de tanto
se mostrar, parecem ameaçadores. Beijos, elogios, beijos, elogios.
Uma olhada de cima a baixo para quem engordou, envelheceu, escolheu
mal a roupa: costuma ser a mesma pessoa. A casa nova de María del
Pilar, Pili, é tudo o que se espera dela: enorme, climatizada,
monocromática, cara. Talvez maior, mas igual à das outras. Ainda
assim, faz-se o percurso, uma balbúrdia de bajulação, pelos
quartos que cheiram a coisa artificial, novinha em folha. A roupa de
cama de percal branco com uma listrinha cinza, comprada toda nos
Estados Unidos, o walking closet de revista de decoração, o
encanto de que o banheiro, gigantesco, tenha dois espelhos, duas
pias, duas privadas, duas banheiras.
— E
você já a benzeu?
María
del Pilar, Pili, não acha graça nenhuma na pergunta: ela pensa que
agora é o momento de efervescer em elogios, é o seu momento, então
se volta para Verónica e lhe diz muito lentamente que não, que
ainda não, e o sorriso fica plastificado em sua boca, como se lhe
tivessem desenhado um sorriso por cima da cara fechada. Verónica diz
que uma casa sem bênção é como um bebê sem batismo, que é mais
vulnerável ao mau-olhado. Ela se dá conta de que a olham com
desprezo e volta atrás: eu não acredito nessas coisas, vocês
sabem, mas é isso o que dizem por aí. Pronuncia as palavras com um
falso sotaque vulgar que faz o “isso” soar como “isho” e o
“dizem”, “dichem”. Todos riem, fazem piada, imitam Verónica
imitando o sotaque vulgar: então, de acordo com Verónica, você tem
que pôr um saquinho de babosa preso com fita vermelha sobre a porta.
E uma ferradura. Sim, e um espelho chinês ao lado para que os
espíritos maus sejam refletidos. E queime pau santo para fazer
defumação — defumachão. E varra tudo para fora. E elefantes. E
velas brancas. E cuspa aguardente. E ponha um buda com uma pequena
fonte de água. E um altar com velas na entrada. E acenda incensos —
inchenchos. E amarre uma fita vermelha com uma pedra no pulso, que
Verónica vai dar uma olhada, você não vê que ela é meio bruxa? É
bruxa e meia.
Verônica
também ri. As coisas não mudaram desde o colégio: a que é mais
morena, de origem estrangeira ou mais duvidosa, filha de pais
divorciados, que tem de dividir o quarto com a irmã; a que é
definitivamente distinta, tem de ganhar o direito a uma cadeira. Tem
algo de bufão, de capanga, de carniceiro. É fundamental que as faça
rir com as coisas do populacho e que nesse populacho esteja incluída
ela mesma: que seja um pouco menos aristocrática, que esteja
disposta a fazer favores, inclusive uma ou outra tarefa doméstica
quando não há empregadas suficientes e que, importantíssimo,
esquarteje em primeiro lugar a vítima escolhida. Sim, que seja ela
que diga o nome e o sobrenome, como, onde e com quem. Ou seja, molhar
a cara e as mãos no líquido sanguinolento e deixar sem pele e
eviscerado o animal, o conhecido, a amiga que não está presente,
para que as outras espetem com garfos, o mindinho em riste, a boa
fofoca crua.
Essa
ansiedade tão disfarçada de desdém é um pouco teatral, mas elas
não percebem. Falam, desatam goelas que limpam com guardanapos de
linho, a respeito daquela que foi infiel, de uma criança fora do
casamento, de um gay no armário, da que ostenta uma cirurgia
plástica, de um marido falido, daquela que engordou demais, e não
param até que a pessoa fica exangue, vazia, pura carcaça, no chão
de porcelanato. Então lançam-na à pilha de cadáveres que há em
todas essas salas climatizadas. E passam à pessoa seguinte. Isso se
chama cafezinho, inauguração da casa, aniversário, dia de piscina,
velório. Isso se chama reunião.
