quinta-feira, 7 de julho de 2022

A vida no céu | Segundo capítulo


(Viagem: todo o movimento de aproximação de uma pessoa a outra. Movimentos de fuga não são viagens.)

Em menino fui patinador. Chamam-se patinadores aos jovens que despem o arnês para melhor deslizarem, com patins de rolamentos, sobre os cabos de aço. É um divertimento perigoso. Uma irresponsabilidade. Os patinadores, se descobertos, costumam ser severamente punidos. Na minha aldeia, em Luanda, esperávamos que os adultos estivessem a dormir para nos reunirmos junto ao Jango, uma construção redonda, no centro da rede, à sombra da qual os mais velhos discutem assuntos importantes da comunidade. As redes e os cabos de aço, pintados com tinta fosforescente – vermelhos, os cabos, amarelas, as redes – brilhavam na escuridão. Dir-se-iam concebidas para capturar estrelas. Acreditem: não existe emoção comparável à de deslizar sobre um cabo de aço, numa noite estrelada, dois ou três quilômetros acima do nível do mar.
Todos nós, os filhos do céu, nascidos e criados em aldeias suspensas, somos, por adestramento e por paixão, grandes funâmbulos. Recordo-me, em criança, de ter visto velhos filmes sobre circos famosos. Os animais fascinavam-nos, em especial os elefantes e os leões. Ríamos com os palhaços. Os ilusionistas deixavam-nos de boca aberta. Os equilibristas, porém, apenas nos entediavam. Passear num arame a quinze metros de altura? Grande coisa! Aos nove anos já eu era capaz de dar um salto mortal sobre um cabo afundado entre as nuvens. Praticávamos esgrima e capoeira nos cabos. Líamos, ao sol, deitados sobre eles, embora sempre presos por um arnês. Aconteceu-me muitas vezes adormecer e cair, e ficar ali, suspenso, a rir às gargalhadas, até alguém me vir buscar.
Fui sempre muito ligado ao meu primo Luan Benjamim, filho de Ismael, o irmão caçula da minha mãe. Luan era um garoto bravio, com um sorriso ensolarado e uma coragem que, naquela idade, facilmente se confundia com insensatez. Uma noite em que patinávamos os dois, ele à minha frente, vi-o tropeçar e cair. Com a mão direita agarrou o cabo e ficou suspenso, em silêncio, enquanto as estrelas giravam à nossa volta. Corri para o ajudar. Segurei-o pelo braço, num desespero, as unhas rasgando-lhe a carne. Ainda hoje, nos meus piores pesadelos, volto a ver o lume dos olhos dele, muito abertos. Fui recuando, devagar, até à segurança da rede – e puxei-o. Luan abraçou-se a mim a tremer. Depois dessa noite não voltei a patinar sem arnês. Sabemos que crescemos quando começamos a temer a morte.
As aldeias especializaram-se em diferentes atividades. Existem comunidades compostas por dezenas de balsas pesqueiras. Geralmente as balsas soltam amarras, baixam e regressam. Pode acontecer, quando as condições meteorológicas são muito favoráveis, céu limpo e abrupta queda de temperatura, que a povoação inteira desça até poucos metros do mar e os pescadores trabalhem em conjunto. As aldeias de pescadores, ao contrário das balsas pesqueiras autónomas, tendem a manter-se em rotas fixas.
Encontram-se também muitas aldeias-oficina, a que os balseiros recorrem sempre que têm problemas. Até mesmo os grandes dirigíveis necessitam dos serviços destas aldeias, sobretudo para conseguirem determinadas peças para os motores, o que justifica a prosperidade de algumas. Conheci aldeias-oficina, como Manila ou Marraquexe, tão vastas e luxuosas quanto alguns dos maiores dirigíveis. Há ainda aldeias especializadas em telecomunicações, como a da Apple ou a do Facebook, e outras que funcionam como postos abastecedores de hélio e de petróleo. Há aldeias que apenas fabricam balsas, ou componentes para balsas, e outras que produzem sapatos. Há aldeias-casino, aldeias-restaurante e aldeias de entretenimento, especializadas na produção de grandes festas. Há mesmo uma aldeia enorme, Nairobi, onde funciona uma espécie de jardim zoológico, com animais selvagens. Têm poucos herbívoros, pois custa muito mais alimentar uma zebra ou uma girafa do que um leão.
