A
dona Ali era excêntrica, excêntrica até na generosidade. Quer
dizer, ela não nos dava comida passada ou roupa velha. Ela nos dava
coisa boa. O mesmo que ela comia ou vestia. Bom, sua roupa ficava
enorme em nós, mas ela mandava reformar antes de nos dar. E quando
ela viajava, nos trazia roupas novas, bolsas, maquiagem,
lembrancinhas, como se nós fôssemos parentes dela e não
empregadas. A dona Ali era assim. Ela pedia comida e perguntava o que
nós queríamos porque, como ela dizia, a gente podia não gostar de
algo, podia ficar doente, né? Nós nunca tínhamos pensado nisso. As
patroas mandavam qualquer coisa pra nós, e a gente comia sem
pestanejar. Ou, por exemplo, quando íamos ao supermercado, ela nos
dava sua carteira. Assim, nas nossas mãos, a carteira. Ou seja, era
excêntrica, mas uma excentricidade boa. Ah, dona Ali, a senhora é
muito boa, dizíamos a ela. As outras empregadas nos contavam que as
patroas lhes davam frutas já passadas, a carne meio suspeita, os
abacates pretos, que serviam apenas pro cabelo, ou o sapato com o
salto quebrado, as calças com o meio das pernas descosturado, os
cremes que já haviam passado da validade. Isso, porcarias. Ainda
assim: obrigada, patroa, sim, muito bonito, muito bom, patroa. E
também inspecionavam as carteiras e as bolsas na hora de ir embora e
às vezes até debaixo da saia pra ver se elas tinham enfiado alguma
comida na calcinha. E lhes diziam, se vocês não fossem tão ladras,
não teríamos que nos passar por policiais, fazendo todas essas
coisas. Diziam tudo isso apalpando-lhes lá embaixo ou passando a mão
pelas pernas por cima das calças ou fazendo-as esvaziar a bolsa no
chão.
As
outras empregadas diziam com inveja: então a gordinha é bem legal,
né? As gordas são as melhores. Quem me dera achar uma gorda. Essas
magrelas são muito miseráveis. E são ruins. E só pensam em
emagrecer, tomam esses remédios. Marlene, onde estão meus remédios?
Já vou levar, patroa. O que será que essas pílulas têm? Porque
essa dona anda bem louca, com os olhos saltados, parece uma coruja.
Ai, a minha, às vezes, quando vai ter um compromisso, passa dias de
dieta, comendo queijo branco com água, e se você diz bom dia,
patroa, ela quer arrancar seus olhos, e se não diz, também. A minha
vomita: pede uma pizza tamanho família, chocolate, batata frita, se
tranca, come tudinho e depois ouço ela vomitando sem parar. A pobre
Karina, a faxineira, é quem tem que limpar tudo aquilo e não recebe
nem um obrigada nem nada. Não, pois você não vê que elas nos
pagam? O básico, mas nos pagam. Pois os avós delas não pagavam as
empregadas, eram, como se diz, seus donos. Eles as traziam do campo,
as próprias mães as entregavam, e lhes davam casa e comida e
obrigada, patrão, papai do céu que o abençoe e lhe dê muitos anos
de vida. Sonia trabalhou com uma que era uma bêbada e tomava pílulas
e dormia o dia inteiro e quando levantava, ficava furiosa e dava uns
sopapos na Sonia, que se interpunha entre ela e as crianças. Quando
a mandou embora, como essa Sonia chorava, porque, ai, ela adorava as
crianças, diz que as criaturinhas choravam, não vá embora, Sonita,
não deixe a gente aqui sozinha, Sonita. E o bebê berrava como se a
mãe estivesse o abandonando, uma lástima, porque a Sonia era
realmente a mãe desse menininho. Sim, isso aconteceu aqui do lado,
no condomínio aqui do lado, o do lago. O homem tinha um cargo bem
importante no governo, acho que era prefeito, uma coisa assim. E
depois com as amigas: tudo perfeito, tudo divino, tudo um sonho.
