quarta-feira, 6 de julho de 2022

A lua vem da Ásia | Capítulo Doze

No pátio onde nos reunimos à tarde para conversar, fiquei conhecendo ontem um senhor muito idoso e muito educado, que se diz representante do Imperador da Rússia, embora não saiba uma só palavra em russo, segundo pude constatar. Falamos sobre assuntos diversos, conforme manda a boa diplomacia, e no fim concluímos que ambos gostamos imensamente de sorvete, sobretudo de sorvete de frutas, o que nos deixou profundamente satisfeitos pela feliz coincidência.
O calor era tórrido, como convém a uma conversa sobre sorvetes, e logo se aliou ao nosso grupo de dois o potentado hindu a quem vendi por uma ninharia a minha famosa coleção de palitos de fósforo e que se chama, se não me engano, José. Conversa vai, conversa vem, quando demos por nós já éramos uns quinze a falar ao mesmo tempo e sobre os mais variados assuntos, o que motivou a interferência de um dos garçons do hotel, que nos pediu silêncio.
Não entendo, sinceramente, como um hotel de boa reputação como este permite que os seus hóspedes se imiscuam na conversa uns dos outros sem ao menos serem apresentados, criando situações por vezes difíceis e ruidosas, que podem muito bem um dia levar até o crime. Ontem, não fora a pronta intervenção do referido maître-d’hôtel, eu teria esganado com todas as forças dos meus dedos uma respeitável matrona que mora na outra ala do edifício e que, ao passar por mim, me piscou impudentemente o olho esquerdo, e depois o direito, sem ao menos me dar as razões por que o fazia, embora essas razões me parecessem óbvias. O professor de matemática, que se diz nas horas vagas sobrinho torto de Napoleão Bonaparte, acirrou-me com palavras de ódio contra a pecaminosa e desconhecida senhora, e o mesmo fizeram uns dois ou três que se encontravam a discutir ao meu lado e que casualmente se inteiraram do fato. Felizmente o incidente foi contornado e superado pela ação viril do maître que se achava a observar tudo a pouca distância de nós, e ainda pela diplomacia realmente eficaz do representante do Imperador da Rússia que me aconselhou a acender um cigarro e a contar até cento e vinte.
Nesse pátio ensolarado, que é tudo quanto temos para espairecer nossas muitas ideias, enquanto não termina a malfadada guerra entre os bôeres e os negros (suspeita-se da presença de espiões entre nós) aprendi a conhecer uma fauna rica e por vezes miraculosa, como de resto deve ocorrer em todos os hotéis finos e que se prezam, sobretudo durante a guerra. A princípio, como manda minha alta categoria, procurei esquivar-me de contatos malsãos ou quando menos suspeitos, só respondendo por monossílabos às perguntas dos desconhecidos ou mesmo de alguns garçons encarregados de nos tomar a temperatura para a estatística do governo. Com o tempo, porém, e sobretudo com o mau tempo, acostumei-me a entabular conversação com um ou outro desses companheiros de vilegiatura, sempre porém mantendo essa discrição que sempre me caracterizou mesmo entre os mais discretos, não fora eu um espião nato e prevenido contra todos os espiões deste planeta.
Assim foi que, seja à hora das refeições, seja à hora de recreio no pátio cercado de altos muros (para evitar ataques aéreos), fiquei conhecendo intimamente o famoso cientista anônimo que nas horas vagas escreve versos futuristas e se dedica à fabricação de bilboquês sem barbante, mais leves e mais econômicos do que os outros. Fez-me ele uma demonstração prática de seu engenhoso invento, servindo-lhe a cabeça de bola e um de seus dedos de base de sustentação, o que me impressionou vivamente. Conheci, também, embora menos intimamente, um legado pontifício que se fez passar por modesto funcionário bancário para melhor fiscalizar os altos interesses da Igreja em todo o mundo, e que de certa feita me confessou estar empenhado na criação de um novo Deus — coisa nunca vista — que lhe permita, um dia, emancipar-se economicamente. Esse mesmo legado, aliás, apresentou-me ao seu secretário particular e possivelmente o futuro Messias redivivo, o qual, durante todos o tempo em que conversamos, não disse bolacha nem se mostrou impressionado com o seu bigode supersônico, limitando-se a sorrir vez por outra, a propósito das coisas mais sérias.
