Caminhavam
juntos, sob o sol ou nos dias de chuva, Fogo e Jano, seu dono. O
cachorro se adiantava, virava o focinho para o lado, esperava, se
empinava um pouco, farejava o cheiro do homem, escutava os sons
roucos da voz: “Vamos logo, Fogo... Vai, vai andando”.
Eram
inseparáveis: Fogo dormia perto da cama do casal, e Alícia não
suportava isso. Quando o cão trazia carrapatos para a cama, ela o
enxotava, Jano protestava, o bicho soltava ganidos, ninguém dormia.
Então Fogo voltava, quieto e mudo, e se aninhava no cantinho dele,
forrado com uma pele de jaguatirica. Ela ia dormir no quarto do
filho. Nos últimos meses da vida de Jano foi assim: Fogo e seu dono
num quarto, e a mulher, sozinha, no quarto do filho ausente. O
cachorro tinha na pelagem umas manchas amareladas que o menino
detestava porque um dia o pai dissera: “Manchas que brilham que nem
ouro. Aliás, Fogo é um dos meus tesouros”.
Antes
de conviver com Mundo no ginásio Pedro II, eu o vi uma vez no centro
da praça São Sebastião: magricelo, cabeça quase raspada, sentado
nas pedras que desenham ondas pretas e brancas. Ao lado de uma moça,
ele mirava a nau de bronze do continente Europa; olhava o barco do
monumento e desenhava com uma cara de espanto, mordendo os lábios e
movendo a cabeça com meneios rápidos como os de um pássaro. Parei
para ver o desenho: um barquinho torto e esquisito no meio de um mar
escuro que podia ser o rio Negro ou o Amazonas. Além do mar, uma
faixa branca. Dobrou o papel com um gesto insolente, me encarou como
se eu fosse intruso; de repente se levantou e estendeu a mão, me
oferecendo o papel dobrado.
“Mundo?”,
perguntei, antes de agradecer.
Sorriu
com o canto da boca, os olhos escuros ainda assustados.
“Naiá,
esse aí é o sobrinho do Ranulfo?”
A
moça o agarrou pela cintura, e os dois se afastaram, o rosto de
Mundo voltado para mim e em seguida para o monumento.
Foi
o primeiro desenho que ganhei dele: um barco adernado, rumando para
um espaço vazio, e toda vez que passava perto da nau Europa,
lembrava do desenho de Mundo.
Só
fui tornar a encontrá-lo em meados de abril de 1964, quando as aulas
do ginásio Pedro II iam recomeçar depois do golpe militar. Os
bedéis pareciam mais arrogantes e ferozes, cumpriam a disciplina à
risca, nos tratavam com escárnio. Bombom de Aço, o chefe deles,
mexia com as alunas, zombava dos mais tímidos, engrossava a voz
antes de fazer a vistoria da farda: “Bora logo, seus idiotas:
calados e em fila indiana”.
Naquela
manhã, o portão do colégio estava fechado durante o recreio, e a
chuva confinava os ginasianos sob os pórticos revestidos de mármore.
Antes de soar a sirene, apareceu uma mulher segurando uma sombrinha
vermelha que protegia apenas o corpo do estudante que a acompanhava;
tinham quase a mesma altura. Bombom se precipitou para abrir o portão
para os dois, que subiram lentamente a escadaria. Os alunos se
dispersaram para que eles atravessassem o saguão; não olharam para
ninguém, foram observados por todos. O bedel os conduziu à sala do
diretor, e quando a sirene disparou, a mulher reapareceu, sozinha, o
cabelo ondulado úmido; a blusa de seda, molhada, provocou assobios
dos veteranos. A morena de cerca de trinta anos desceu com pressa a
escadaria; na calçada, abriu a sombrinha e aproximou o rosto das
grades de ferro. Viu-me encostado a uma coluna e me chamou: era um
absurdo não ir visitá-la, mas de agora em diante eu não teria mais
desculpas, seu filho ia estudar no Pedro II. Concordei com um gesto
tímido, e ela ainda disse: “Penso na tua mãe como se estivesse
viva”. Era Alícia, a mãe de Mundo.