Essas risadinhas, né? Cobrindo a boca. A cara que elas fazem, falsas
de tudo, com as porcarias que se injetam que ficam como espantadas,
mais parecem de plástico essas mulheres, os olhos arregalados, os
lábios como de sapo. Ficam inchadas, horrorosas, como se estivessem
drogadas, mas pagam uma nota por isso. Nas festas, contratam garçons
com luvas brancas. Deve ser pra que não toquem com as mãos escuras
a louça branca, e põem umas toalhas nas mesas que custam mais do
que nós ganhamos num ano. E entopem as mesas com aquele peixe cru
rosado. E espalham flores por toda a casa. E tomam banho de perfume.
Deve ser pra disfarçar o cheiro de vômito. O cheiro de pijama e
lençóis sujos, cagados, menstruados, peidados, de quando não se
levantam por vários dias. Ninguém as vê assim, quando a gente tem
que ir, devagarinho: patroa? É o seu marido no telefone, quer saber
se a senhora já levantou. Diga-lhe que sim, que eu estou no banho.
Não quero que me incomodem, Mireya, vá com o motorista pegar as
crianças e dê o almoço pra elas e pelo amor de deus, que não
entrem aqui, ouviu? E as crianças já nem perguntam pela mãe. No
começo, sim, mas depois já vão pra cozinha sozinhas. E contam as
coisas pra você, o futebol, as provas, os amigos e amigas, do que
gostam e o que detestam. As coisas que lhes passam pela cabeça e
pelo coração e você também lhes conta e, no fim, são como seus
filhos. Elas vão crescendo na cozinha, comendo com você, até que
se tornam grandes e começam a achar estranho gostar tanto de você,
embora no fundo saibam que a mãe delas foi você, e elas olham pra
você um dia e não sabem se começam a chorar e correr pros seus
braços como quando eram pequenas e caíam ou a cumprimentam com a
cabeça porque já são mocinhos e mocinhas da sociedade que sabem
que não se cumprimenta os empregados com beijos e abraços.
A
gordinha era uma boa mãe, então?
Sim.
A dona Ali era uma mãe excelente até um pouco antes do fim. Então
deu a louca nela e já não era mais, não era. Não conseguia ficar
perto do Mati, nem tocava nele. Nós não podíamos acreditar, uma
criatura assim, como um menino deus, com aqueles cachinhos dourados e
a carinha redonda, um anjinho, correndo pra abraçá-la, e ela com
uma voz já esquisita, muito estridente, como quando você pisa num
rato, nos chamava aos gritos. Como se estivesse correndo perigo de
ser morta. Pela criaturinha. Seu bebezinho. A Alicia já era maior e
aquela menina sempre foi bem inteligente, rápida, muito esperta. Com
aqueles olhos azuis que abarcavam tudo. Que fantásticos os olhos
daquela menina, era como se olhassem por dentro de você inteirinha.
Parecia que tinha visto na mãe uma coisa feia porque soube na hora.
De primeira. Então já não entrava no quarto onde ela estava.
Deixou de pensar que tinha mãe: já se via como uma menina órfã,
brincando sozinha e se encarregando do irmãozinho, dava vontade de
morrer de pena quando a gente olhava pra ela, tão séria, vestindo-o
ou dizendo-lhe que deixasse de chorar por besteiras, que crescesse. E
o patrão, bom, o patrão fazia o que podia com sua gordinha louca,
saía pra trabalhar como todos os patrões do condomínio, todos às
oito em ponto, todos com um carro 4 x 4, todos com camisa e calça
passadas por nós. E aquela cara de tristeza que doía a alma. Ele
também já se sentia viúvo, com seus filhinhos de mãe louca. A
dona Ali, desde que começaram os ataques, a loucura, dormia no
quarto de hóspedes e nos pedia que levássemos sua comida na cama.