Elas
não se veem a si mesmas, mas se pudessem, se realmente existisse a
possibilidade de desdobramento e pudessem se ver, sentadas nesses
sofás tão brancos, cercadas de tanto luxo, devorando a mulher que
cumprimentam tão carinhosamente no supermercado, o melhor amigo do
marido, o coleguinha do colégio dos filhos que não se comporta como
um homenzinho, cortariam a própria língua (teriam de fazê-lo) e
depois a colocariam para secar como o cacau e a pendurariam no
pescoço: um pingente, uma lembrança da própria podridão. Mas as
coisas continuam iguais. As pessoas não são capazes de ver a si
mesmas e esse é o princípio de todos os horrores.
Verónica
sempre foi aceita com ressalvas no grupo, a que usava mangas
compridas para esconder os braços muito peludos, mais morenos, a que
nas férias ia para a casa dos avós e não a um internato a dez mil
quilômetros de distância para aprender francês, a que às vezes
repetia o vestido e todas a viam nas fotos com o mesmo traje em duas
ou três festas e não diziam nada, mas sabiam que alguém que repete
a roupa tem uma função no grupo: esforçar-se para diverti-las.
Agora, a noite está complicada porque desde o suicídio da gordinha
no shopping já se passaram alguns meses e não há novidades,
falou-se até na extenuação física da gravidez da ex-colega de
colégio e da paternidade da cria e de que faz anos que eram amantes
e de que pobre esposa, mas também que tapada, se todo mundo sabia…
assim, depois de uma recapitulação geral, todas começam a ficar
nervosas e a olhar para o teto porque não falar dos demais significa
ter de falar de si mesmas, e depois de mostrar toda a casa, até o
jardim e a área da piscina, de elogiar a pele, o cabelo, as
sandálias, os colares lindos feitos por uma sobrinha, as tortinhas
de salmão defumado, não resta muito a dizer do que é permitido
dizer.
Alguém
tem de quebrar o silêncio, aquele silêncio que dura talvez um par
de segundos, mas que engasga como um oceano enfiado à força na
garganta. Algo de que não se deveria falar — e todas escondem algo
— poderia escapar. Além do mais, o silêncio não é bom porque dá
margem para pensar que estar juntas, uma tarde de amigas, consiste em
trinchar e esquartejar outras pessoas, em empalá-la diante de seus
olhos para observar suas imundícies e que o próprio gesto, o de
procurar a vítima seguinte, está se repetindo atrás de dezenas de
portas gigantescas, duplas, de imbuia ou metalizadas. São exatamente
iguais. Há outras mulheres com seu nome na boca.
Natividad
Corozo, Coro, como a batizou sabe-se lá que patroa há quem sabe
quanto tempo porque não gostava do nome Natividad e porque, caralho,
ela é minha, posso dar o nome que eu quiser, entra na sala com a
discrição de uma lagartixa, incompatível para uma mulher de seu
porte, de sua estrutura. Uma incongruência da natureza só
explicável por anos e anos de trabalho doméstico que vão, como os
sapatos que atrofiavam e acabavam com os pés das meninas chinesas,
criando deformidades tão estranhas a ponto de fazer com que uma
mulher tão mulher como Natividad Corozo se torne invisível. Ela se
aproxima de María del Pilar e lhe diz algo no ouvido. Pili dá uma
bufada de impaciência e lhe pede que traga sua carteira. Depois se
desculpa com as amigas: que meu marido não lhe deixou dinheiro,
claro, saiu tão rápido, ele, pensando em outra coisa, ele, e Coro
já tem que ir embora e não sei quê. Desculpem, meninas, coisa de
empregadas. Coro volta. Uma efígie africana vestida com um uniforme
branco, de pano grosseiro e mal cortado, que toda hora abre no peito
e que parece arrebentar nos quadris e nas nádegas, enquanto na
cintura faz pregas por todos os lados. A única coisa que nenhuma
patroa conseguiu lhe tirar em mais de trinta anos de serviço
doméstico é o turbante vermelho da cabeça. A ameaça é emitida
mascarada por um “é para o seu bem”: ai, patroa, é que meu
cabelo cai e, às vezes, quando estou cozinhando, se não estou com o
turbante, esses meus cabelos tão escuros vão parar na panela. É
claro que o cabelo de Coro não cai.
María
del Pilar não tem trocado e todas procuram nas carteiras para trocar
suas notas. Mas no fim ninguém tem, todas têm as mesmas notas,
graúdas, e isso lhes parece engraçadíssimo, de uma hilaridade
tremenda, e Coro vai para casa, para passar o único final de semana
livre do mês, com a metade do salário, e tudo bem e obrigada,
patroa.
