(Viagem:
todo o movimento de aproximação de uma pessoa a outra. Movimentos
de fuga não são viagens.)
Em
menino fui patinador. Chamam-se patinadores aos jovens que despem o
arnês para melhor deslizarem, com patins de rolamentos, sobre os
cabos de aço. É um divertimento perigoso. Uma irresponsabilidade.
Os patinadores, se descobertos, costumam ser severamente punidos. Na
minha aldeia, em Luanda, esperávamos que os adultos estivessem a
dormir para nos reunirmos junto ao Jango, uma construção redonda,
no centro da rede, à sombra da qual os mais velhos discutem assuntos
importantes da comunidade. As redes e os cabos de aço, pintados com
tinta fosforescente – vermelhos, os cabos, amarelas, as redes –
brilhavam na escuridão. Dir-se-iam concebidas para capturar
estrelas. Acreditem: não existe emoção comparável à de deslizar
sobre um cabo de aço, numa noite estrelada, dois ou três
quilômetros acima do nível do mar.
Todos
nós, os filhos do céu, nascidos e criados em aldeias suspensas,
somos, por adestramento e por paixão, grandes funâmbulos.
Recordo-me, em criança, de ter visto velhos filmes sobre circos
famosos. Os animais fascinavam-nos, em especial os elefantes e os
leões. Ríamos com os palhaços. Os ilusionistas deixavam-nos de
boca aberta. Os equilibristas, porém, apenas nos entediavam. Passear
num arame a quinze metros de altura? Grande coisa! Aos nove anos já
eu era capaz de dar um salto mortal sobre um cabo afundado entre as
nuvens. Praticávamos esgrima e capoeira nos cabos. Líamos, ao sol,
deitados sobre eles, embora sempre presos por um arnês. Aconteceu-me
muitas vezes adormecer e cair, e ficar ali, suspenso, a rir às
gargalhadas, até alguém me vir buscar.
Fui
sempre muito ligado ao meu primo Luan Benjamim, filho de Ismael, o
irmão caçula da minha mãe. Luan era um garoto bravio, com um
sorriso ensolarado e uma coragem que, naquela idade, facilmente se
confundia com insensatez. Uma noite em que patinávamos os dois, ele
à minha frente, vi-o tropeçar e cair. Com a mão direita agarrou o
cabo e ficou suspenso, em silêncio, enquanto as estrelas giravam à
nossa volta. Corri para o ajudar. Segurei-o pelo braço, num
desespero, as unhas rasgando-lhe a carne. Ainda hoje, nos meus piores
pesadelos, volto a ver o lume dos olhos dele, muito abertos. Fui
recuando, devagar, até à segurança da rede – e puxei-o. Luan
abraçou-se a mim a tremer. Depois dessa noite não voltei a patinar
sem arnês. Sabemos que crescemos quando começamos a temer a morte.
As
aldeias especializaram-se em diferentes atividades. Existem
comunidades compostas por dezenas de balsas pesqueiras. Geralmente as
balsas soltam amarras, baixam e regressam. Pode acontecer, quando as
condições meteorológicas são muito favoráveis, céu limpo e
abrupta queda de temperatura, que a povoação inteira desça até
poucos metros do mar e os pescadores trabalhem em conjunto. As
aldeias de pescadores, ao contrário das balsas pesqueiras autónomas,
tendem a manter-se em rotas fixas.
Encontram-se
também muitas aldeias-oficina, a que os balseiros recorrem sempre
que têm problemas. Até mesmo os grandes dirigíveis necessitam dos
serviços destas aldeias, sobretudo para conseguirem determinadas
peças para os motores, o que justifica a prosperidade de algumas.
Conheci aldeias-oficina, como Manila ou Marraquexe, tão vastas e
luxuosas quanto alguns dos maiores dirigíveis. Há ainda aldeias
especializadas em telecomunicações, como a da Apple ou a do
Facebook, e outras que funcionam como postos abastecedores de hélio
e de petróleo. Há aldeias que apenas fabricam balsas, ou
componentes para balsas, e outras que produzem sapatos. Há
aldeias-casino, aldeias-restaurante e aldeias de entretenimento,
especializadas na produção de grandes festas. Há mesmo uma aldeia
enorme, Nairobi, onde funciona uma espécie de jardim zoológico, com
animais selvagens. Têm poucos herbívoros, pois custa muito mais
alimentar uma zebra ou uma girafa do que um leão.