Mal via o patrão. Quando se topavam na casa, ela lhe perguntava que
foi? e ele tentava abraçá-la, mas ela não deixava, dava seu
gritinho de rato pisoteado e voltava pro quarto de hóspedes e ele
ficava do lado de fora, parado sem fazer nada, por um bom tempo, às
vezes com a mão na porta. Nós tínhamos pena dele. Nós tínhamos
pena de todos, na verdade. A dona Ali cheirava mal, pobrezinha. O
Mati não dormia bem à noite. A Alicita quase não falava e o patrão
não sabemos, trabalhava até tarde e nos dizia obrigado, obrigado.
Quando vinha a mãe da dona Ali, a dona Teresa, aí sim era terrível.
Ela a obrigava a tomar banho, a cortar as unhas, a se depilar, a
lavar toda a sua roupa, a arejar o quarto. O condomínio inteiro
ouvia os gritos. Vinha o motorista da dona Teresa pra ajudar a
levantar a dona Ali
e a presença daquele homem a enlouquecia como se ele fosse o próprio
diabo. Todos nós terminávamos arranhados e mordidos e chorando
porque a dona Ali, quando via o homem, ficava transtornada, se
tornava um touro aterrorizado, cem quilos de banha enfurecida.
Praticamente era preciso amarrá-la pra levá-la ao banheiro. Quando
o motorista ia embora, a dona Ali parecia ficar um pouco mais
tranquila, e se nós percebíamos isso, não entendemos como a mãe,
a dona Teresa, não entendia, e trazia sempre o homem com ela. Nós
tínhamos proibido o motorista e o jardineiro e o limpador das
janelas e o menino que trazia as compras do supermercado e o
professor de natação da Alicia e qualquer outro trabalhador que
entrasse na casa quando a dona Ali estivesse acordada porque já
tínhamos visto como ela ficava quando via homens. Dona Ali, o que é?
O que é? O que aconteceu com a senhora?, perguntamos das primeiras
vezes, quando começaram os ataques e ela, às vezes, não sabia do
que estávamos falando e, às vezes, dizia tranquem, tranquem a
porta, não durmam com a porta aberta, tranquem minha filha, fechem
bem, que ninguém tenha a chave da minha filha, tranquem a Alicia, e
se punha a fechar cem vezes a fechadura da porta do seu quarto. Mas a
mãe não. Que deus nos perdoe, mas essa mulher parecia cega,
estúpida. Nem sequer falava com a dona Ali. Só vinha pelo negócio
da perna e só perguntava pela perna, mas qualquer tapado teria
percebido que o menor problema da dona Ali era o joelho, o jeito
besta que ela caiu na piscina e os frascos e frascos de remédio pra
dor que começaram a dar a ela, alguns receitados pelo médico e
outros não. Nós, na cozinha, falávamos de procurar outros médicos,
doutores de cabeça, dos loucos, mas quem ia escutar as empregadas? A
patroa já não era a mesma pessoa, a cada dia ficava mais diferente.
Só nós parecíamos ver isso. Não era a perna, por que continuavam
falando da perna? Por que se concentravam na perna, na perna, na
perna? A perna estava melhorando, mas ela, quem era? Ela costumava
pôr seus filhos na cama e ver filmes e comer pizza ou desenhar ou
brincar com massinha ou inventar peças de teatro ou levar todos nós
pra comer hambúrguer ou de fazer um dia de fantasia. Ela costumava
cuidar das suas plantas, comer cereal colorido no café da manhã
como seus filhos e olhar o Mati dormir e depois dizer, vocês
acreditam que eu consegui fazer algo tão precioso? Ela não era essa
mulher que fugia do marido e dos filhos, monstruosamente gorda, que
cheirava mal e que abria e fechava a porta quarenta vezes por dia.
Não, essa não era nossa dona Ali. Um dia veio o pai dela, o seu
Ricardo, sem avisar. Abrimos a porta, ele perguntou pela filha e nós
dissemos que estava no quarto de hóspedes. Fomos pra cozinha fazer
um café pra ele quando escutamos a batida violenta na porta
principal. Corremos pro quarto da patroa e lá estava ela: os olhos
como dois pratos, uma mão agarrada ao lençol embaixo do pescoço e
na outra uma tesourinha de cortar unha. Apontava pra porta. Seu braço
tremia de cima a baixo. Dona Ali? Ela começou a gritar. Vá embora,
vá embora, vá embora. Quem? Seu pai? Já foi embora, minha linda.