No
começo ele foi apenas um colega de sala. Esquivo, o mais estranho de
todos, e dono de certas regalias. Nas manhãs chuvosas, um DKW preto
vinha pela Rui Barbosa e estacionava no pátio lateral. Mundo subia a
escada, protegido por um guarda-chuva que o chofer segurava. Este
dizia ao bedel: “Aí está o menino”. Mas, quando Mundo chegava
atrasado, tinha que esperar o intervalo seguinte. Nós o víamos
rondar o coreto da praça das Acácias, depois sentar num banco e
desenhar um bicho-preguiça, uma garça, o rosto de um transeunte. As
regras disciplinares o transtornavam; mesmo assim, o desleixo da
farda e do corpo crescia, enraivecendo os bedéis: cabelo
despenteado, rosto sonolento, mãos sujas de tinta; a insígnia
dourada inclinada na gravata, o nó frouxo no colarinho, ombreiras
desabotoadas. Ele usava uma meia de cada cor, arregaçava as mangas,
não polia a fivela do cinturão. Bombom o barrava e ameaçava:
preguiçoso, displicente, pensava que filhote de papai tinha vez ali?
Mundo não respondia: sentava atrás da última fila, isolado, perto
da janela aberta para a praça. Nos dias de chuva forte, passava o
recreio em pé, diante dessa janela, observando as árvores que a
tempestade derrubara, os jacarés entre as pedras, as aves aninhadas
à beira do pequeno lago, alguém sentado num banco, solitário, à
mercê das rajadas, e, mais longe — naquela época o horizonte
ainda era visível —, as casinhas de madeira inundadas ou submersas
e os barcos e canoas emborcados ou à deriva nos igarapés do centro
de Manaus.
Nos
intervalos, caminhava sem medo no meio dos veteranos valentões,
ignorando as ameaças, arriscando-se a levar um empurrão ou tapa. No
silêncio nervoso de uma prova de matemática, ouvíamos o ruído da
ponta do lápis no papel, rabiscando seres e objetos; mesmo assim,
ele respondia às questões e era o primeiro a terminar a prova. No
fim do ano, Mundo nos surpreendeu: aprovado em todas as disciplinas.
Quando
eu me aproximava para puxar conversa, mostrava umas caricaturas a
bico-de-pena e perguntava se eu tinha gostado. Fechava o caderno se
via certos colegas por perto, desprezando-os com uma altivez que os
irritava.
“A
gente estuda que nem condenado, como é que ele consegue passar de
ano?”, reclamava o Minotauro. E o Delmo: “Os pais dele devem dar
uma boa gorjeta aos professores e bedéis. Já se livrou até dos
Jogos da Arena”.
Jogos
da Arena era um torneio de luta livre num círculo de areia suja. Nas
tardes de sábado, o professor de educação física sorteava os
participantes entre veteranos e calouros. Os estudantes do Pedro II
cercavam o areal, e, na calçada, alunos de outros colégios e
soldados de folga assistiam ao espetáculo pela grade, torcendo e se
divertindo, como se fossem bichos fora da nossa jaula. Aos poucos os
lutadores perdiam o medo, ficavam ferozes, competiam que nem animais
acurralados.
Num
desses torneios morreu Chiado. Seu adversário, um veterano do último
ano, foi tão aplaudido que nem notou a cabeça engastada nas barras
de ferro. Ergueu os braços vitoriosos enquanto o outro sangrava;
alguém soltou um grito, ele virou o corpo e deparou com os olhos
fechados de Chiado. Com mãos de gancho separou as barras, a cabeça
esmagada caiu, e vimos a boca ensanguentada e depois o corpo sendo
carregado até o professor.
Uma
semana de luto, o círculo de areia em silêncio. Olhávamos para a
arena e lembrávamos do Chiado, o rosto esmurrado e chutado pelo
aluno parrudo. Sua morte foi comentada durante o ano inteiro. Em
novembro, depois de um processo que não deu em nada, o veterano foi
expulso do Pedro II, os jogos recomeçaram, ainda mais violentos:
lutadores que prometiam vingança e apontavam as barras de ferro
retorcidas, evocando a valentia do amigo punido, e os covardes que se
cuidassem.
Mundo
não participava dos torneios, nem praticava os demais esportes: fora
dispensado graças a um atestado médico arranjado por Alícia; mas
tinha que ficar na quadra e responder à chamada nas aulas de
educação física. Ela ainda apareceu duas ou três vezes com o
filho: chegavam abraçados, no portão se despediam com beijos e
afagos; ele subia a escada virando o rosto para a mãe, e a cada
degrau seu sofrimento parecia aumentar. Ela ia embora antes que ele
entrasse; andava com pressa até o carro, enquanto Mundo a seguia com
os olhos, esperando um aceno. Aos treze anos já era mais alto que
Alícia, de quem herdara o rosto anguloso e os olhos grandes e
escuros, meio repuxados, “de alguma tribo esquecida”, como ele
próprio escreveu anos depois. Quando chovia, os veteranos o cercavam
no saguão: “Tua mãe não veio? Molhada é ainda mais bonita”, e
ele, com o rosto crispado, mordia os lábios e devolvia com um olhar
desafiador os gracejos idiotas. E logo percebemos que seu poder, além
de emanar das mãos, vinha também do olhar.