Há também o caso do cidadão mais preto do que branco, com lentes poderosíssimas assestadas sobre o nariz, e que por diversas vezes procurou interessar-me na exploração de um veio petrolífero de sua propriedade, mas sem qualquer auxílio norte-americano, o que me pareceu absurdo. Delicadamente fiz-lhe ver que não gostava de óleo, nem mesmo às refeições, e que o assunto aliás escapava à minha alçada particular, sendo como sou casado em regime de comunhão de bens. Esse mesmo senhor petrolífero, de certa feita, atirou à hora do almoço um garfo em pleno nariz do legado pontifício, só porque este não lhe quis passar uma travessa de arroz, o que me impressionou mal e fez esquivar-me ainda mais de suas poderosíssimas lentes. Parece que o escândalo foi abafado, ou pelo menos não se voltou a falar nisso até a presente data, que é, se não me engano, 26 de fevereiro.
Outras pessoas, mais distintas, que sou obrigado a ver sempre, por força do regime de guerra a que estamos submetidos, são, por exemplo, o grande artista de cinema Heliodoro Papanatas (grego) — irreconhecível em seu travesti de Dama das Camélias, e que por duas vezes já tentou suicidar-se atirando-se contra a parede como uma bola de pingue-pongue; o sobrinho torto de Napoleão Bonaparte a que já me referi antes, mas que por sua alta ascendência merece aqui nova citação, como se faz nos campos de batalha; um misterioso senhor Valadão, de sobrancelhas espessas e que tem o péssimo hábito de cuspir por todos os cantos (a mim já me cuspiu duas vezes) — e que ultimamente parece ter sumido de circulação, ou pelo menos já não o tenho visto cuspindo sobre o próprio prato de comida; o astrônomo Dr. Keither, de ascendência judia e Premio Nobel de Química de 1952, e que se mostra sempre muito afável para comigo, discorrendo horas seguidas sobre a importância das migrações indo-europeias sobre as descobertas etruscas e vice-versa, para só falar do seu assunto preferido; o estudante de filosofia que diz chamar-se Vinícius, mas que desconfio tenha realmente outro nome, e que tem a mania de recitar versículos bíblicos a propósito de todos os assuntos e mesmo a propósito das coisas mais escabrosas, como sejam as nádegas da senhora do gerente ou subgerente, e que na verdade são bem volumosas. E muitos outros ainda, todos do sexo masculino e dotados mesmo, alguns, de excelentes barbas, que em nada ficam a dever às do poeta Walt Whitman ou às do rei Artur.
O que me parece aliás inconcebível, neste hotel, é a separação arbitrária que fazem entre homens e mulheres de ambos os sexos, não nos permitindo nunca, ou quase nunca, ver o que se passa no pavilhão que fica à esquerda da minha janela e onde, a julgar pelas vozes, deve reinar uma alegria tipicamente feminina — entremeada, é bem verdade, de um ou outro grito de pavor. Não fossem as empregadas do hotel, que são muito delicadas mas nem sempre bonitas, e nem sei como haveria de arranjar-me um dia para contar aos meus amigos, lá fora, as muitas aventuras frasearias e sentimentais que sem dúvida ainda estão para acontecer-me no futuro. Penso que mais uma vez é o caso de formular o meu mais veemente protesto contra a maneira estranha por que nos vêm tratando, a todos, neste hotel que nem sequer um nome decente tem, ou se tem não é do nosso conhecimento nem consta das colchas e das fronhas que nos dão para dormir. Levarei amanhã o caso ao conhecimento do gerente, que já me conhece de sobejo, e se preciso irei ao Presidente da República e à sua exma. esposa, que devem ser criaturas importantes e capazes de reconhecer nossos direitos.
(É bem verdade que só me interessam as mulheres deste hotel que saibam impor-se o devido respeito, e não essas que a três por dois estão a piscar-nos um olho quando porventura passem ao nosso lado, nos dias de audiência coletiva ou em festas de data nacional. Exijo de meus semelhantes, sejam eles de que sexo for, o mínimo de maneiras e gestos compatível com as boas normas de educação cristã; e não é piscando os olhos aos outros que se granjeará a fama de criatura civilizada e cem por cento honesta, mesmo durante um período difícil como este por que visivelmente estamos passando.)

Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia

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