Vá embora. Tranquem a porta, por favor, que ele não volte a entrar.
Tranquem tudo, passem a chave,
que não se aproxime das meninas, que não se aproxime da Ali, que eu
vejo muito bem, eu vejo muito bem e eu ouço muito bem e eu sei muito
bem. Sabe o quê, dona Ali? Vê o quê? Começou a gritar que lhe
doía. Dói o quê, querida? Onde? A tesoura sempre apontando pra
porta. E então fez aquilo, foi muito rápido: pegou a tesoura e se
cortou do couro cabeludo até o queixo. Nunca tínhamos visto tanto
sangue. A carinha da nossa patroa aberta como carne fatiada em bifes.
Vinicio, o motorista, escutou os gritos. Nós a enfiamos no carro e a
levamos à clínica. No caminho, telefonamos pro patrão. Ai, coitado
do patrão. Esperamos as notícias em casa, com as crianças. A
Alicita não perguntou nada sobre a mãe. Nem uma palavra. Dissemos a
ela que tinha acontecido um acidente e ela nem olhou pra nós. A dona
Ali voltou pior. As ataduras na cara lhe pareciam insuportáveis,
queria se ver, tentava tirá-las a todo instante, então puseram
ataduras também nas mãos e guardaram os espelhos. Escutamos das
amigas da mãe que os médicos diziam que ainda não era bom que se
visse, que primeiro deveria fazer um tratamento, cirurgias plásticas,
porque a ferida estava muito feia, muito roxa, que a pele tinha
formado um queloide e além disso a cicatriz lhe atravessava toda a
cara, da testa ao pescoço, e que era um milagre que ela não tivesse
perdido um olho. Escutamos também o lance do acidente. De que foi
sem querer. De que estava meio adormecida, que sempre foi sonâmbula,
desde pequena. Sonâmbula. Pra gente, ninguém perguntou o que tinha
acontecido, porque se alguém tivesse feito isso, teríamos dito que
a patroa pegou a tesoura e se cravou na pele e a arrastou pra baixo
como se quisesse apagar o rosto e que estava boa e em sã
consciência, acordada, e que seu pai tinha acabado de entrar no
quarto e que ela estava aterrorizada com aquele senhor e que pedia
que afastássemos as meninas daquele senhor e o que ela queria mesmo
era cravar a tesoura naquele senhor. Mas todos disseram sonâmbula e
a opinião das empregadas não importa, portanto nos empenhamos em
dar comida de canudinho pra dona Ali e a arrumar seu travesseiro e a
procurar que ficasse cômoda e tranquila, a cuidar das crianças e do
patrão, que era como uma alminha penada, a regar as plantas da dona
Ali, a dar carinho pra Alicita, cada dia com o coração mais
ressecado, a atender o telefone e dizer sim, senhorita, bem, não,
agora está dormindo, sim, dona Teresa, hoje está melhor, sim, já
almoçou, um purê de cenoura, sim, patrão, não se preocupe, nós
estamos aqui, não há de quê, até logo, sim, senhorita, eu digo a
ela. Quando vinha a mãe, a dona Teresa, a patroa se virava para a
parede e ficava assim, às vezes, a tarde inteira. A mãe trazia as
amigas pra não se aborrecer, embora fosse evidente que a patroa não
gostava que as pessoas viessem: enfiava a cabeça embaixo do lençol
e ficava assim, como amortalhada. Nós não parávamos de fazer café,
servir copos d’água, refrigerantes diet, de oferecer bolachas e
encomendar sobremesas no café do shopping. As amigas da dona Teresa,
é capaz que acreditassem que faziam bem visitando dona Ali e
tagarelando e fofocando sobre todo mundo, mas nós, às vezes,
entrávamos e a víamos, imóvel, infeliz, como um animal enjaulado