A nossa aldeia, Luanda, deve ser a única, em todo o céu, a vender e a alugar livros. Luanda é uma aldeia-biblioteca. Tudo começou pelo facto de a minha mãe, Georgina, ser a diretora da Biblioteca Nacional, em Luanda, na altura do grande desastre. Partiu dela a ideia de encher uma balsa com livros em papel. Teve de lutar para convencer o meu pai a reservar uma balsa unicamente para esse fim. Georgina conseguiu também trazer para o céu vários computadores carregados com livros eletrônicos. Ao fim dos primeiros meses, esgotados os mantimentos, os luandenses compreenderam que poderiam subsistir, até com algum lucro, alugando livros. Nos anos seguintes, fomos enriquecendo a biblioteca em muitas centenas de títulos, comprando a outras aldeias livros eletrônicos e em papel. Alguns foram-nos trazidos por mergulhadores-coletores, aventureiros que arriscam a vida vasculhando detritos à superfície da água. Os mais afortunados encontram contentores à deriva, por vezes embarcações abandonadas, do interior das quais resgatam máquinas, material de construção, tecidos, madeira, joias – e livros.
Em Luanda, a vida da maioria das pessoas circula em redor dos livros. Temos os restauradores, que cosem lombadas, reparam rasgões, fabricam capas em couro; os impressores, responsáveis por novas edições, muito artesanais, com tiragens reduzidas; os digitalizadores, que digitalizam os livros em papel e os colocam depois à venda na rede. Os bibliotecários, os informáticos, os contabilistas e os pesquisadores. A estes últimos cabe a missão de encontrar e adquirir novos livros. Invejo-os. Sempre quis ser pesquisador. A minha mãe coordena este pequeno mundo. É a bibliotecária-chefe.
Muitas pessoas desembarcam em Luanda à procura de livros em papel. Podem lê-los no Jango, que dispõe de dezenas de redes de dormir presas às colunas, ou em qualquer dos outros quinze pequenos postos de leitura. A maioria dos visitantes são leitores habituais. Alugam umas dezenas de livros e retornam de tantos em tantos meses para a troca. Há os que preferem ler ali, por preços muito mais acessíveis. Alguns não veem um livro em papel desde que se refugiaram nas nuvens. Acariciam as capas, cheiram as folhas com deleite. Depois estendem-se numa das redes, a ler, enquanto as araras esvoaçam em redor.
Falei-vos nas araras?
Em Luanda vive uma grande colônia de araras verdes. Quando o mundo acabou, e nos instalamos no céu, muitas aves conseguiram sobreviver nidificando nos balões e nas redes. Para nós, as aves são sagradas. Ninguém toca num ninho. Protegemos os ninhos e damos de comer às aves, mesmo nas épocas de maior carência. Buda, contam, estava um dia tão concentrado, a meditar, que um passarinho fez ninho na sua cabeça. Com os meus pais passou-se algo semelhante. Uma manhã, ao acordarem, deram conta que dois passarinhos haviam rompido o colchão em que estavam deitados e se preparavam para nidificar ali. A partir desse dia entregaram o colchão às aves e passaram a dormir numa simples esteira.
Voltemos aos livros. No tempo antigo, o papel era confeccionado a partir da madeira das árvores. Hoje, no céu, fabricamos papel a partir de algas ou de tecidos velhos. Livros, como costuma dizer o meu pai, são árvores que aprenderam a falar. Neste sentido, Luanda preserva uma espécie de pequena floresta falante.
Paris possui uma boa biblioteca de livros em papel. Visitei-a na companhia de Aimée. Li os títulos. Literatura francesa. Algumas centenas de romances em língua inglesa. Um par de estudos sobre meteorologia e navegação aérea. Meia dúzia de volumes raros.

José Eduardo Agualusa, in A vida no céu

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