A
nossa aldeia, Luanda, deve ser a única, em todo o céu, a vender e a
alugar livros. Luanda é uma aldeia-biblioteca. Tudo começou pelo
facto de a minha mãe, Georgina, ser a diretora da Biblioteca
Nacional, em Luanda, na altura do grande desastre. Partiu dela a
ideia de encher uma balsa com livros em papel. Teve de lutar para
convencer o meu pai a reservar uma balsa unicamente para esse fim.
Georgina conseguiu também trazer para o céu vários computadores
carregados com livros eletrônicos. Ao fim dos primeiros meses,
esgotados os mantimentos, os luandenses compreenderam que poderiam
subsistir, até com algum lucro, alugando livros. Nos anos seguintes,
fomos enriquecendo a biblioteca em muitas centenas de títulos,
comprando a outras aldeias livros eletrônicos e em papel. Alguns
foram-nos trazidos por mergulhadores-coletores, aventureiros que
arriscam a vida vasculhando detritos à superfície da água. Os mais
afortunados encontram contentores à deriva, por vezes embarcações
abandonadas, do interior das quais resgatam máquinas, material de
construção, tecidos, madeira, joias – e livros.
Em
Luanda, a vida da maioria das pessoas circula em redor dos livros.
Temos os restauradores, que cosem lombadas, reparam rasgões,
fabricam capas em couro; os impressores, responsáveis por novas
edições, muito artesanais, com tiragens reduzidas; os
digitalizadores, que digitalizam os livros em papel e os colocam
depois à venda na rede. Os bibliotecários, os informáticos, os
contabilistas e os pesquisadores. A estes últimos cabe a missão de
encontrar e adquirir novos livros. Invejo-os. Sempre quis ser
pesquisador. A minha mãe coordena este pequeno mundo. É a
bibliotecária-chefe.
Muitas
pessoas desembarcam em Luanda à procura de livros em papel. Podem
lê-los no Jango, que dispõe de dezenas de redes de dormir presas às
colunas, ou em qualquer dos outros quinze pequenos postos de leitura.
A maioria dos visitantes são leitores habituais. Alugam umas dezenas
de livros e retornam de tantos em tantos meses para a troca. Há os
que preferem ler ali, por preços muito mais acessíveis. Alguns não
veem um livro em papel desde que se refugiaram nas nuvens. Acariciam
as capas, cheiram as folhas com deleite. Depois estendem-se numa das
redes, a ler, enquanto as araras esvoaçam em redor.
Falei-vos
nas araras?
Em
Luanda vive uma grande colônia de araras verdes. Quando o mundo
acabou, e nos instalamos no céu, muitas aves conseguiram sobreviver
nidificando nos balões e nas redes. Para nós, as aves são
sagradas. Ninguém toca num ninho. Protegemos os ninhos e damos de
comer às aves, mesmo nas épocas de maior carência. Buda, contam,
estava um dia tão concentrado, a meditar, que um passarinho fez
ninho na sua cabeça. Com os meus pais passou-se algo semelhante. Uma
manhã, ao acordarem, deram conta que dois passarinhos haviam rompido
o colchão em que estavam deitados e se preparavam para nidificar
ali. A partir desse dia entregaram o colchão às aves e passaram a
dormir numa simples esteira.
Voltemos
aos livros. No tempo antigo, o papel era confeccionado a partir da
madeira das árvores. Hoje, no céu, fabricamos papel a partir de
algas ou de tecidos velhos. Livros, como costuma dizer o meu pai, são
árvores que aprenderam a falar. Neste sentido, Luanda preserva uma
espécie de pequena floresta falante.
Paris
possui uma boa biblioteca de livros em papel. Visitei-a na companhia
de Aimée. Li os títulos. Literatura francesa. Algumas centenas de
romances em língua inglesa. Um par de estudos sobre meteorologia e
navegação aérea. Meia dúzia de volumes raros.
José Eduardo Agualusa, in A vida no céu
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