ou, às vezes, com manchas
de lágrimas na parte do rosto que não estava coberta pelas
ataduras. Quando todas aquelas mulheres iam embora, que alívio, era
preciso arejar a casa inteira de laquê e perfume. Nós éramos como
girinos tentando respirar, abrindo e fechando a boca. A casa, por
fim, se esvaziava de um líquido denso, como se fosse, por assim
dizer, um aquário com peixes raros: unhas pintadas e cabelo de
cabeleireiro e acessórios dourados. Iam embora. Voltávamos a ser
como antes. A dona Ali saía de baixo do lençol e nos pedia alguma
sobremesa que havia sobrado. Nós ríamos e comíamos doces e parecia
que recuperávamos nossa dona Ali até que ela nos pegava pela mão e
nos dizia, morta de medo: você conferiu a fechadura da porta? E a do
quarto da Alicita? E nós lhe dizíamos que sim, que claro, e
acariciávamos seu cabelo seboso, e ela nos dizia que cuidássemos
dela e dormia até que vinha o primeiro pesadelo. Nos pesadelos,
queriam tirar a roupa dela. Nos pesadelos, alguém a obrigava a fazer
coisas que ela não queria. Nos pesadelos, ela punha travas em todas
as portas. Nos pesadelos, havia sempre um adulto com um molho de
chaves. Então, um dia, o patrão levou as crianças pra casa da mãe
dele porque aconteceu aquele lance da dona Ali com a Alicita. A
verdade é que nós continuamos acreditando que ela não ia fazer
nada de mau, que queria ajudar sua filha, ensiná-la, mas o patrão
chegou e viu na mesma hora ali no banheiro a dona Ali com a filhinha
pelada e com aquela coisa plástica que era como um pinto de homem
adulto e o patrão ficou doido, gritou com ela e bateu nela,
disse-lhe louca de merda, o que você está fazendo, louca de merda,
gorda louca, estúpida, suja, vou te meter num manicômio, e ela só
chorava. Isso são as empregadas da casa ao lado que disseram que
ouviram porque nós não estávamos, era domingo. Assim, o patrão
levou as crianças de pijama, de noite, à casa da sua mãe. Aí sim
foi que a dona Ali não se recuperou mais. A mãe veio pra ficar e a
patroa parou até de falar. Quando estávamos sozinhas, às vezes ela
abria os olhos e perguntava pela Alicita. Nós dizíamos que estava
bem e ela nos pedia pra vê-la. Então começava a chorar e a mãe
nos mandava dar o comprimido pra ela. Um médico amigo da mãe tinha
receitado uns comprimidos que a deixavam babando e com os olhos
vazios. Nós acreditávamos que era melhor que chorasse porque
parecia que a dona Ali tinha muito o que chorar, uma vida inteira,
mas a mãe lhe dava as pílulas como se fossem bala. De hora em hora.
Nós tínhamos pena de vê-la assim, tão parecida com um monstro. A
ferida que lhe atravessava o rosto como um verme arroxeado, a gordura
tremenda, a baba, os olhos perdidos, os roupões brancos que a mãe
tinha trazido dos Estados Unidos e que, disse, era pra que a vejam
sempre limpa. Os dias foram passando. E os meses. Chegou o Natal.
Sim. Aí foi pior, no Natal. A dona Ali estava um pouco melhor, se
levantou, foi até a cozinha, comeu cereais de café da manhã e nos
disse que queria comprar presentes, então pensamos que queria
recuperar seus filhos, seu marido. Ficamos muito contentes e a
deixamos sozinha um momentinho pra nos trocar e ir ao shopping.
Quando voltamos, ela tinha se enfiado no banheiro e se trancado à
chave. Escutamos a água cair por muito, muito tempo.
