Um
itabirano que há cinquenta anos não revia a cidade natal, deixada
aos quinze, voltou lá e ficou triste; e ficando triste, imprimiu um
boletim de que me mandaram um exemplar. Queixa-se, entre outros
males, de que acabaram com as árvores, notadamente “o encantador e
quase secular coqueiro do saudoso Batistinha”. Fecho os olhos e
revejo o coqueiro; junto ao tronco rugoso, lá vem a imagem do
Batistinha, com o bando de gente, fatos e sensações daquele tempo;
e sinto — o que é normal nesse jogo da evocação — que,
destruídas lá fora, as coisas se vão recompondo cá dentro, até
que, com a nossa morte, se acabem de vez esses coqueiros internos,
dos quais só um ou outro sobrevive guardado em página literária ou
alusão histórica.
Agora,
quem quiser ver a praia do Arpoador, é fechar os olhos; e não
adianta distribuir boletim, que a praia não volta, levada que foi
pelo mar em fúria ou simplesmente enlunado. Quem nela se deitou
domingo 8, não a encontrou mais domingo 15; sem aviso, sem
consideração a tanto programa dominical que se organizava no correr
da semana, a onda ferrou o dente na areia clara, e as duas lá se
foram, na vertigem. Vão talvez aquietar-se em pousos longínquos,
onde pedras tão nuas como as do Arpoador de hoje esperam vez. A
praia nova atrairá outros corpos, a mesma areia pisada por pés
gentis ou rudes sofrerá novas pressões, mas esse “momento” na
história da areia, que se chamava praia do Arpoador, está arquivado
em nós, tão frágil arquivo.
Não
era um bem carioca, mas um bem nacional. Acendia um desejo em rapazes
e moças do Norte, do Oeste, de Leste: “Quando for ao Rio vou tomar
banho no Arpoador”. Mesmo em países distantes, esse nome está
ligado a manhãs de vento e azul, a montanhas violeta ou cinza
presidindo, a um piscar de farol, a ilhas que mesmo próximas guardam
um segredo de solidão; tudo isso embutido numa sensação de torpor
ou euforia, que marcou para sempre aquele lugar, e ficou sendo como
um eflúvio dele.
Em
suma, a praia do Arpoador era um bem dos sentidos, que são ciosos de
sua fazenda. Na voluptuosidade da vista, do tato, da brisa marinha
sorvida a pleno, estavam suas riquezas, logo convertidas em memórias.
O amor ali fincou suas barracas, mas podia fincá-las também a
simples amizade, e até a indiferença sentimental. Não era menor o
prazer de banhar-se ou tostar-se, numa ou noutra situação emotiva.
Todos fruíam igualmente de um mar bravo, limpo, da melhor espuma, da
concha mais finamente colorida. A preferência da gente “bem”,
acentuada nos últimos tempos, não impedia que o lobo solitário ali
se esticasse, e revigorasse ao sol sua misantropia. A praia não
tomava partido.
Mas
o que tornaria o Arpoador infrangível na lembrança dos que o
frequentavam era a teoria de corpos jovens a desfilar em suas areias,
no cenário de uma eflorescência sempre cambiante, com a água, a
nuvem e o som surdo se atando e desatando continuamente. Proust,
doutor no assunto, se enlevava diante de uma rapariga em flor, pelo
seu estado de forma em mudança, pois lhe trazia à mente “essa
perpétua recriação dos elementos primordiais da natureza, que
contemplamos diante do mar”. Mas o nosso mar soverteu a praia, e as
moças já não pousam ali sua arquitetura e seu riso. Também não
se verá mais, em certa noite do ano, os devotos de branco acendendo
velas na areia, e envolvendo-as de flores. Sobrou apenas, na vazante,
o espaço para uma ou duas pessoas depositarem sua saudade, sem
barraca. Passei por lá ontem e censurei o mar, que tudo destrói;
mas, no rumor que vinha das ondas, ele parecia explicar-se: “Nada
disso, irmão. Estou apenas trabalhando para a refeitura”.2
2
O cronista exagerou. A praia continua. (n. a.)
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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