Veio
visitar-me minha mãe, ou pelo menos alguém que assim se disfarça
para poder me ver sem perigo.
Minha
mãe era diferente, eu me lembro, e não tinha esse choro fácil com
que essa desconhecida me brindou durante toda a entrevista,
fitando-me com olhos desesperados. Minha mãe era alegre, vivia a rir
um riso largo e desprendido das coisas terrenas, como se fora um
pássaro voando sobre um mar de cinzas, mas um pássaro alegre. Ontem
minha mãe tinha o olhar cavo e triste; logo, não era minha mãe.
A
entrevista durou um tempo longo, durante o qual fumei vários
cigarros e procurei posar de bom filho, para não desgostar a infeliz
criatura. (Suponhamos que seja uma pobre louca que tenha perdido o
filho — pensei eu, e cheguei mesmo a imaginar um romance que
tivesse exatamente esse desfecho cruel.) No fim eu já estava tão
habituado com as lágrimas da mulher e tão compenetrado do meu
papel, que passei a tratá-la por mamãe — o que lhe causou, e a
mim também, um bem-estar indescritível. Cheguei, um momento, a
pegar-lhe as mãos em retribuição às suas carícias, e a fitá-la
com um olhar de infinita ternura, que lhe deve ter feito um bem
enorme, a julgar pelo sorriso que deu.
Falamos
— ou, antes, ela falou e eu respondi — de coisas várias e
aparentemente estranhas, que a mim não me comoviam absolutamente e
que um segundo depois eu já havia esquecido, como de fato esqueci
completamente. Lembro-me apenas de que, às tantas, ela abriu um
pequeno embrulho que trazia sobre o colo e dele tirou, como num passe
de mágica, um pacote de balas e um tablete de chocolate, que me
entregou com um sorriso exultante, como se eu realmente fosse seu
filho. Não direi que não tenha gostado do presente, mas confesso
que o recebi meio constrangido e sem jeito, talvez porque o
maître-d’hôtel, que se havia postado a certa distância, esticou
o pescoço para ver do que se tratava e chegou a esboçar um gesto de
impedimento. Suspeita-se cada vez mais da existência de espiões
entre os hóspedes, e essa atitude de precaução por parte do
gerente e dos seus empregados não deixa de ter, afinal, o seu
fundamento.
Provados
os doces, com a discrição que o momento exigia, levei minha mãe a
visitar algumas dependências do estabelecimento franqueadas ao
público, sobretudo o grande pátio de recreio, que lhe pareceu muito
limpo e aprazível. Havia muita gente em torno, mas passávamos entre
todos como se fôssemos nobres exilados em meio a uma malta de
vagabundos, sem lhes dar a mínima atenção — eu com um pedaço de
chocolate entre os dedos. Assobiei um pouco, para alegrar um pouco o
ambiente, e depois fomos parar os dois juntos à amurada que dá para
o bosque onde corre, sereno, o rio da Monotonia, como o chamei eu num
dos meus versos mais felizes. Ali o tempo passou mais depressa e
esqueci completamente a presença da minha doce companheira, absorto
como sempre fico diante de um espetáculo de tão calma beleza.
Quando dei por mim, já estava a sós no meu quarto, arrumando
cuidadosamente na gaveta os caramelos que haviam sobrado, para que
não os viesse a descobrir a empregada que arruma a cama e nas horas
vagas me aplica o soro da juventude.
E
agora que estou só, neste quarto de paredes imóveis e de profundo
silêncio, sinto dentro de mim um amor filial que de há muito não
me visitava e que só posso atribuir à tragicomédia que me vi
obrigado a representar esta manhã, junto à pobre criatura que
perdeu todos os seus filhos nas três últimas guerras. Que bom
seria, realmente, se aqueles olhos tristes e repassados de ternura
fossem na verdade os olhos de minha mãe, os mesmos olhos que em vão
procuro recordar através da névoa cada vez mais espessa destes dias
cinzentos! Que eu ainda daria um bom filho, apesar de tudo, penso que
não resta a menor dúvida, mesmo porque há certos momentos em que
sinto uma grande falta de um colo macio e morno onde recostar a
cabeça e dormir tranquilamente — dormir, dormir, dormir, como se
eu fosse apenas um passarinho. E onde, em que lugar da China, ou dos
Estados Unidos, eu pergunto, poderia haver esse abrigo seguro e sem
mortes, senão no peito de uma mãe verdadeira ou mesmo falsa, que me
acolhesse e às minhas aflições sem pedir-me nada em troca, mesmo
porque não teria nada para oferecer?
E
tanto sinto em mim esse filho perdido, neste instante mais do que
nunca, que vou pedir ao porteiro do hotel que deixe de novo
visitar-me, quantas vezes ela queira, essa mãe triste e sem filhos
que não teve pejo de chorar sobre o meu ombro, na presença de
estranhos e de agentes da mais perfeita rede de contraespionagem de
que tenho notícia. Afinal, apesar dos pesares, bem pode ser que um
de seus filhos se tenha realmente reencarnado neste meu corpo
franzino e doente, embora eu não seja muito de acreditar nessas
coisas, nem mesmo em quaisquer outras coisas passadas, presentes ou
futuras.
Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia
Nenhum comentário:
Postar um comentário