O
vizinho mandou pintar de cor-de-rosa sua casa, e de azul-claro o
beiral e os marcos e folhas das janelas. Esta providência dá margem
a algumas divagações que aqui se transmitem ao leitor, nosso
companheiro.
O
ato do vizinho é muito mais importante do que lhe parece a ele.
Afirma um sentimento de confiança na civilização mediterrânea, e
o propósito de contribuir para que todos nós, residentes ou
transeuntes, recuperemos um pouco da beatitude perdida.
Quem
pinta hoje sua casa, em vez de negociar-lhe a demolição, cumpre uma
cláusula do contrato social, observa a boa lição urbanística e,
dentro do rito milenar, satisfaz essa velha tendência do homem a
aformosear o quadro de sua existência.
De
uns anos para cá as ruas passaram a ser percorridas por elementos
suspeitos, que, avaliando em metros quadrados aéreos os terrenos
onde se erguem as habitações humanas, logo procuram seus
proprietários e lhes propõem botar aquilo no chão.
A
aquiescência imediata dos interpelados revela estranha propensão ao
suicídio, praticado através da destruição de algo fundamental,
como é a casa em que vivemos.
Tendo
destruído essa parte do ser, as pessoas transportam os remanescentes
para os ossuários erguidos apressadamente no mesmo local, e que se
arrumam pelo princípio da superposição de urnas. Aí aguardarão,
talvez até a consumação dos séculos, o dia da ressurreição das
casas.
Mas
o vizinho reagiu contra essa psicose grupal, e dali sorriem pintadas
de rosa as paredes de sua casa. Vale dizer que ele não atendeu o
telefone, quando o chamaram para consultá-lo vagamente sobre a
hipótese da derrubada, que não compareceu ao escritório onde
peritos blandiciosos o convenceriam da inconveniência de morar à
maneira antiga, metendo em brios o seu amor-próprio, pois se todo
mundo desistiu de tal maneira, por que só ele continua teimando? Ou
compareceu, foi amaciado, reagiu, tornaram a amaciá-lo, esteve a
ponto de ceder, a vista se lhe turvou qual plúmbeo véu, eram tantos
milhões de cruzeiros, mas cobrou ânimo e reagiu outra vez, o senhor
é louco, não vê que a valorização naquela zona o proíbe de
continuar a deter o surto imobiliário, isso é um crime, o senhor
está perdendo dez mil cruzeiros por semana, onde é que anda o amor
que devota a seus filhos, e o gabarito, e a vaga na garagem, e o
fabuloso jardim de inverno, e o vizinho vai capitular, não, ainda,
não; passa-lhe pela mente o frontispício cor-de-rosa, com elementos
azuis, de uma antiga mansão onde a vida era feliz, ou pelo menos
ficou sendo naquele tempo; depois que considerou bem, o vizinho
enxuga o suor da testa, grita nããão, e sai e chama o pintor e lhe
ordena: pinte tudo cor-de-rosa, com os beirais e as janelas de azul
de mês de Maria, quero minha casa bem bonita, como bonito era o
sobradão de 1800 e tantos onde meu bisavô nasceu, e quero ver, mas
quero ver quem derruba minha casinha!
De
cor-de-rosa e de azul-claro ele pintou sua casa, de azul-claro e de
rosa devíamos todos revestir uma fração de nossa vida, já que não
é possível pintá-la completamente de cores tão puras.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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