As
primeiras caricaturas causaram alvoroço no Pedro II: apareceram na
capa dos quatrocentos exemplares do Elemento 106, o jornaleco
do grêmio. Destacava-se o desenho do semblante carrancudo do
marechal presidente: a cabeça rombuda, espinhenta e pré-histórica
de um quelônio, o corpo baixote e fardado envolto numa carapaça. Ao
redor das patas, uma horda de filhotes de bichos de casco com feições
grotescas; o maior deles, o Bombom de Aço, segurava uma vara e
ostentava na testa o emblema do Pedro II. Um mês de suspensão para
os redatores, dez dias para o artista, e apreensão do jornal. Mesmo
assim, a capa do Elemento 106 ficou exposta por toda parte: nos
banheiros, na cantina, nas lousas, na porta da sala da direção. Era
arrancada e rasgada, e reaparecia no dia seguinte, apesar das rondas
dos bedéis, e das ameaças de punição e até de expulsão.
Quando
Mundo voltou, o professor de educação física o repreendeu: mais
uma brincadeira como aquela, e rua! Foi xingado de subversivo pelo
Delmo, insultado pelo Minotauro: artista de araque, neto de galegos.
Ficava sozinho no fundo da sala, atento aos nossos gestos, os olhos
fisgando um e outro; depois inclinava a cadeira, encostando-a na
parede, abaixava a cabeça, concentrado, o rosto perto do papel.
No
bate-bola do aquecimento, sentava à sombra da marquise dos
laboratórios e espiava; os olhos graúdos e pestanudos nos seguiam,
mangando talvez do nosso esforço, alheio às ordens do professor:
“Bora, rapaz, entra no jogo, porra”. Quando o apito trilava, e os
bandos se precipitavam na quadra de cimento, Mundo se deslocava para
a arquibancada, abria a caixinha de lápis e desenhava os corpos que
corriam, trombavam, se contorciam, giravam, caíam.
Corpos
caídos foi a primeira sequência que ele deixou sobre sua
carteira numa manhã em que foi à cantina. Vimos nossos corpos
tombados, nossos rostos fazendo caretas medonhas: o Minotauro, meio
monstruoso e o único sem cabeça, o Delmo com cara de gafanhoto, e o
professor, no centro da quadra, um arlequim atarracado, a cabeça
separada do corpo. Os desenhos distorciam e misturavam nossos corpos,
reconhecíamos traços de nós mesmos e dos outros, de modo que todos
se sentiram ultrajados. Delmo, enfezado, quis rasgar tudo e partir
pra porrada: “Que tal umas cacholetas? um sabacu?”. Minotauro,
muito mais forte, pinçou com os dedos da mãozorra o pescoço do
Delmo: “Nada disso, rapaz. Tenho uma ideia melhor”.
Foi
na manhã de um sábado de novembro, antes dos exames finais do
segundo ano. Minotauro se aproximou de Mundo: por que não iam até a
praça? As meninas estavam loucas para ver os desenhos. Ele
concordou. Uma roda de alunas cercou o banco enquanto Mundo mostrava
os corpos caídos; Minotauro colou com carrapicho um chumaço de
rabiola na traseira do artista, tocou fogo com álcool e se afastou;
eu ia correr para alertá-lo, Minotauro me segurou, tapou minha boca
com a mãozorra e curvou com força minha cabeça. Mundo estranhou a
risada das garotas, viu a fumaça entre suas pernas, deu um pinote e
se atirou no lago. Depois sentou na pequena ponte de pedra, tirou os
sapatos e o cinturão, e ficou ali, todo molhado, fitando os bichos,
ouvindo a zombaria dos ginasianos. Dezenas. Não se mexeu; esperou o
sinal do fim do recreio, a praça sem fardas, urros ou gargalhadas.
Parecia mais triste que raivoso. “Estou acostumado”, disse, sem
olhar para mim. E não respondeu quando perguntei se ia dar queixa à
diretoria.
Mais
tarde, da janela da sala, eu o vi caminhar descalço, sem camisa, o
cinturão no pescoço, os cadarços dos sapatos enroscados nas mãos.
Seu corpo sumia nos caminhos sinuosos da praça e reaparecia na
sombra das acácias. Passou perto das sentinelas de bronze do quartel
da Polícia Militar e contornou o edifício, como se rumasse para o
porto.
Milton Hatoum, in Cinzas do Norte
Nenhum comentário:
Postar um comentário