Quando
Coro sai, todas falam dela, se não é estranho ter uma mulher tão,
como dizer, preta trabalhando em casa, se ela não cheira diferente
porque eles têm um cheiro diferente e que simpática com seu
turbante que parece a Tia Jemima, a negrinha da marca de xarope para
panquecas, e que moderna a María del Pilar deixando a empregada usar
acessórios, mas que lhe cai bem, é exótico, e quanto você paga a
ela e que barbaridade, eu pago mais pra minha, ah, tá vendo minha
cara de boba, não é possível, e agora dizem que a gente tem que
registrá-las e pagar férias, seguro-desemprego, tudo isso e eu, não
é que diga que não porque são seres humanos, mas como, então,
como a gente paga? É muita coisa. Sim. Muito. Daqui a pouco vão
exigir que a gente faça massagem nos pés delas. E pausa pro café.
Não, não é possível. O quê?? Vamos trabalhar pra pagar a
empregada? Não é justo, se a pessoa tem empregada é porque precisa
dela e eu trato a minha muito bem, dou roupa pra ela, roupa pros
filhos, comida, quarto, seus produtos de higiene, ou seja, tudo, e
pra mim quem dá isso? Ninguém. Pra mim ninguém dá nada de graça
e eu, pelo contrário, dou, dou e dou. Sim, é verdade, além disso a
gente tem uma pra cada coisa, não é que deixamos todo o trabalho só
pra uma, a gente é humana, eu tenho uma que vem passar roupa e outra
que cuida das crianças. Essas mulheres estão é muito mimadas, olhe
pra sua, até seu lindo uniforme você é que dá, mas como ela é
tão gorda acaba com todos.
A
luz automática do pátio se acende enquanto alguém conta outra vez
a história de que não sei quem encontrou uma de suas empregadas
fazendo a sesta e lhe jogou um copo d’água na cara e a menina nem
acordou de todo, virou para o outro lado e pediu cinco minutos mais.
Que encheção, a luz automática é tão sensível, acende por
qualquer coisa, e como nessa terra há tanto bicho, tanto animal,
dispara a todo instante, não se pode nem dormir. Todas nós temos
esse problema que é terrível. A luz se apaga e de repente acende de
novo. Acontece sete vezes, vamos ter que sair pra ver. Saem todas
morrendo de rir por causa dos coquetéis e da aventura: sair ao
jardim para ver o que está fazendo a luz automática disparar. María
del Pilar agarra a peneira da piscina e a empunha como uma lança.
Tudo é engraçadíssimo: as sandálias de plataforma, o conjunto de
linho claro, a mão com os anéis, a peneira como arma. Alguém tira
fotos. Com movimentos abruptos, um rabo estranho, que termina em
ponta, se esconde na grama. É um rato. É uma cobra. É uma iguana.
Rato. Iguana. Cobra. María del Pilar, disposta a degolar com a
peneira qualquer ser vivo, mexe nas plantas para que o bicho saia,
mas sem sucesso. Que chato. De repente, algo se mexe. Caçadoras,
vamos. Uma fila de mulheres que, vistas muito lá de cima, pareceriam
uma procissão de formigas ruivas. A coisa se enfiou no quarto da
empregada. Elas entram.
A
primeira coisa que sentem é o cheiro. Ali cheira a moedas muito
gastas, a mofo, a curtume de couros velhos, um tanto acres, guardados
úmidos num armário dos trópicos. O quarto é o armário. Não há
janelas e ele é do tamanho de um ônibus. A privada fica tão perto
da cama, separada por uma cortina plástica de corações, que alguém
cagando e alguém dormindo poderiam estar de mãos dadas. Um
calendário com uma foto de pintinhos na parede esquerda e na da
direita um espelho sem moldura, no teto uma lâmpada sem lustre. Elas
não achavam que o tour chegasse até aqui, mas a excitação
as infantiliza, e, sem dizer nada, decidem ser o que não costumam
ser: outras. Abrem gavetas, põem a roupa de Coro, de Natividad
Corozo, por cima das suas, uma delas enfia um travesseiro dentro da
calça e dança mexendo suas novas nádegas, outra pega uma camiseta
vermelha e a ajeita como turbante na cabeça, tiram fotos imitando
Coro. Esta esfrega os lábios, a dali finge que varre, a outra limpa
o espelho, a das nádegas postiças imita uma negra, ou o que ela
acredita que é imitar uma negra, exigindo o salário completo com as
mãos nos quadris porque no final de semana vai sair para se acabar
de dançar e comer. Que engraçado tudo isso.