Dona
Ali? Batemos na porta. Patroa? Fomos pegar as chaves e, ao voltar,
ali estava ela, enrolada numa toalha, com o cabelo ensopado, longo e
liso, grudado nas costas. Sorriu pra nós. Que foi? O shopping estava
uma loucura: cantigas de Natal, gritos de crianças e centenas de
pessoas. Ficamos preocupadas, a dona Ali não saía de casa há
meses, mas salvo uma pequena claudicação e a gordura imensa,
ninguém teria dito que acontecia algo estranho com aquela mulher,
que ela viveu o que viveu. É assim, né? As pessoas veem os outros e
não sabem o que se passa por trás das portas da sua casa. Então
ela olhou pra nós e nos disse que tinha de comprar uns presentes
importantes pra umas pessoas importantes e que essas pessoas não
podiam ver esses presentes, então tínhamos que nos separar por um
momento. Tudo parecia estar indo bem. Ela piscou o olho, sorriu,
estava com sua carteira, roupa esportiva, tênis vermelhos. Parecia
uma mulher normal, a mesma dona Ali de sempre, que ia ao quinto andar
comprar pra nós sabe-se lá o quê. Nós a vimos subir de elevador e
estava tocando música natalina e parecia realmente que toda a
loucura havia terminando, que ela ia ser mãe dos seus filhos e
mulher do seu marido e que aquele era o milagre do menino Jesus
porque nós tínhamos rezado tanto e dizem que Deus escuta mais os
pobres porque ama mais os pobres, então pra alguma coisa tinha que
servir a merda de ser pobre, pra recuperar a dona Ali, pra que seus
pesadelos se acabem, e os de todas nós. Nós a vimos aparecer no
balcão do café do quinto andar e então soubemos, soubemos na mesma
hora, há algo que lhe diz, não há como explicar, que vai acontecer
algo horrível. Vários gritos ao mesmo tempo, o barulho de um corpo
que se destroça, como se você atirasse um saco de vidro, pedra e
carne crua, um lado do crânio da dona Ali triturado, como se tivesse
derretido, mais gritos, um grito que sai de dentro de você, um grito
que é como uma facada, o grito do coração e dos pulmões e do
estômago e a dona Ali ali, como uma boneca grandalhona com as pernas
desconjuntadas, uma posição inumana, como se fosse cheia de lã em
vez de ossos. Nós ficamos ali, paradas, com a mão na boca, até que
vieram os médicos, a polícia, o patrão, a dona Teresa, o seu
Ricardo e alguém começou a nos sacudir pra nos levar pra casa e
atender a todas as pessoas que logo começaram a chegar loucas pra
saber por quê, como, e a dona Teresa, com um lencinho na mão, dizia
acidente, terrível acidente, chão molhado, ela estava mancando,
você sabe, o joelho, mas insistiu em sair porque era uma mãe
maravilhosa, claro, claro, diziam as amigas, e queria comprar
presentes pros filhos. Que horror, sim, um acidente, pobrezinha da
minha gorda, diziam as amigas. Mas, quando a dona Teresa estava
saindo do quarto, alguém lia ao telefone a notícia da Suicida do
shopping e as outras escutavam, as mãos cheias de anéis
cobrindo a boca e os olhos abertos sem piscar. Outra dona disse
baixinho que certa vez escutou que acontecia algo estranho nessa
casa, que o irmão com a irmã, que o pai com a filha. As outras a
mandaram bruscamente ficar calada: não repita essas coisas
estúpidas. No enterro, uma moça que trabalha no cemitério
entregava rosas brancas pra que as pessoas próximas da dona Ali as
depositassem sobre o caixão.
Quando
passou perto de nós, nos pulou e deu rosas a umas donas muito
elegantes com óculos escuros enormes às quais nunca havíamos
visto. No dia seguinte ao enterro, o seu Ricardo, o pai da dona Ali,
nos deu cem dólares, os dias do mês trabalhados, disse, e antes de
irmos embora, a dona Teresa nos revistou as carteiras e as bolsas pra
ver se não estávamos roubando algo. Ali onde não nos revistou
levávamos o anel de casamento da patroa, seu relógio tão bonito e
um colar de pérolas que ela nunca usou. Não nos disse adeus nem
obrigada. Atrás dela, a Alicita nos olhava com aqueles olhos azuis
tão imensos, tão inteligentes, tão assustados. Os mesmos olhos,
iguaizinhos, aos da sua mãe.
María Fernanda Ampuero, in Rinha de galos
Nenhum comentário:
Postar um comentário