Dentre
as coisas que elas mexem, cai no chão um inseto peludo, grande,
parecido com uma tarântula. Saem todas gritando, empurrando-se,
garotas bêbadas correndo assustadas e também sorridentes. Jogam os
vestidos de Coro, de Natividad Corozo, no chão, na piscina, e
também, por que não, jogam Verónica que permaneceu do lado de fora
do quarto, de braços cruzados, por não querer participar daquilo ou
para vigiar a entrada. Os risos se transformam em uivos primitivos.
Verónica sai à superfície para tomar ar e uma delas volta a
afundar sua cabeça. Não é afogá-la, é só divertimento. A luz
automática, com seu piloto de luzinhas vermelhas, como dois olhos,
acende e apaga sem parar. As palmeiras projetam sombras que se movem:
monstros nadando na piscina. No clube, uma melodia soa distante, há
uma festa e é hora dos ritmos tropicais. Tudo parece fazer parte dos
excessos. No fundo da piscina, Verónica vê o mesmo rabo de antes, o
rabo preto pontudo, se enfiar pelo filtro. Cada vez que tenta sair à
tona para tomar ar, alguém afunda sua cabeça.
María
del Pilar, com a peneira, volta a entrar no quarto da empregada e
começa a massacrar selvagemente o bicho que está no chão. A
lâmpada, na qual deu um golpe, balança da direita para a esquerda e
da esquerda para a direita. Talvez já estivesse, mas com certeza
depois de trinta pauladas está morto. Enquanto mata o animal, pensa
que é a primeira vez que faz isso, matar, que sempre era seu pai que
se encarregava de coisas assim, ou sua empregada, ou seu marido. Mas
o pai está morto, a empregada foi para casa e o marido está sabe-se
lá onde e sabe-se lá com quem. Mas, seja como for, não necessita
de nada para matar, apenas de uma enorme vontade de fazê-lo. Cenas
do marido sentado, de pernas abertas, com uma mulher chupando seu
pau, o som, o barulho desesperado da felação, se mesclam com o
cheiro de pó, cera quente e cítrico podre, com a visão dos
pintinhos do calendário, com seu próprio rosto, vermelho, selvagem,
desfigurado pela ira, no espelho sem moldura.
Lá
fora as amigas brincam. Verónica tenta nadar, mas a encurralam, são
muitas, em todos os cantos da piscina. Vamos, é sua, cuidado, não a
deixe escapar. A luz automática, muito potente, como de
interrogatório, vai e volta, vai e volta, fazendo um ruído
metálico, e entre isso e o barulho mal se escuta o gemido de
Verónica que parece dizer chega, amigas, é sério.
María
del Pilar destruiu a lâmpada com a paulada da peneira, e usa o
celular para iluminar a aranha morta. Dá um grito justo no momento
em que alguma delas volta a enfiar a cabeça de Verónica na água.
Todas correm e encontram María del Pilar horrorizada, olhando para
uma coisa que tem nas mãos: é uma boneca feita com cabelo loiro,
seu cabelo loiro, atada com fitas vermelhas nas quais está escrito
seu nome. Elas a obrigam a jogá-la na privada e dar a descarga. Elas
a abraçam, consolam-na, dizem bruxaria, mentira, não acredite
nisso, você parece uma tonta, tudo isso é história de empregadas.
E María del Pilar está aos prantos porque olhou para sua boneca e
sua boneca lhe devolveu o olhar.
Que
besteira, Pili.
Saem
todas. Vão voltar para dentro da casa, vão tomar outro coquetel e
vão rir disso tudo.
A
luz é ativada como uma guilhotina. Na superfície da água, com as
pernas e os braços abertos, o corpo de Verónica flutua à deriva.
María Fernanda Ampuero, in Rinha de galos
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